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De história e de memória e de um sujeito na história e na/pela memória

2 DAS UTOPIAS, DAS ILUSÕES E DOS IMAGINÁRIOS: LUGARES DE SUJEITOS E DE SENTIDOS

1.2 DAS ILUSÕES E DOS IMAGINÁRIOS: PARA DIZER DO SUJEITO

1.2.2 De história e de memória e de um sujeito na história e na/pela memória

Escrever a história e escrever histórias pertencem ao mesmo regime de verdade. (Jacques Rancière)59

História e memória são constitutivas do sujeito ao mesmo tempo em que são constituídas nele e por ele. Sujeito esse em cujo discurso articulam-se e atravessam- se funcionamentos da língua, inconsciente e ideologia, ao que cumpre lembrar Henry ([1984] 2010) em relação ao lugar da história. Para o autor, há uma tendência nas ciências de negar a existência de uma dimensão que seja própria à história,

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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. 2 ed. São Paulo: EXO experimental org.; 34, 2000 [2009]; referimos que o termo “verdade”, aqui, segundo o autor, “não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas” (p. 58).

reforçando-se a ideia de que ela não representaria mais do que o lugar ou o espaço da combinação, da articulação ou da complementariedade de processos ou mecanismos a-históricos; a história não teria, ainda, conteúdos que lhe seriam específicos; representaria, outrossim, o ponto de vista de uma totalidade e da complementariedade do que estudam as ciências humanas e sociais: representaria, então, o “contexto”. Então, seja por ser destinada como um objeto à parte pelas outras ciências, seja por não ter um objeto que lhe seja próprio e, por isso, recusar- se a si mesma como ciência, a sua situação torna-se paradoxal. Diante disso, o referido autor posiciona-se pela tendência de vê-la cientificamente, avaliando que a questão da história é exceder a simples descrição empírica dos fatos e dos acontecimentos passados, assim como suas sucessões. Concordando com Foucault60, Henry reforça que a história não tem lugar em meio às ciências humanas, tampouco ao lado delas; teria, então, com todas elas, uma relação de vizinhança em um espaço comum. Essa história, segundo o autor, é uma história que não existe. A que existe e que faz sentido é aquela que se constrói junto ao homem, e esse homem fala; sendo assim, “podem lhe dar o sentido que quiserem sob a reserva de que eles se coloquem de acordo entre si e deem conta das realidades” (HENRY, [1984] 2010, p. 46), além da questão de que todo fato ou evento histórico é dado à interpretação, a diferentes construções de sentido em relação a ele, a busca de suas causas e consequências. Nesse sentido, a história, para os estudos do discurso, consiste “nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada caso. Isso vale para nossa história pessoal, assim como para a outra, a grande História” (Ibidem, p, 47).

Corroborando com a teoria discursiva, Rancière ([1992] 1994, p. 9) traz também essa discussão ao afirmar que “a revolução da ciência histórica quis justamente revogar o primado dos acontecimentos e dos nomes próprios em proveito das longas durações e da vida dos anônimos” e relativiza a importância da concepção de outrora, da velha história, acrescentando que era necessário abandonar os acontecimentos, suas sucessões insignificantes ou suas causalidades ao acaso; substituir-lhes os fatos. Ao trabalhar com a simbologia do “rei morto”, traz com ela os novos rumos ao dizer que “os reis estão mortos como centros de força da história” (Ibidem, p. 20). O autor propõe que se considere, como base a compor uma

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nova história, uma poética – a “poética do saber” em lugar de uma retórica, por meio de um novo paradigma. Esse “modelo” não se estruturaria simplesmente recebendo da morte dos reis seu objeto novo, tampouco trazendo à cena um ser vivo que fala muito, que fala demais, fora do lugar e fora da verdade, sujeito que não tem qualidade para garantir a referência do que diz. Sua organização considera “a entrada dos anônimos do povo no universo dos seres falantes” (p. 53); nesse processo, o historiador não se apaga, mas vem para a frente da cena, atestando o singular ato que fez/faz: “abriu o armário dos tesouros e leu esses testemunhos que dormiam esquecidos” (Ibidem, p. 53). Tais testemunhos configuram nova espécie de documento, documento que se monumentaliza, conforme Foucault (]1969] 2000), sobre o que sustenta uma nova posição da história na contemporaneidade.

Nesse sentido, buscamos compreender Davallon (1983 [2010], p. 26), para quem “a história resiste ao tempo; o que não pode a memória”, pois esta é frágil e nada garante sua permanência. Destacamos, no entanto, a importância dada aos escritos, pois, para o autor (Ibidem, p. 101), “os escritos permanecem, enquanto as palavras e os pensamentos morrem”. Por esse viés, podemos pensar o quanto se tornam relevantes aos grupos o registro dos fatos ou dos eventos vivenciados, pois cumprem o papel de amalgamar testemunhos de vários lugares em função de um espaço de identidade comum, dado à tarefa de agregar, a ser dividido e compartilhado. Ainda do ponto de vista discursivo, considera-se que a história interessa não pelo acúmulo de informações que consegue armazenar, mas, conforme Petri (2006, p. 4), “pelo efeito de sentido que os acontecimentos revelados produzem num determinado espaço sócio-cultural e numa determinada época”.

É por essa tomada, política, buscando apreender os vestígios da memória, no âmbito das histórias de vida, capturados oralmente, que nos remetemos a Pollack (1992). Para o autor, que associa memória (não só individual, mas como fenômeno coletivo, na esteira de Halbwachs61) e identidade social, há elementos que constituem essa memória, há acontecimentos: acontecimentos vividos pessoalmente, acontecimentos vividos por tabela (acontecimentos da/na coletividade, dos quais, pela relevância que adquirem, torna-se quase impossível

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Halbwachs ([1968] 2009), ao estabelecer paralelos entre história e memória, traz-nos as noções de memória histórica e memória coletiva. À primeira, refere-se como uma “sequência de eventos cuja lembrança a história conserva” (p. 99); à segunda, diferenciando-a de história, seria “uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (p. 102).

saber se participou ou não – uma memória herdada, portanto, segundo o autor); há pessoas e/ou personagens, realmente encontradas, transformadas em quase que conhecidas e, ainda, as que não pertenceram necessariamente ao mesmo espaço- tempo; além desses, há os lugares de memória, desde aqueles das lembranças pessoais aos lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração, os monumentos, por exemplo. Esses três critérios podem pertencerem ao campo do conhecimento, direta ou indiretamente, e podem, também, aí estar por transferência ou projeção.

Outra questão que deve ser considerada é que “a memória é seletiva”, segundo Pollak (1992, p. 204), pois nem tudo fica gravado, tampouco registrado. Em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente, e a memória herdada se liga ao sentimento de identidade, tomado como a imagem de si, para si e para os outros. Assim, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade” (Ibidem, p. 204), podendo ser fenômenos negociados e também valores disputados em conflitos sociais e intergrupais.

Não só isso nos interessa. Pollak (1989, p. 5) faz referência a uma memória em disputa, situações em que “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas”. O silêncio mostra as dificuldades de o sujeito se integrar, na esteira de superar sentimento de exclusão e de ver reestabelecidas a verdade e a justiça – diante de uma memória coletiva da nação.

Nesse processo, o autor fará referência às fronteiras entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, o que vai, de certa maneira, separar uma “memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor” (POLLAK, 1989, p. 8). Le Goff (1996, p. 29) coloca a memória coletiva como “essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido dessa relação nunca acabada entre o presente e o passado”, cabendo à história a tarefa de ajudá-la “a retificar seus erros”. Ao mesmo tempo, há aí um jogo de poder, pois “tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos

grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (Ibidem, p. 29).

No entanto, não nos referimos aqui a memórias consideradas marginais, mas a memórias que se colocam como insipientes frente a essa memória coletiva organizada, oficial ou nacional, a que aí está pelo discurso dominante. Podemos nos colocar a questão de como significam esses livros de memória familiar ou de grupo, advindos de/em distintas condições de produção? Que lugar o sujeito atribui a si e ao seu outro? Se, para Pollak (1989, p. 10), “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo”, para nós, o que está em jogo é como funcionam as diferentes posições-sujeito dentro da memória do sujeito ítalo- brasileiro, permeadas não por identidades, mas por processos de identificação. Há sentidos de formações discursivas que funcionam com uma dominante: interpelado, o sujeito não desloca, apenas estabiliza sentidos já postos. O que não quer dizer que o reverso também não possa se dar.

Para Nora (1993 [1984]), historiador, vivemos, na contemporaneidade, o fim do equilíbrio entre história e memória por um processo de aceleração da história – desencadeado por fenômenos como o da mundialização, democratização, massificação e mediatização. Em função disso, segundo o autor ([1984] 1993, p. 7), tem-se substituído “uma memória voltada para a herança de sua própria intimidade pela película efêmera da atualidade” e, por não mais habitarmos nossa memória, precisamos estabelecer lugares consagrados a essa memória, o que o autor denomina de “lugares de memória”. E quais seriam eles? Dentro do estudo que fazemos, os lugares de memória do sujeito ítalo-brasileiro são seus livros de memória - não como gênero narrativo –, são seus monumentos, por suas imagens; é a sua língua, por seus escritos e por sua voz62. Enfim, todos os discursos em que se significa, simboliza e se metaforiza.

É nessa instância que se pode pensar a ordem do discurso – quando os sujeitos estão submetidos à linguagem - que seria, segundo Orlandi (1999), a ordem da língua e a da história, em sua articulação. Ao considerar a história de acordo com a proposta de Henry ([1984] 2010) – a que nos referimos anteriormente – em que a história é a história porque os fatos reclamam sentidos e o fazem em face de um sujeito que está condenado a interpretar; entendemos que, “na relação contínua

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entre, de um lado, a estrutura, a regra, a estabilização e o acontecimento e, de outro, o jogo e o movimento, os sentidos e os sujeitos experimentam mundo e linguagem, repetem e se deslocam, permanecem e rompem limites” (ORLANDI, 1999, s.p.).

Consideramos também que história e memória se recobrem. Pêcheux ([1983] 2010, p. 56) avalia que existe um “outro interno em toda memória”, o qual se constitui em ser “a marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior63”, ou seja, uma não existe sem a outra. Com isso, também é necessário pensar, com base em Zandwais (2012) que:

[...] se a memória evoca a história, essa somente se concretiza a partir das lembranças que são preservadas na consciência dos indivíduos, do modo como são simbolizadas e, por fim, “discursivizadas”, tonando-se objetos de diferentes leituras, de múltiplas narrativas e até mesmo de interpretações controversas (ZANDWAIS, 2012, p. 47).

Essa reflexão inside sobre as diferentes formações discursivas, regionalizações do interdiscurso, pois o que permanece ou não, o que se repete ou se apaga, encontra-se vinculado àquilo que pode e deve ser dito – e àquilo que não pode e não deve ser dito. A diferença, a multiplicidade e a controvérsia relacionam- se aos diferentes posicionamentos ideológicos, e é esse filtro que faz com que os discursos funcionem dentro de certas regularidades, atestando um princípio de organização, sendo que é dentro desse princípio que se avalia quando é deslize, quando é ruptura, quando é resistência.

De acordo com Orlandi (1990), o discurso histórico tem o trabalho de estabilizar a memória, mesmo que essa nem sempre possa ser retida e domesticada, cuja construção do arquivo não cansa de se deparar com diferentes práticas, quer sejam elas silenciamentos, apagamentos, recobrimentos, saturações ou faltas. Fedatto (2013, p. 30) considera arquivo como “um material simbólico produzido em condições históricas específicas que disponibiliza maneiras de ler os sentidos em jogo sobre uma questão”, em que o político entra como marca da disputa entre os sentidos que concorrem para a sua construção, confrontando-se, complementando-se, harmonizando-se também ou contradizendo-se. Assim, tanto ao ler um arquivo já disponibilizado quanto ao montar um arquivo para o propósito

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de um estudo – o que, quando instado à interpretação, já está mesmo, enquanto objeto de recorte, sob uma leitura e interpretação –, em que se tem a memória e história funcionando juntos, é preciso que se possa, segundo Pêcheux ([1983] 2008, p. 57), “detectar os momentos de interpretação enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados”.

Dentro dessa questão, em que trabalhamos com memória, história e arquivo, torna-se relevante considerar Foucault ([1969] 2000) quando este afirma que a história é o que transforma os documentos – rastros deixados pelos homens - em monumentos, elementos a serem isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter- relacionados, organizados em conjuntos. Ainda nesse sentido, para Le Goff ([1988] 1996, p. 535), “a memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos”, e o que sobrevive não é o conjunto do que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelos que detêm a força – o poder de – quer pelos historiadores. Define, então, o autor que “estes materiais de memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (Ibidem), sendo que esse debruçar-se sobre a memória, a coletiva, e pela história implica interesse pelos homens todos.

É nessa articulação que pensamos então a memória. E um dos pontos que achamos relevante nessa questão é o que nos apresenta Courtine (1999), de que a memória se efetiva na língua, ao que acrescentaríamos, pela língua, quando passamos a considerar que há discursos em outras materialidades. É na e pela memória na língua que temos a memória do sujeito ítalo-brasileiro da Quarta Colônia, que se articula em discursos vários. Em diferentes materialidades significantes, ou porque estamos nela ou porque dela necessitamos para fazermos um trajeto de leitura.

Courtine (1999), na análise que faz do estatuto da memória no campo do discurso político, a partir do uso da metáfora de “O chapéu de Clementis”, traz-nos importantes contribuições. Enumeremo-las, com base em nosso recorte de leitura: primeiramente, coloca a possibilidade (para não dizer, efetivamente, a prática) do apagamento da memória histórica, (constituindo-se, então, numa memória lacunar, ao que vai contrapor com memória cheia, saturada), o que pode (vai) interessar a alguma língua de Estado, para o que refere outras metáforas, utilizadas por Régis

Debray, a saber, língua de pano, língua de vento, língua de ferro, entre outras; depois, o que consideramos uma das colocações mais interessantes de quem teoriza e pratica a Análise de Discurso: “para trabalhar com a categoria de discurso, é necessário ser linguista e deixar de sê-lo ao mesmo tempo” (COURTINE, 1999, p. 18), em que entra a noção de ideologia como constitutiva do sujeito e do discurso; também a definição que o autor nos dá de interdiscurso: em que “o sujeito não tem nenhum lugar que lhe seja assinalável, que ressoa no domínio da memória somente uma voz sem nome” (COURTINE, 1999, p. 19, grifos do autor), em que ressoar pode ser entendido como repetir e transformar; por fim, associa interdiscurso a domínio de memória. Interessante assinalar que, embora o autor se embase na teoria enunciativa (nível da enunciação e nível de enunciado), traz-nos os processos pelos quais a memória se efetiva na língua: pelo “discurso relatado”, em que aparece a relação e a citação ao texto primeiro, e, em relação a estes, interpõem-se anulações e/ou transformações desse discurso; e pelas “formulações de origem”, pois nesses processos é que aparecem memória e esquecimento. Assim, define a citação, a recitação e a formulação do pré-construído como formas de estabilização daquilo que disponibiliza o domínio da memória e associa a memória e o esquecimento como indissociáveis na enunciação do político – até que o reverso possa acontecer, e por reverso podemos entender as resistências, as falhas, as incompletudes, entre outros recursos para subverter/submeter uma ordem.

Pêcheux ([1983] 2010, p. 50), por sua vez, define o que pode e deve ser entendido como memória no campo da Análise de Discurso: “não no sentido diretamente psicologista da „memória individual‟, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador”. Além disso, em discussão sobre o papel da memória, lança-nos a pensar na seguinte abordagem: “as condições (mecanismos, processos) nas quais um acontecimento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória”, embora haja, segundo o autor, um espaço de tensão, em que pode haver um “acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever; o acontecimento que é absorvido pela memória, como se não tivesse ocorrido” (Ibidem, p. 50). Esses são limites com os quais certamente nos depararemos, uma vez que fragmentos de memória do sujeito ítalo-brasileiro fogem

a inscrições na língua escrita, esvaem-se na língua falada e se esburacam em imagens.

Com base nessas reflexões, situamo-nos diante de alguns impasses: se há funcionamentos discursivos que atestam a presença da memória e da história em construções linguísticas – e isso podemos observar, no sentido de ver suas regularidades, questionamos: como ver isso em imagens? Pêcheux ([1983] 2010) aponta-nos que existem especificidades para o que é da ordem do linguístico, para o que é da ordem do discursivo e para o que é da ordem do icônico, sendo que é “fato incontornável da eficácia simbólica ou „significante‟ da imagem e sua relação com os fatos de discurso enquanto inscrição material em uma memória discursiva” (PÊCHEUX, [1983] 2010, p. 51). Essa memória, para o autor, poderia colocar em jogo “uma passagem do visível ao nomeado, no qual a imagem seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura [...]” (Ibidem, p. 51, grifos do autor). Nesse percurso, do visível ao nomeado, tomamos de Barthes ([1978] 201564, p. 19), o prescindir da língua – fascista, segundo o autor, não porque impede, mas porque obriga o dizer –, subvertida em Literatura – onde estão as forças da liberdade desse dizer –, na árdua tarefa de representação (impossível) do real: “não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem)” (Ibidem, p. 23). Esse pode ser o jogo a que se refere Pêcheux. Deslizando um tanto dos sentidos, poderíamos também dizer dessa complexidade quando visamos a sintagmatizar o que está em uma imagem: há espessuras que não coincidem; embora trabalhemos com a incompletude, há recursos sobre os quais podemos sustentar nossa posição: ler, descrever e interpretar.

Para Davallon ([1983] 2010), que toma inicialmente as reflexões de Halbwachs e sua posição de opor a memória coletiva à história, poder-se-ia compreender a importância da possibilidade de casar história e memória coletiva, no sentido de “entrecruzar, de aliar a resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impressão – vivacidade – da outra” (p. 26): quando um acontecimento representado pode ser documento histórico e monumento de recordação, sem caracterizar, necessariamente, antagonismo, mas conjunção, síntese entre as duas instâncias.

64 Data da publicação de “Aula”: Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária no Colégio de