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3 DO SUJEITO ÍTALO-BRASILEIRO: DE SEU TERRITORIALIZAR-SE, DE SEU DISCURSIVIZAR-SE

3.3 DO SUJEITO ÍTALO-BRASILEIRO: “URBANIZAR-SE”

O acampamento da gente parecia uma cidade. (ROSA, 1984, p. 86) Sertão: estes seus vazios. (ROSA, 1984, p. 29) Eu, abaixava os olhos, para não reter os horizontes,

que trancados não alteravam, circunstavam. (ROSA, 1984, p. 47)

Permitimo-nos certos deslocamentos, alojando em nosso discurso um lugar para a metáfora, em que dizer do sertão é dizer da colônia e é dizer da cidade. Colônia e cidade95, ou sertão-colônia-cidade, assim, para nós, não se constituem espaços opostos (cidade e campo), são “espaço público social96”. Também um

espaço urbano: “esse espaço material concreto funcionando como sítio de significação que requer gestos de interpretação particulares. Um espaço simbólico trabalhado na/pela história, um espaço de sujeitos e de significantes” (ORLANDI, 2004, p. 32). Espaço de sujeitos em suas práticas sociais. Não mais o espaço ao qual se jogava a utopia; agora, o espaço real, o alcançado, heterotopia(s), conforme nos referimos em termos de Foucault ([1984] 2013), denunciando o resto da realidade como ilusão e, ao mesmo tempo, criando um espaço móvel de contradições no qual efetivamente se vive – e dentro do qual o sujeito discursiviza(- se), estabelece-se e se move numa relação identidade/alteridade, constituído de ilusões, sustentado em/por imaginários.

Assim, retomamos questões que tratam da constituição dos sujeitos, quando temos dois movimentos, assujeitamento e individuação. Diante disso, tomamos o discurso do sujeito como um gesto que o individua, uma sua tomada de posição. É esse o nosso andar pelo espaço constituído e fronteirizado como Quarta Colônia, um grande sertão a ser atravessado, para encontrar as formas como se subjetiva, em suas veredas, ruelas, becos, atalhos, braços de estrada, bairros, suas “picadas”,

95 “Quem decide esses sentidos? O político. Se assim é, não vamos discutir a diferença de sentidos já

apreendidos. Vamos procurar atravessar esse imaginário, pelo político, e ouvir outros sentidos, aproximando-nos do real da cidade e dos sujeitos urbanos em seu movimento, suas rupturas, sua desordem [...]” (ORLANDI, 2004, p. 30) – inclusive pensando diferentemente do já posto o que é um discurso urbano. Será que é só o da cidade, e sendo da cidade, da cidade “grande”?

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suas esquinas ou encruzilhadas, seus fins de linha97/suas encostas, suas pichações em outras paredes – seus escritos apagados, suas formas decaídas, suas vozes já roucas. Quando se materializa “a metáfora do grupo-corpo [que] acalma a angústia da cisão do sujeito” (ORLANDI, 2011a, p. 23): é aí mesmo que queremos entrar, em seus lugares, sendo esses também os “lugares de memória98”, os lugares da

memória do sujeito ítalo-brasileiro a se desenhar pela Quarta Colônia território- cidade – porque, também, “cidade e território são solidários” (ORLANDI, 2004, p. 11).

Pedra, asfalto, barro, cimento e palavras, refere Fedatto (2013), explicitando assim a existência concreta dos espaços urbanos, quando a materialidade urbana é também materialidade simbólica, onde saberes inauguram e consolidam discurso oficial ao mesmo tempo mítico sobre a unidade imaginária do território. Para Fedatto (Ibidem, p. 25, grifos da autora), “as cidades configuram lugares no imaginário social que produzem uma ambiência talhada pelo trabalho da memória, um lugar encarnado: que tanto habita o corpo dos sujeitos e dos sentidos quanto se deixa habitar por eles”. Há, nesse processo, uma relação constitutiva. Ao considerar que sujeitos históricos que aí habitam identificam-se e produzem sentidos, afirma a autora que esse espaço passa a atuar materialmente na formulação das práticas sociais. E são essas práticas sociais que nos interessam e fazem com que metaforizemos. Monumentos ficam em praça pública; a memória escrita é publicada, e a palavra dita, mesmo que se perca no tempo/vento, fica em suspenso, a ser retomada em discursos outros. É esse poder dizer que inscreve o sujeito ítalo- brasileiro no espaço cidade, de cidadania, de busca/encontro por um espaço público e político de mostrar-se. A cidade aqui é tal como a que nos descreve Orlandi (2011c, p. 695): é onde “sujeitos, práticas sociais, relações entre o indivíduo e a sociedade têm uma forma material, resultante da simbolização da relação do espaço, citadino, com os sujeitos que nela existem, transitam, habitam, politicamente significados; Orlandi (2014, p. 82) assim também a entende: “não é a cidade empírica, é traçado do funcionamento do interdiscurso na forma como o sujeito se individua na relação com o Estado”, a ser compreendido como o deslocamento da

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Atestando a incompletude os instrumentos linguísticos, que os sentidos escampam aos dicionários: como linha entende-se, aqui, o povoamento dos lugares tendo como base o traçado inicial da organização/divisão do território. Assim, temos, na Quarta Colônia: Linha Um, Linha Duas, Linha Seis, entre outras que ganham outras designações, como Linha dos mantovanos (“mantuan”), por exemplo.

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relação das políticas públicas urbanas que administram artefatos alocados por eles nesse espaço, na relação com o corpo dos sujeitos, como ruas, calçadas, muro, banco, semáforo entre outros, ao que esse “entre outros” abre-se para aquilo que nem sempre está no campo do que pode ser visto, regido e/ou domesticável. Referimo-nos aqui àquilo que pode não ser observável, mas existe em seu poder simbólico: as veredas ao lado dos grandes sertões, espaços mínimos em que sujeitos também se dizem. A propósito, “Città Nuova” é a referência que temos para a sede da Quarta Colônia, conforme consta em Lorenzoni (1975) e em Zanini (2006).

Tal reflexão também se abre a pensar sentidos para o próprio nomear o sujeito (objeto teórico) como “cidadão”. De acordo com Orlandi (2004), pensamos a cidade em sua dimensão jurídica na consideração do cidadão e na dimensão da representação sensível de suas formas, ao lado da consideração de um espaço de cidadania. Para definir o que é a cidade, a autora vai trabalhando em/com suas significações. Dentre elas, a de que o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um, em que ambos se encontram atados um ao outro, em seus destinos e em suas variadas dimensões, quer seja material, cultural, econômica, histórica ou outra. Embora a autora considere que, para nossa época, a cidade é uma realidade que se impõe com toda a sua força e que, com base em termos sociológicos, a cidade seja, ao mesmo tempo, resultado e pressuposto do desenvolvimento capitalista, não se pode deixar de pensar a cidade em termos de conceitos como o de política econômica, de zona urbana, de autoridade urbana, aliando-se conceitos econômicos, de mercado, a conceitos políticos. De toda forma, o que ressalta é a ideia de associação humana, considerando-a distinta de agrupamentos humanos, sendo que observar a cidade é compreender as alterações que se dão na natureza humana e na ordem social, além da riqueza que se faz visível na relação de um indivíduo com outro indivíduo: heterogeneidade e padronização, subordinação às exigências da comunidade na medida do interesse coletivo, e que, ao mesmo tempo, é dispersão e é singularidade.

No entanto, compreendemos que alguns espaços para se pensar o sentido sempre estão em aberto. Todos esses conceitos atribuídos à zona urbana não são distintos dos que concernem à “zona rural”: esta (que seria, a princípio, uma contraposição à zona urbana) não está em outro domínio se não o da mesma política econômica do país – e, hoje, das leis do mercado internacional –, das suas

autoridades, às normas todas do país. Não está isolada, assim como sempre se deu ao trabalho de buscar o outro. Por esse viés, consideramos não haver uma oposição, senão uma continuidade (no espaço) e um entrelaçamento (de sujeitos). Inspiramo-nos em De Certeau ([1990] 1998, p. 180), que assim se pronuncia: “o espaço geométrico dos urbanistas e dos arquitetos parece valer como o „sentido próprio‟ construído pelos gramáticos e pelos linguistas visando a dispor de um nível normal e normativo ao qual se podem referir os desvios e variações do „figurado‟”, sendo que esse próprio, ele mesmo, pode parecer mesmo ficção produzida por um uso particular, o uso metalinguístico das ciências. É dessas “errâncias”, dessas desconstruções que também nos valemos para refletir sobre em que consiste o “urbanizar-se” no inscrever o discurso do sujeito ítalo-brasileiro num espaço.

Sob a ótica do que se tem como cidadania, como um extensivo de cidade, a relação cidade-cidadão, consideramos Oliveira (s.d.)99, quando trata dos sentidos mobilizados pela palavra “cidadão”. A autora explicita que, embora apareçam em relações parafrásticas no conjunto dos dicionários brasileiros do século XX, há deslocamento de sentidos para essa palavra, pois temos convivido tanto com os sentidos imbricados na relação cidadão-direitos-Estado, quanto os advindos da relação cidadão-moradia-cidade, sendo que, nesses dois casos, não se dissociam os sentidos de cidadão/cidadania. No entanto, ainda segundo a autora, somente na atualidade (segunda década do século XXI) está sendo possível observar, nos dicionários, um momento de não-coincidência entre os sentidos de cidadania e de cidadão: “a relação de cidadania com direitos e de cidadão com direitos e deveres, ou a convivência entre uma ética de Estado e uma ética supranacional na designação de cidadãos”, afirma Oliveira (s.d., p. 121), justificáveis por um processo de mudança que é parte de um movimento não só linguístico, mas também social.

Segundo Orlandi (2004), a observação se guia pela linguagem em suas formas (escrita, grafismos, oralidade – o que, em associação ao nosso estudo, desliza para: em escrita, em imagem, em voz), de como os sujeitos se significam a si mesmos e aos outros – o que é papel fundamental. O que interessa não é só a visibilidade dessa característica, mas o sentido que daí resulta, como e para quem significa. Em outras palavras, como os sujeitos interpretam essa cidade-sertão- colônia, como eles aí se interpretam – como aí são interpelados – como esse lugar

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Disponível em: <http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga19/matraga19a06.pdf>. Acesso em: mar. 2015.

impõe gestos de interpretação, como a interpretação habita esse espaço – em sua relação com a ideologia.

É isto que nos toma: pensar esse espaço simbólico trabalhado na e pela história, que é um espaço de sujeitos e de significantes, quaisquer que sejam suas materialidades. Interessa-nos trabalhar o imaginário constitutivo desse sujeito em relação a outros sujeitos nesse sertão-colônia-cidade, o funcionamento imaginário de quem e para quem diz, do que diz e como diz. Como afirma Orlandi, sobre o trabalhar o espaço pensando-o simbólica e politicamente, que justifica nossa posição:

significa pensá-lo não como pensa o urbanista, o arquiteto, o antropólogo urbano, breve, os profissionais do espaço. [...] nossa contribuição específica está em tratar de apreender o jogo da interpretação e seus efeitos nesse espaço em que o que é urbano e o que é social se sobrepõem (ORLANDI, 2004, p. 26)

Esse nosso espaço, portanto, tem seu corpo significativo, lugar em que o político trabalha o simbólico. Por isso sertão, colônia e cidade podem ser tomados no mesmo plano, espaço em que se dá a circulação dos discursos em seus sentidos (que sempre podem ser outros, atualizando a memória discursiva). Assim “ligando gestos e passos, abrindo rumos e direções100”, tratamos de outra geografia: de uma “geografia segunda, poética, sobre a geografia do sentido literal, proibido ou permitido”, conforme De Certeau ([1990] 1998, p. 185).

Adentramos ao entendimento da luta por lugares de dizer, por maneiras de dizer, por dizeres, lugar em que o consenso é imaginário, e o sujeito, dividido. Quanto ao funcionamento do efeito de consenso, Petri (2016b, no prelo, s/p) afirma- nos que este nos coloca no espaço de uma aparente homogeneidade: nela, “as palavras surgem como que sem história, então, lembra-se de algo em detrimento de um algo esquecido.” Sendo assim, ainda segundo a autora, muitas vezes, o trabalho do presente altera os sentidos do passado. É preciso, portanto, em vista disso, produzir sentidos para os sentidos já instalados e sedimentados.

É nesse processo que o sujeito se diz à sociedade, da luta de classes e da luta por lugares, é nesse processo, em que os dizeres “não são como se mostram” (ORLANDI, 2012), que o sujeito ítalo-brasileiro dá-se a ver, relaciona-se, coloca seu discurso na rua: urbaniza-se, discursivizando-se.