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Uma caminhada Mas havia uma pedra no meio do caminho

4 DO LUGAR DO SUJEITO PESQUISADOR: ESCOLHAS E ITINERÁRIOS

4.1.1 Uma caminhada Mas havia uma pedra no meio do caminho

Criança pequena menina, com pés encardidos de areia, terra, pedras e sol, marcado em branco pela tira do chinelo havaianas, brincava117, brincava e brincava nas estradas, nas valetas, nos campinhos, nas hortas, nos pomares, entre correrias e calmarias daquele que lugar que era, sem dúvida, abençoado por santos e anjos. Santos Anjos. Fim de mundo para alguns, início de mundo para mim. Ao visitar, muitos e muitos anos depois, um museu numa vizinha cidade – um bairro dessa cidade maior, Quarta Colônia – surpreendo-me com uma fotografia118, num painel, que traz, em sua composição, instigante jogo em suas peças: ao fundo, uma velha

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Referência ao poema de Drummond.

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Novamente, como já referido na nota 85, é voluntário o uso da primeira pessoa do singular, marcando, assim, a subjetividade do pesquisador. Essa forma – “deslize”, para um texto acadêmico - traz a questão do sujeito para o próprio sujeito pesquisador, de que/de como ele vai se constituindo pela escrita. Há um movimento (proposital) entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural: esta então marca o sujeito pesquisador já inscrito em um campo teórico-analítico.

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Questão já mencionada em nossa Dissertação de Mestrado, conforme consta nas referências como Brust (2013).

igreja, que conheci já como a igreja velha, por onde muito havia circulado (sim, já com morcegos e ratos, milhos e palhas, e restos e cheiros); à sua frente, um monumento, no espetaculoso efeito do tempo e dos recursos fotográficos de então: apagado; ao seu redor, homens e bandeiras, em poses. Preenchia ali, em verticalidade, o que viria a completar os velhos degraus que sentido algum faziam, senão um bom lugar para sentar e brincar com bonecas, panelinhas – ou com formigas.

Imagem 7 – Reprodução do painel (onde se encontra a fotografia que estamos mencionando) do Museu Municipal de Dona Francisca

Imagem 8 – Reprodução do monumento ao imigrante italiano no Cinquentenário da Imigração Italiana na Quarta Colônia - Santos Anjos, Faxinal do Soturno, RS

Fonte: Museu do Município de Dona Francisca – RS.

Procuro, então, uma fotografia que pudesse dar conta de trazer decifrado o então mistério e desconhecimento. Encontro-a, enquanto objeto de outro museu. Em tempo colado, vozes recuperam seu desaparecimento e a aparição de uma nova metáfora sustentada pelo velho suporte que antes elevava para depois homenagear objetos... sim, objetos.

Imagem 9 – Reprodução de monumento com cruz (em substituição ao referido na imagem anterior)

Fonte: Museu Fotográfico Ir. Ademar Rocha, de Faxinal do Soturno.

Imagem 10 – Detalhe da cruz

Fonte: Fotografia gentimente cedida por Vera Lúcia Chelotti a partir de arquivos da Comunidade de Santos Anjos, Faxinal do Soturno, RS.

Nesse entremeio, entre uma fotografia e outra, atravessam-se vozes que contam/cantam coisas/causos. Narrativas urbanas, perdidas no pó das idades, assentadas em calçadas, cadeiras de balança, varandas. Foram muitas as vozes que se perderam no tempo; as que aqui trazemos foram captadas, gravadas e transcritas para o objetivo deste estudo.

Quadro 3 – Reprodução por escrito de discursos “em vozes”

Voz 1: Do monumento... É. Eles fizeram aquele monumento e colocaram um homenzinho em cima. Representava o agricultor, não é? E, depois, então, quando veio as missão os padres deram essa ideia de tirar e botar a cruz em cima. Creio que foi. (...) (M. C., 84 anos).

Fonte: Autora.

Quadro 4 – Reprodução por escrito de discursos “em vozes”

Voz 2: Sim. Me lembro. Ele era um monumento. Em cima tinha um agricultor com a pá eembaixo tinha uma placa que... o agricultor ... um nome (não me lembro mais agora, sabe) (...) (M. C., 92 anos).

Fonte: Autora.

“Palavras e silêncios que jamais se encontrarão”...119

Isso, no entanto, encontrou ancoragem em outra vereda da Quarta Colônia: ventos com vozes (desconhecidos, ouvidos aqui ou ali) levaram-me a saber de outro monumento:

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Imagem 11 – Reprodução do Monumento em homenagem ao imigrante italiano (Comunidade de São Marcos, Arroio Grande, Santa Maria)

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O monumento anteriormente reproduzido levou-me a buscar mais informações sobre, e isso me levou ao livro “Uma odisseia na América”, das memórias de Andrea Pozzobon, organizado por Zola Pozzobon. Veredas abertas às memórias.

E um outro, que foi sendo levantado “tijolo com tijolo num desenho mágico”, tendo ao fundo um outro ainda, um navio errante/errado, “pedra no meio do caminho” – de uma praça que também habitei:

Imagem 12 – Reprodução do Monumento em homenagem aos antepassados120 (Praça Vicente Palotti, Faxinal do Soturno, RS)

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Compreendo que, de uma posição empírica o sujeito ítalo-brasileiro me convida a ver, em seus “ensaios”, dizeres seus sobre si, sobre o território (a sua relação com a nova terra), sobre o outro (alteridades) e sobre a língua em enlaces com a memória. Quero saber de suas narrativas, de suas aventuras errantes sobre o passado (no passado e sobre ele, no presente), como forma de ver que sujeito é

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Consistia, em sua versão primeira, em ser um bebedouro, para pessoas e animais. Perdido em sua finalidade, este, reproduzido na foto, é uma nova versão, limpa, bem pintada, conservada, daquele que outrora existiu: “O bebedouro era um monumento ao centenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul (1925). Uma lápide de mármore levava insculpidos um panorama agrícola e um texto alusivo em italiano. A cena agrícola representava um lavrador em primeiro plano, mais o sol que nascia ao fundo”, explica Pe. Dorvalino Rubin no livro “Faxinal do Soturno e os 50 anos de sua igreja” (s.e., 1989, p. 35).

esse hoje e o que nele se faz e refaz. Atravesso fronteiras e coloco-me, então como sujeito-pesquisador inscrito na Análise de Discurso.

Com base nisso, considero Petri (2013) no que tange ao necessário estabelecimento de um roteiro de leitura específico. Movimentos que nos tomam, pois é preciso pensar como isso se materializa (1) ao se escrever uma história, ao se registrar uma memória, (2) também ao se inscrever numa história, ao se inscrever numa memória (quaisquer que sejam as materialidades discursivas). E, ainda, dentro dos limites, compreender “o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever” e “o acontecimento que é absorvido pela memória, como se não tivesse ocorrido”, conforme Pêcheux ([1983] 2010, p. 50). Assim, ao lado da grande e velha história, aquela dos grandes feitos, congelados em monumentos, que perseguia a sombra dos reis, as marcas dos grandes acontecimentos, essa que sempre se deu por verbos de ação, que atravessaram o tempo e chegaram ao hoje, sempre depois da ação propriamente dita: descobriram, lutaram, venceram, dominaram, há a história – sob a qual desenvolvemos nosso estudo – que diz que os fatos reclamam sentidos, sejam eles fatos “grandiosos” ou simplesmente “grandes”, de nomes próprios o primeiro, de nomes comuns o segundo. Isso se dá pelo narrar, em letra e em voz, em que o movimento de letra após letra vão formando as palavras e as frases, em que a sequência de vogais e consoantes, remetendo a significantes, vão ganhando sentidos; isso se dá pelo registrar em imagens (em que não sabemos até onde é dar-se a um narrar ou projetar-se num descrever), em que formas ganham contornos e esses contornos emergem em espaços que passam a ser significados. E pelo silenciar, pela presença das reticências, das paradas, das lacunas, dos suspiros, dos desmontes.

Assim, se a materialização do imaginário do sujeito se dá pelo “contar”, pelo narrar, entendemos ser necessário o trabalho com as noções de narração e de narratividade. Rancière ([1992] 1994, p. 64) pensa a narração como a que “estabelece que o não-sentido não pode ser, como a que diz da imanência do sentido – de um mesmo sentido a tudo o que se diz”. Orlandi (2014, p. 79, grifos da autora) propõe pensar a narratividade “como a maneira pela qual uma memória se diz, em processos identitários, apoiados em modos de individualização do sujeito, afirmando/vinculando (seu “pertencimento”) sua existência a espaços de interpretação determinados, consoantes a específicas práticas discursivas [...] narratividade enquanto processo e não como „gênero‟ como usualmente é definida”.

Afinal, “tudo fala segundo a mesma modalidade: o deslocamento da fala sonora para a voz do testemunho mudo. O relato das pedras ou do oceano que choram dá à história sua mitologia fundadora (RANCIÈRE, [1992] 1994, p. 64); além disso, lembra-nos o autor do que a história reivindicará como seu domínio: “em lugar das cartas de embaixadores ou da papelada dos pobres, a multiplicidade das falas que não falam, das mensagens inseridas nas coisas” (Ibidem, p. 66). E, além disso:

Tudo fala, tudo tem um sentido na medida em que toda produção da fala é destinada à expressão legítima de um lugar: a terra que talha os homens, o mar em que se jogam suas mudanças, os objetos cotidianos em que são lidas suas relações, a pedra que retém a marca. [A inclusão da morte e a teoria do testemunho mudo são uma só e mesma teoria: uma teoria do lugar da fala] (RANCIÈRE, [1992] 1994, p. 73).

Esses recortes me lançaram a um percurso pela Quarta Colônia, em itinerários não retilíneos, em que recolho, em palavras e em imagens, os discursos nos quais se presentificam imaginários do sujeito ítalo-brasileiro. Passo agora a sistematizá-los, apresentando-os como partícipes e recortes que não se esgotam nestas descrições, movida pelas palavras de Orlandi (2009a, p. 15-16) que reflete sobre o lugar em que nos colocamos: trabalhar “com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção dos sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade”.

Nosso corpus constitui-se, portanto:

1 de livros de memória, em distintas condições produção, que tratam da