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2 DAS UTOPIAS, DAS ILUSÕES E DOS IMAGINÁRIOS: LUGARES DE SUJEITOS E DE SENTIDOS

1.2 DAS ILUSÕES E DOS IMAGINÁRIOS: PARA DIZER DO SUJEITO

1.2.1 De língua e de um sujeito na língua

- Mãe, a Páscoa é a RessuReição de Cristo? - RessuRReição, Viviane. Aprende a falar direito! [...] - Seu Antoninho, não é “tera”... é: “TeRRa”! - Mas tu entendeu ou não entendeu? - Entendi, claro! - Então, por que fica me corigindo!

As utopias (pro)movem mudanças, (trans)formações sociais; também interferem, definem práticas sociais. A algumas delas, Michel Pêcheux ([1982] 1990) faz referência a partir de uma interpretação alicerçada no materialismo histórico. Em suas reflexões, aborda, pelas revoluções, questões históricas e questões linguísticas. Quanto à primeira, afirma que as revoluções estabelecem o contato, por diversas vias, entre o visível e o invisível, entre o existente e o alhures, entre o não- realizado ou o impossível, entre o presente e as diferentes modalidades de ausência, situações essas, enfim, em que o real afronta o imaginário. (É para esse “real que afronta o imaginário” – simbolicamente refletido – que lançaremos nosso olhar de analistas de discurso). Quanto à segunda, questiona-se se a questão histórica das revoluções não especificaria a existência do simbólico para o animal humano, uma vez que a existência do visível e da ausência está estruturalmente inscrita nas formas linguísticas – da negação, do hipotético, do que expressa desejo, pelo jogo das formas que permutam o presente com o passado e o futuro, entre outras situações. A essa questão relacionamos os processos linguísticos nos quais se materializam/por onde deslizam os constructos a que nos referimos. Destacamos, então, que:

Toda língua está necessariamente em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca estará” da percepção imediata: nela se inscreve assim a eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 8).

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Dessas considerações – as quais não se fecham na interpretação que ora fazemos – queremos distinguir que, se há um impossível para a história (o inenarrável) e um impossível para a língua (o indizível), que “escapa” ao fio do discurso, há algo que pulsa: o real tocando o imaginário e o imaginário tocando o simbólico, desalinhando fronteiras, mexendo com/em seus limites, ultrapassando-os. Nesse ponto, retomamos as revoluções citadas por Pêcheux ([1982], 1990), entendendo que, por elas, transitam utopias, ao mesmo tempo em que instauram, por seus movimentos, pela sua complexidade, a contradição – se há algo que se busca, o que efetivamente se vive e se realiza?; se há algo que se diz, como pensá- lo, se esse dizer está também constituído por aquilo que silencia, que se interdita, ou por aquilo que se torna saturado ou se faz lacunar? – Momentos de análise dos discursos em que, conforme Orlandi (2009a, p. 78), torna-se fundamental o trabalho da intepretação, em que, partindo das paráfrases, das sinonímias, da relação do dizer com o não-dizer, entre outros processos, passa-se a compreender o sujeito em suas formações e os sentidos em suas inscrições.

É nesse espaço, no espaço revolucionário, que se tem a passagem de um mundo ao outro, quando a relação com o invisível se coloca, inevitavelmente, “do mesmo modo como nas formas históricas da contrarrevolução: o conjunto constitui um só processo, contraditório, no qual se tramam as relações entre língua e história”, expõe-nos Pêcheux ([1982] 1990, p. 9). Assim, a partir da abordagem dos diferentes espaços históricos, Pêcheux ([1982] 1990) vai tratar das consequências políticas e teóricas de tais revoluções, “os efeitos da trama”, segundo suas palavras, a explicitar: a Revolução Francesa de 1789, a questão da revolução socialista a partir do século XIX e as revoluções do século XX. Tais considerações interessam- nos, tocam nosso estudo, porque, por elas, temos uma “linha móvel” que articula a política e o político, pela língua, na língua e pela história, na história – o que vai estar presente, mas não visível/transparente, nas questões que envolvem movimento de massas, como o de imigrantes que aportam nas Américas do século XIX e XX.

Para Pêcheux ([1982] 1990), tem-se, a partir disso, uma mudança estrutural na forma das lutas ideológicas, não mais dois mundos, mas um só, no terreno de uma só língua, tendencialmente “Una e Indivisível, como a República”45

(Ibidem, p.

45 Segundo a nota 10 do texto que aqui tomamos como referência, há um jogo nesse “una e

11). Na efetivação das condições para o exercício de seu poder – ao que compreendemos ser a realização de uma utopia – a burguesia estabelece uma nova divisão da sociedade, sob a cobertura da uma unidade formal fundada no Direito. Conforme Pêcheux ([1982] 1990), a burguesia proclama o ideal de igualdade frente à língua, pela liberdade dos cidadãos, embora organize uma desigualdade real, pela divisão do ensino dessa língua.

Expõe-nos Pêcheux questões outras, mas que avaliamos serem pertinentes a essa divisão social que é empreendida pela/na língua. Trata-se da discussão relacionada à leitura de arquivo, o qual pode ser entendido “no sentido amplo de „campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão‟” (PÊCHEUX [1982] 2010 p. 51). O autor discorre com relação à pesquisa em Linguística, embora tais questões se abram para pensar a historicidade dos modos de leitura, embasados que estão, desde a Era Clássica, entre duas culturas – que se contrapõem - designadas, pela tradição escolar-universitária francesa como a “literária” e a “científica”. Tradicionalmente, os profissionais dessa leitura são os literatos, considerados, enquanto tais, os historiadores, os filósofos, as pessoas das letras, com o hábito de praticarem a própria leitura, tratando-se de uma leitura que não se ancora em nenhuma teoria do texto ou teoria da própria leitura, sendo que sua decodificação repousaria sobre o postulado da evidência e da transparência de sentido. Numa outra vertente de leitura de arquivo, estaria o trabalho anônimo, por meio do qual os aparelhos de poder das nossas sociedades geriram/gerem a memória coletiva. Divisão que se inicia no meio dos clérigos, na Idade Média, quando alguns eram autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes, com propriedade, enquanto ao conjunto de todos os outros eram destinados os trabalhos de cópia, transcrição, extração, classificação, indexação, codificação, entre outros. Para Pêcheux ([1994] 2010), esse trabalho também constitui uma leitura, porém uma leitura em que ao sujeito-leitor impõem-se apagamentos, um apagamento de si, renúncia a pretensões de originalidade, atrás de uma instituição que o emprega, consagrada aos serviços de Igreja, rei, Estado ou empresa. Para esse serviço, foi preciso desenvolver socialmente métodos de tratamento em massa de arquivo textual, cujos fins estão em serem facilmente comunicáveis, transmissíveis e reproduzíveis. No quesito “objetividade”, estaria uma das causas de a referência à

francesa, com base no modelo do latim, reservando-lhe a experiência do bilinguismo; à massa, a simplificação da língua, uma língua pautada nas frases simples.

“ciência” se impor como evidência – destaque dado à criação das línguas artificiais. De todo modo, a questão é ideológica, pois, sobre o divórcio cultural entre o literário e o científico a respeito da leitura de arquivo, afirma Pêcheux ([1994] 2010) que:

não é um simples acidente: [...] recobre (mascarando essa leitura de arquivo) uma divisão social do trabalho de leitura, inscrevendo-se numa relação de dominação política: a alguns, o direito de produzir leituras originais, logo “interpretações”, constituindo, ao mesmo tempo, atos políticos (sustentando ou afrontando o poder local); a outros, a tarefa subalterna de preparar e sustentar, pelos gestos anônimos de tratamento “literal” dos documentos, as ditas “interpretações” [...] (PÊCHEUX, [1994] 2010, p. 52, grifos do autor).

O autor sustenta que essa divisão social do trabalho de leitura passa por reorganizações e, em última instância, as consequências disso irão repercutir sobre a relação de nossa sociedade com sua própria memória histórica. Tomamos-lhe a citação:

Nesta medida, o risco é simplesmente o de um policiamento dos enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e de um apagamento seletivo da memória histórica: “quando se quer liquidar os povos”, escreve Milan Kundera, “se começa a lhes roubar a memória” (PÊCHEUX, [1994] 2010, p. 55, grifos do autor).

A par dessa discussão, interpõem-se questões para/do nosso estudo, o qual pensa o discurso do sujeito ítalo-brasileiro, uma vez que, ao lado do/sob o discurso/dos discursos dele mesmo, há o discurso/os discursos sobre ele – de outra formação discursiva, a do Estado, quer de um poder constituído – democraticamente – quer de poder instituído - autoritariamente. Discursos sobre os quais incidem as questões: quem pode dizer e o que pode dizer? Quem pode lembrar – e como lembrar? E mais: o que é preciso esquecer – e a que ordem isso se filia? Pertencentes à superestrutura, ou reproduzindo seu discurso, as explicações e as justificativas econômicas e sociais para o fluxo migratório garantem um posicionamento ideológico, em que se apagam as vozes múltiplas de outros – em que significam as palavras de Pêcheux ([1975] 2009, p. 281): “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja [...]”. Onde fica/está, portanto, a leitura do sujeito imigrante que se outorga o poder/o direito de dizer, determinada pelas condições históricas adversas e diversas de que fazem parte, mesmo que não necessariamente formem um discurso homogêneo, linear, sem contradições,

pertencentes à infraestrutura? Reiteramos as palavras de Pêcheux ([1975] 2009, p. 281, grifos nossos) já citadas, porém, acrescidas das que lhes dão continuidade, explicitando, assim, que há possibilidades outras de/do dizer: “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja [...] é preciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, „ousar pensar por si mesmo‟”.

Além disso, da superestrutura, a certeza da institucionalização do seu discurso, a constituição do arquivo, o escrever da história; da infraestrutura, incertezas. Como afirma Rancière ([1992] 1994):

distanciar-se dos sujeitos tradicionais da história e dos meios de verificação ligados a sua visibilidade é penetrar no terreno em que se turvam o próprio sentido do que é um sujeito ou um acontecimento e a maneira pela qual se pode fazer referência ao primeiro ou fazer inferência ao segundo (RANCIÈRE, [1992] 1994, p. 10).

Tais observações tocam aspectos outros a serem considerados. Um deles está relacionado a onde estão inscritos os discursos de e sobre, pois, mesmo que tenhamos os discursos desse sujeito inscrito em dada formação discursiva – em que se instaura “o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 147), garantindo a “eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível” (PÊCHEUX, [1982] 1990, p. 8), este saber pode estar atravessado por outros saberes. Assim, esse sujeito, por tal discurso, (1) pode estar reafirmando/refletindo/ecoando um óbvio, um discurso advindo das superestruturas – e esse óbvio consente/permite a si mesmo “preencher todas as lacunas”, suturando toda a possibilidade de falhas num discurso onde a reiteração nada cede ao novo, constituindo assim um discurso saturado, engessado em pré-contruídos, em que nada se abre a outro interpretar; (2) pode estar deslocando esse óbvio, o que se dá quando pequenos movimentos, deslizes, instauram a não repetição, esse atravessamento esteja monitorado/limitado por um efeito de dominação ideológica; (3) pode estar inaugurando o contraponto ou a negação do que se tem como referência, criando um novo olhar para o objeto, independente do já-dito, do já-instituído como sendo o discurso de x. Essas poderiam então ser diferentes posições-sujeito, possíveis/passíveis de serem identificadas no discurso dos sujeitos em estudo, em que a memória, memória que

se efetiva na/pela língua, toma distintas configurações: saturada e/ou lacunar, com base em Courtine (1999).

Ao refletir sobre a memória, Robin ([2003] 2016, p. 31) afirma-nos que “o passado não é livre”, é ele regido, gerido, preservado, explicado, comemorado ou odiado e, em função disso, celebrado ou ocultado, tratando-se de questão do presente. Nele, apagamentos, esquecimentos, reescrituras, invenções: afinal, há traumas e é preciso saber lidar com isso, trabalho do luto. “Esquecemos, recalcamos, mantemos longe, ou no mais profundo o que incomoda; preenchemos os baús da história de cadáveres, esperando abri-los e reencontrá-los sem reconhecê-los” (ROBIN, [2003] 2016, p. 38). Quando se fracassa, inscrevem-se novas configurações, rearranjo das narrativas sobre as sociedades ou das/pelas sociedades que as contam. De toda forma, para a autora (Ibidem), não há memória justa, tampouco reconciliação total com o passado. Nesse sentido, compreendemos que, tanto nas sobreposições do tecido de uma memória saturada, como nos vãos e desvãos de uma memória lacunar, na memória do sujeito ítalo-brasileiro, funcionam mecanismos do imaginário: se se narram aventuras, compensam-se amarguras e sofrimentos com pequenas vitórias e corajosos feitos; substituem-se carnes fracas com efeitos de palavras; a grande desventura por conquistas a serem socialmente reconhecidas. Nesse jogo, domina a ideologia capitalista, em que o que vale é ser sempre o vencedor.

No que tange à “divisão social do trabalho de leitura”, conforme referido anteriormente, cumpre realizar escutas ao que grita ao nosso próprio estudo: temos de considerar que há uma divisão social relacionada ao que é dado a ler, ao que associamos a quem tem o poder da língua, de usá-la, de significá-la, de contorná- la”, à frente dos quem não têm essa possibilidade, ou seja – refletimos – haveria uma divisão social do trabalho de escritura? – Atrás do belo da identidade de sujeitos imigrantes, há o esquisito; distante daquele que incorpora o herói, há o ogro; longe das Amélias46, escondem-se as Genis47; entre as Amélias e as Genis, outras tantas posições sujeito, atestando a heterogeneidade da constituição do sujeito. No contorno do espaço cênico, iluminado, em suspenso, estão as coxias, dadas à necessária penumbra. Ou ao teatro das aparências, conforme refere Pêcheux que,

46 Referência à composição de Ataulfo Alves e Mário Lago intitulada “Ai, que saudades da Amélia”

(1942); Amélia é a dona de casa resignada, dócil, sem vaidade, “exemplar”.

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ao comentário que faz sobre a manipulação ideológica, com base na teoria de G. Klaus48 de que “as massas estão prisioneiras na caverna capitalista” Pêcheux ([1975] 2009, p. 258), acrescentando que faltaria reconhecer que, em parte, são as suas próprias ilusões que mantêm esse povo encantado (de onde avalia ser a ideologia uma força material). Com base nisso, podemos pensar que, ao lado de uma memória histórica ou de uma história que se pauta pela oficialidade dos registros e dos testemunhos dos grandes nomes – e mesmo dos pequenos, atravessados pela ideologia dominante –, coexistem a voz, a imagem e a letra, tanto dos que podem/puderam se manifestar/registrar suas manifestações quanto dos que passaram e deixaram “suas coisas” à deriva.

Na questão da leitura – e da escritura em pedra, em letra e em voz –, coloca- se também a questão da língua, que é a italiana, e que é a portuguesa, e que é igualmente a brasileira, podendo também não ser nenhuma delas em seu estado imaginário49, podendo ser cada uma delas atravessada uma pela outra – e que poderá também ser o talian – o qual ganhará aqui um espaço específico de estudo e reflexão. De certa forma, não “saber” português garante um dado lugar (ou um não- lugar) na efetivação do processo social do trabalho de leitura; “sabê-lo” instaura o lugar de poder dizer (HAROCHE, [1984] 1992). E, dentro disso, o que é dado a ler? A quem se faz possível dizer?

Nos espaços ocupados pelo sujeito ítalo-brasileiro, há um movimento/um movimentar-se dentro de uma língua e entre línguas: referimo-nos à questão de limites, de fronteiras, o que pode ser assim explicitado: como o sujeito que apreende o italiano em casa apreende o português na escola? Em seu “retorno” ao espaço doméstico, como se dá o funcionamento – convivência, entrelaçamento, escolha? – do falar as línguas? Além disso, e os que - consciente ou inconscientemente – se negam a fazê-lo/dizê-lo, na mesma ou na outra língua, como se colocam/são colocados como sujeitos em relação à língua/às línguas? Muitos preferiram o silêncio e resistiram à língua portuguesa; outros se confortaram na satisfação de tê- la aprendido, e outros se desconfortaram por não estar mais na primeira, na língua materna, e reincidiram em desconforto por estarem incompletos na língua da outra pátria. Por quais imaginários de sujeito na língua circulam tais sujeitos? Scherer

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Filósofo e lógico marxista, cuja obra é comentada por Pêcheux (2009 [1975]), no texto I dos Anexos: “Uma teoria científica da propaganda?” (p. 257-262).

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(2006, p. 20) afirma que “escutando a voz do outro, eu percebo que falar é uma atividade singular de linguagem, uma forma de existir. Marca de singularidade, designação de uma sociedade e invenção de uma utopia à la Babel”. Importantes reflexões com relação à constituição do sujeito na língua, em movimento e inscrição pela voz, pois as fronteiras entre essas línguas também se materializam na oralidade, na forma como tomam o sujeito.

Por esse viés, entendemos serem relevantes duas afirmações, as quais contribuem sobremaneira para o nosso pensar. A primeira é o que nos expõe Orlandi (2007a), em relação à Gramática, que não é em seu conteúdo, mas no modo como se estrutura seu discurso em função de um sujeito de conhecimento que se encontra a marca da interpelação, a de um sujeito que deve se relacionar com o saber da língua, uma vez que ela, em seu processo de produção, faz muito mais do que ser um lugar onde está o conhecimento sobre a língua, a norma que conduz os seus “usuários”:

Ela é a forma da relação da língua com a sociedade na história. [...] É esse sujeito, é esta posição-sujeito que somos convidados (aprendemos) a ocupar quando aprendemos a língua. Ora, esse sujeito não pode resistir à língua sem ser marginalizado ao cair fora da norma (ORLANDI, 2007a, p. 14-15).

A segunda é o dizer de Haroche ([1984] 1992, p. 14):

o irredutível ponto de liberdade e do querer-dizer do sujeito: uma vontade de resistência que subtrai o sujeito à transparência e à linearidade do enunciado, que rompe o laço sintático – propósito lacunar, inacabado, ou, ao inverso, adunção, digressão [...] (HAROCHE, [1984] 1992, p. 14).

Com base nisso, entendemos serem possíveis dois lugares para o sujeito ítalo-brasileiro, com base na relação de assujeitamento: (1) o querer estar dentro da norma de uma língua e não conseguir estar; (2) o não querer estar, instaurando aí um lugar de resistência, quando tudo isso pode falhar, o que caracterizaria, ao lado da injunção ao dizer, a negação ao dizer: zonas de litígio, dano. Diante disso, quando se pensa o discurso, a resistência precisa ser compreendida na relação do sujeito com a interpelação ideológica. No entanto, na apreensão da interpelação ideológica como ritual, “supõe reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, „uma palavra por outra” é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso‟ [...]” (PÊCHEUX, [1975]

2009, p. 277). É a palavra que falta, encontrada na língua outra; é a que escapa, quando se vai incidir sobre o proibido; é a sintaxe que teima em “ser diferente”, é a reiteração de pronomes, as frases-ditados que entram para serem o ponto final das narrativas; são as palavras aportuguesadas, é a necessidade da “correção” do texto escrito, na busca por uma “higienização” na língua da nova pátria. E o que fazer com os sons zês por gês, dos -ãos por -ons, dos -ons por -ãos, e com a fraqueza dos erres? E com a musicalidade acompanhada de gestos largos? Constituem-se memória da uma língua na outra língua e também formas de resistência desse sujeito à sua inscrição na subjetividade da língua do outro. Ou seja, tais marcas/memórias não se reduzem a uma questão fonética, marcam a identidade de um sujeito que está na língua, mas também fora dela e para além dela.

Em nossa epígrafe, trazemos recortes (vividos, recuperados) que atestam a convivência/o confronto entre uma língua que se reconhece em circulação, ganhando diferentes contornos, nuances de tom, som e sentido, uma língua que Orlandi e Souza (1988, p. 34) nomeiam como “língua fluida”, a qual, segundo as autoras, “pode ser observada e reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, através da constituição de formas e sentidos, tomando os textos como unidade (significativas) de produção” e outra, que é circunscrita com a marca do que deve ser, deve-se perseguir, buscar, alcançar, atingir, a “língua imaginária”, línguas que, segundo as autoras referidas (Ibidem, p. 28), “são as línguas-sistemas, normas,