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2. A Criança Vítima de Mau-Trato

2.2 Consequências do Mau-Trato

O maltrato infantil tem consequências para a criança em diferentes aspectos do seu desenvolvimento, designadamente nos domínios físico, cognitivo, comportamental e sócio- emocional. Estas consequências podem caracterizar-se por um carácter pontual ou mais geral e, nalguns casos, abarcar todo o desenvolvimento do indivíduo.

Têm sido destacadas como sequelas principais o atraso do desenvolvimento e crescimento ponderal/estatural, problemas ao nível cognitivo, atraso da linguagem, dificuldades de relacionamento social com crianças e adultos, insucesso escolar, perturbações da personalidade, comportamentos sociais de risco, baixa auto-estima e baixa expectativa pessoal e profissional, aumento da delinquência e da criminalidade (e.g., Canha, 2003; Marcelli, 2005; Mazet & Stoleru, 2003). Associada a estes problemas, a convivência diária com um meio familiar violento e conflituoso promove a aquisição de modelos de vida desajustados, considerados responsáveis pela perturbação da relação entre pais e filhos, e pela transmissão do mau-trato às gerações seguintes (e.g., Belsky, 1999; Canha, 2003).

No que diz respeito ao domínio físico, e segundo Canha (2003), o mau-trato, para além de poder provocar a morte (particularmente se ocorrer no primeiro ano de vida), é susceptível de causar, como se mencionou no ponto anterior, fracturas, hematomas e lesões cerebrais que resultam em défices neurológicos irreversíveis, e ser responsável por muitas outras sequelas a curto, médio e longo prazo. São exemplos disso, os défices motores, as hemiplegias, as crises epilépticas e os défices visuais ou auditivos, os quais conduzem, por vezes, a situações que podem levar a cegueira ou a surdez total (Idem, p. 17). Também na situação de “abano do bebé” ocorrem hemorragias cerebrais que, em função da área atingida e da gravidade da ruptura dos vasos sanguíneos, são susceptíveis de originar lesões permanentes, levando mesmo à morte da criança.

Nas crianças mais novas, uma das perturbações características do maltrato prolongado é o Dwarfism, que se traduz pela falta de produção da hormona de crescimento, a somatotrofina, o que provoca atrasos significativos no desenvolvimento físico, cognitivo e afectivo (Clark & Clark, 1989, citado por Alberto, 2004).

Em termos do desenvolvimento global, observa-se com frequência o atraso nas aquisições relacionadas com capacidades específicas, situação que pode levar a atrasos globais, já que a quantidade e qualidade das interacções estabelecidas é passível de interferir no desenvolvimento de todas as capacidades da criança, cognitivas, motoras, sociais e afectivas (Alberto, 2004).

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Alberto (2004) realizou uma revisão de literatura exaustiva no âmbito das consequências do mau-trato ao nível cognitivo, socio-emocional-e comportamental, sendo com base nessa revisão que se abordará a seguir esta temática.

Relativamente às consequências no domínio cognitivo, sobressai que ocorre amiúde, por parte da criança, uma redução da curiosidade, mostrando-se ela muito passiva e pouco interessada em novas actividades. Adicionalmente, as crianças maltratadas não conseguem m anterinteresse nirni_mesmo,objecto.ouactiyidad_g, apresentam dificuldades dejxmcentração e manifestam problemas de aprendizagem que conduzem a maus resultados escolares e/ou a insucesso. Autores referidos por Alberto (2004) mostram que as crianças vítimas de mau- frato podem apresentar um desenvolvimento intelectual inferior à média e que têm mais deficiências a nível verbal, o que contribui para que, nas escalas de avaliação da inteligência, tenham um quociente de realização mais elevado do que o quociente verbal.

Note-se, contudo, que o fraco desempenho pode não se dever exclusivamente ao mau- trato, já que as crianças englobadas nos estudos visados são geralmente oriundas de famílias pobres, com contextos pouco estimulantes, factores que podem explicar os baixos níveis de desempenho (ver Alberto, 2004).

No domínio comportamental (ver Alberto, 2004) constata-se que muitas crianças apresentam uma diminuição drástica da actividade física, com passividade e inibição no contacto com o meio, o que contribui para reduzir as possibilidades de aquisição de aptidões e comportamentos adaptativos e sociais. Outras crianças, pelo contrário, exibem comportamentos agressivos, desobediência, níveis elevados de actividade (mas com uma valência negativa), q u e se traduz por vezes em problemas comportamentaisTTia escola, evoluindo alguns casos para situações de delinquência.

Refira-se amda que autores citados por Alberto (2004) chamam a atenção para que as crianças maltratadas podem ser passivas e submissas com a autoridade e o poder, e agressivas perante pessoas em que estas características estejam ausentes, estando ainda hipervigilantes para detectar ameaças. Adicionalmente, elas assumem papéis activos de agressão contra os outros, em contraponto a serem vítimas de mau-trato. Também a identificação com o agressor é frequentemente usada como um mecanismo de defesa em situações de ansiedade provocada por medo de ataque, humilhação e abandono. Vários autores citados por Alberto (2004) verificaram que ocorrem nestas crianças distúrbios comportamentais, quer de tipo intemalizante, quer extemalizante, consoante as. características, gerais da criança e dos contextos em que interagem.

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que se refere ao domínio sócio-afectivo, e continuando a apoiar-nos na revisão de j literatura de Alberto (2004), sobressai que as crianças maltratadas podem ter um contacto I social superficial, com dificuldades de comunicação e de adaptação, designadamente no vcontexto escolar. Muitas mostram dificuldade em distinguir o que é desejável e aceite do que é indesejável e punível, e exibem frequentemente comportamentos auto-destrutivos e acções provocadoras que suscitam punição, sendo, ainda, propensas a acidentes, a apresentar depressão e a cometer tentativas de suicídio (ver Alberto, 2004).

A angústia é o elemento principal no quotidiano destas crianças e nas relações que /estabelecem com os pais, sendo a angústia de abandono a mais frequente, para além da / angústia face à agressão e face à solidão nocturna. Estas crianças evidenciam ainda falta de confiança em si e nos outros, falta de segurança, sentimentos de vergonha e de desprezo por si próprias, o que as leva, muitas vezes, a procurar carinho junto de outros adultos, •^independentemente de serem ou não seus conhecidos (ver Alberto, 2004).

Na sequência das experiências vividas com os pais, muitas destas crianças vão tender a esperar pela iniciativa do outro, para dessa forma responder às expectativas deste, o que contribui não só para reduzir o contacto com o mundo como para limitar a manipulação activa do mesmo, mecanismo essencial para uma interacção positiva e um desenvolvimento global adequado (Alberto, 2004).

De notar ainda que as crianças maltratadas, na medida em que são levadas a responder às expectativas dos pais e não às suas próprias necessidades e desejos, têm dificuldade em concretizar, de forma favorável, o processo de separação-individuação, processo este que é parte integrante do seu desenvolvimento (Dean, Malik, Richards, & Stringer, 1986).

Observa-se que as crianças que foram alvo de mau-trato têm amiúde dificuldade em /Organizar um eu estruturado e autónomo, manifestando sentimentos ambivalentes e relações interpessoais perturbadas e percebendo as atitudes agressivas ou negligentes dos pais para com elas como manifestações de rejeição, o que interfere negativamente com a valorização \ do eu e a sua construção (ver Alberto, 2004). Não obstante o mau-trato perpetrado pelos pais, as crianças constroem, muitas vezes, referências positivas e mesmo idealizadas relativamente a estes (ver Alberto, 2004; ver também Berger, 2003).

O futuro destas_cr^ças_dgpendgrá do modo como os factores.de-risco.forem sendo ultrapassados, os riscos precoces e os tardios. Os riscos precoces decorrentes de uma vincülação insegura estão presentes quando as crianças não são desejadas ou são “mal desejadas”, o que é frequente quando os pais são novos e/ou imaturos, as mães estão gravemente deprimidas ou quando as figuras parentais estão psiquicamente perturbadas e

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destituídas de qualidades parentais (Rosinha, 2004; Seabra Diniz, 1993). Estão ainda em risco as crianças que pertencem a famílias que não têm capacidade para assegurar um ambiente cuidador, protector é afectivo, defrontando-se muitas destas crianças com maus-tratos, abandono e abuso sexual. As crianças estão mal preparadas para viverem e conviverem com os outros, devido a uma insuficiente ou mesmo inexistente interiorização das matrizes familiares, têm modelos que são fracos contentores e organizadores da sua vida psíquica, estando também muitas vezes inseridas em ambientes sociais de qualidade insatisfatória (Salgueiro, 1995; ver também Seabra Diniz, 1993).

Na linha de Alberto (2004), consideramos que os custos mais dramáticos do mau-trato se observam não só nas dificuldades ao nível da construção de um Projecto de Vida, mas também no desenvolvimento das potencialidades de cada criança e jovem, situação que os impedirá de atingir a idade adulta na plenitude das suas funções e competências, para além de que o percurso destas crianças facilita ainda o estabelecimento de um ciclo transgeracional de violência.