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3 de entrevistas com moradores da região, (i) já realizadas por outros pesquisadores, na década de 1990, gravadas em fitas magnéticas (e por nós

4.2 DA COMPREENSÃO DAS REDES E TRAJETOS: A TRAMA EM SEUS EFEITOS

4.2.1 Primeira paragem: ler escritos

O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. (Riobaldo, em ROSA, 1984, p. 288). [...] Alguem nos perguntara: que tem a fazer a história destes dois homens,

com a historia do Polesine? E eu vos digo: não sabíeis que quem fazem a historia do mundo, são os homens e não o mundo? (Antonio Cerettta)

O que e como se dizem em escritos o sujeito ítalo-brasileiro? E que escritos são esses? As obras das quais recortamos e selecionamos sequências discursivas compõem-se de livros que se/nos remetem à Quarta Colônia. Esses livros são de cunho memorial – ora de memória individual do sujeito autor, ora da memória da sua comunidade de origem – sobre questões ligadas/atravessadas à imigração, tomando-a como acontecimento contemporâneo ao autor ou não. Dentro disso, há os que se referem a relatos de viagem, aqueles que dão conta de histórias de família, outros que narram pequenas aventuras quando da chegada nas novas

terras, ou, de momentos/tempos outros, relatos e aventuras que podem ser colocadas como continuidades dos relatos primeiros ou como filiadas a essas memórias. Sujeito esse que pensa e que acha (interpelado/assujeitado) e “põe enredo”: faz e faz-se sua própria ficção (modalidade que representa a “forma idealista pura da forma-sujeito” conforme Pêcheux ([1975], 2009, p. 155), elabora-se em discurso, colocando-se e projetando-se em imaginários.

Para compreender o processo de escritura – o que também se estende aos discursos outros aqui estudados – valemo-nos de Orlandi (2012b) sobre a constituição, a formulação e a circulação dos processos de produção do discurso.

O primeiro traz como sustentação a memória do dizer, quando intervém o contexto sócio-ideológico mais amplo; o segundo, as condições de produção e circunstâncias de enunciação específicas; o terceiro, o fato de que se dá em certa conjuntura e segundo certas condições. Todos eles nos interessam ao fazermos a descrição de nosso objeto, pois, mesmo que nos embasemos numa ordem cronológica (isso vai aparecer), queremos observar que não é esse o nosso referencial. No entanto, pode-se ver que o contexto sócio-histórico vai viabilizar certas tomadas de posição em detrimento de outras, vai viabilizar (ou não) tanto a formulação de determinados discursos quanto a sua circulação.

Consideramos também a formulação tal como nos define Orlandi (2012b), para quem é aí “que a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se esconde). [...] Materialização da voz em sentidos, do gesto da mão em escrita, em traço, em signo” (Ibidem, p. 9). Ainda, “formular é dar corpo aos sentidos", refere a autora, ao explicitar tal afirmação, considerando que sujeito e sentido têm sua corporalidade articulada no encontro da materialidade da língua com a materialidade da história – está repetido, confrontando-se, assim, o simbólico com o político.

É quando o sujeito se diz, considerando formações imaginárias. É “um contar por escrito, que constrói diálogos imaginários para um outro que não se sabe quem é”, sendo a escrita “refúgio de representação imaginária do(s) outro(s) ausente(s) sendo, ao mesmo tempo, forma de endereçamento ao Outro, reflete Mariani (2016, p. 26). Corpos – sujeito e linguagem – são, ainda, atravessados de discursividade, dos efeitos desse confronto, em processos da memória que têm sua forma e funciona ideologicamente. Nesse processo de escritura, “o corpo do sujeito é um corpo ligado ao corpo social e isto também não lhe é transparente” (Ibidem, p. 10).

Para selecionar tais obras, servimo-nos do acesso às bibliotecas municipais dos municípios da Quarta Colônia, das bibliotecas das escolas e em arquivos particulares, entre outros, uma vez que muitos desses livros têm limitado número de volumes – na maioria das vezes, financiados pelos próprios autores e/ou suas comunidades; outros, patrocinados pelo poder público ou pela inciativa privada, não visado ao lucro, em sua maioria. Também referendamos um trabalho já realizado em que estão elencados significativo número de títulos já publicados, a saber: “Lista dos livros de memória regional”, escrito por “GP Literatura e História”, PPGL, UFSM, e elaborado por Égide Guareschi121.

Cumpre referir que nem todas as obras sobre as quais nos debruçamos são/estão tratadas aqui. Escolhemo-las, algumas, por se tratarem de obras sempre referidas quando de estudos relacionados a (principalmente as escritas pelos imigrantes), ou por serem obras quase que singulares em determinados momentos (aqui, especialmente, referimo-nos ao livro do Padre Pio José Busanello), ou por estarem em circulação na QC no momento deste estudo (as últimas, especificamente) e apresentarem questões que, mesmo trazendo aspectos de uma saturada memória, trazem singularidades que muito têm a contribuir com nosso estudo. Todos os autores têm relação com a Quarta Colônia; na maioria das vezes porque seus antepassados foram imigrantes e se assentaram nessa região.

As obras elencadas na sequência fazem parte de nosso arquivo, foram estudadas e delas saíram os recortes discursivos122 trabalhados. Estão colocadas em uma sequência, em ordem cronológica de publicação. Seguimos essa sequência não como um critério a obedecer uma ordem linear do tempo, mas porque implica uma rede de memória, em ditos e reditos, tomadas e retomadas, em distintas, mas relacionadas, condições de produção.

121

Disponível em: <w3.ufsm.br/literaturaehistoria/index.php/materiais-de-apoio.html?>. Acesso em: 2013.

122 Especificamos como tomamos o “recorte”, seguindo a concepção de Orlandi (1984), já citada na

introdução deste estudo: o recorte vai estabelecer uma relação com o todo de que é parte, ligado às mesmas condições de produção e situações discursivas; não segue o esquema sintático da segmentação da frase, em sintagmas, por exemplo; traz a ideia de polissemia e não de informação; a relação que estabelecem os recortes entre si não se embasa na linearidade e na prévia organização; suas retomadas e reformulações não seguem esquema de palavra por palavra, nem de formas paralelas. O proceder ao recorte, portanto, é atitude de análise que vai se construindo a partir das materialidades discursivas que o arquivo nos oferece.

Quadro 5 – Lista das obras consultadas e informações I AUTOR OBRA ANO DA ESCRITURA ANO DA PUBLICAÇÃO LÍNGUA DOS ORIGINAIS/ LÍNGUA DA PUBLICAÇÃO Júlio Lorenzoni MEMÓRIAS DE UM IMIGRANTE ITALIANO Antes de 1925 1974: texto participante de Concurso de Monografias 1975: publicação Italiano/Português Tradução: Armida Lorenzoni Parreira (filha) Andrea Pozzobon UMA ODISSÉIA NA AMÉRICA 1906- 1911 Crônicas: a partir de 1878 1997 Italiano/Português Tradução: Zola Pozzobon Severino Bellinaso AS MEMÓRIAS DE UM IMIGRANTE ITALIANO

HERÓIS DE VAL DE BUIA

1993-1995 (remonta a 1923: vinda ao Brasil) ________ 2000 1995 _______ 2000 Português _____________ Português Antônio Ceretta HISTÓRIAS DE S. JOÃO DO POLÊSINE Desde o início da colonização até 1936 2015 Português

Pe. Pio José Busanello A HISTÓRIA DE NOSSA GENTE 1951 (há uma edição mimeo) 1999 Português Humberto Didone

IVORÁ: MEU TORRÃO Antes de

1994

1994 Português

Vários SÍTIO DOS MELLOS: 70

ANOS DE HISTÓRIA

1995 Português

Cirilo Costa Beber

NA TERRA DOS SONHOS: A HISTÓRIA DA FAMÍLIA C.B. 1996 Português Granadilia Foletto RIBEIRÃO: SUA FUNDAÇÃO, SUA HISTÓRIA, SEU POVO,

SUA MEMÓRIA

1996 Português

Terezinha Tessele

Fenker

ADDIO CELESTE, ADDIO TRENTINO 2009 Bilíngue: Introdução em português; primeiro capítulo em italiano e os demais em português Jovita Brugnara

RECANTO DO VALE 2010 Português

Luiz A. L. Baggiotto

DAS BRUMAS DO VÊNETO AOS SERTÕES DA QC/E AS SEMENTES DO VÊNETO VINGARAM

NA QC

2011/

Rosita Coradini Silva UM LUGAR NO CORAÇÃO – RETALHOS DE MEMÓRIA DO POVOADO DE MINHA INFÂNCIA:

SANTOS ANJOS 2015 Português

Sérgio Venturini

IVORÁ – SANGUE ITALIANO NA QUARTA

COLÔNIA 2015 Português

Fonte: Quadro de nossa autoria.

A primeira questão que nos propomos a discutir em relação à publicação desses livros de memória diz respeito às condições de produção primeiras, sustentadas na memória do dizer, quando intervém o contexto sócio-ideológico mais amplo. Perguntamo-nos – e isso fazemos em relação às quatro primeiras obras citadas – por que foram produzidas no início do século (até a década de 1930) e somente publicadas nas décadas de 1970, 1990 e, até mesmo, recentemente, na de 2010?

Arriscamo-nos a interpretações: o que valiam naquelas décadas, naquele início de colonização, aqueles homens senão por seus braços, assim como o metaforizado (e metonimizado, por seus símbolos) no monumento em homenagem ao Imigrante Italiano de Val de Buia, em que o imigrante (adulto, pai, avô, trabalhador) porta uma enxada/trabalho, olhando ao horizonte/futuro, enlaçado a uma criança/descendência que, por sua vez – este sim – porta/pode portar um livro, estabelecendo um diálogo via olhar com aquele que lhe serviria de referência? Tais obras foram, então, publicadas dentro de um contexto de rememoração da imigração e comemoração do seu centenário, conforme refere Itálico Marcon (1975, p. 9-10), no Prefácio à obra Memória de um imigrante italiano, de Júlio Lorenzoni (1975).

Imagem 13 – Reprodução do painel do Monumento ao Imigrante Italiano. Val de Buia, Silveira Martins, RS

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O que a história não registra, em seu tempo, é que esse sujeito não se significava somente pelo trabalho; suas mãos não apenas sulcavam a terra, senão arriscavam-se pelo sulcar, com a pena, papéis. E isso se apaga em seu tempo, sobrevive, mas no esquecimento, silencia por longo tempo, ganha espaço, fazendo(- se) sentido, por processos de rememoração e comemoração, segundo Venturini (2009).

O quadro disposto na sequência visa a embasar a afirmação que fizemos anteriormente e, de certa forma, contrapor a imagem do painel, referida na imagem 10. Há a necessidade de se considerar a justificativa da publicação, quem publica, o ano que a obra é publicada e as particularidades de cada uma que conseguimos rastrear. São elas memórias escritas pelo sujeito ítalo-brasileiro na posição-sujeito imigrante (já apresentadas no Quadro 5), junto às demais. A esse sujeito cabia o lugar da força do trabalho físico, não da leitura, da escritura, do pensar (questão ideologicamente posta em campos contrários), compreende-se. Não havia espaço para a palavra escrita, tanto é que somente a partir dos anos em que se iniciaram as

comemorações relativas ao centenário da Imigração italiana no Rio grande do Sul é que estas vieram à público. As novas informações que acrescentamos dão conta disso – e dizem das condições de produção, tanto da escritura quanto da publicação.

Quadro 6 – Lista de obras consultadas e informações II

OBRA/AUTOR