• Nenhum resultado encontrado

3. Privação Materna

3.1 Diferentes Dimensões da Carência Afectiva

“A palavra mãe conesponde a uma representação intema que cada um de nós foi construindo e elaborando, desde que começou a ter a mais ténue consciência de si e do mundo que o rodeava (...)” (Seabra Diniz, 1993, p. 25).

Provence e Ritvo (1961), e muitos outros autores depois deles (e.g., Bowlby, 1973, 1982b, Marcelli, 2005, Mazet & Stoleru, 2003) acentuaram que todas as experiências de

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de VincolaçSo, Desenvolvimento, Competências Sociais e

separação tendem a ser perturbadoras para uma criança que tenha idade suficiente para discriminar a sua mãe, e tenha estabelecido com ela uma ligação; estas separações são bastante traumáticas para a criança, podendo acarretar graves prejuízos para o seu desenvolvimento.

Tal como descrito por Mazet e Stoleru (2003), a “carência de cuidados matemos”, também designada “carência afectiva precoce”, corresponde a uma insuficiência de interacção entre a mãe e a criança, e integra-se entre as experiências patogênicas que um lactente pode viver.

Segundo Marcelli (2005), a carência afectiva foi objecto de importantes pesquisas entre os anos 40 e 60, numa época em que novas descobertas científicas vieram trazer um novo olhar sobre as crianças e o seu desenvolvimento. Ao longo dos anos foram vários os autores que se interessaram por esta temática, sendo conhecidos os estudos de L. Bender, L. Despert e Spitz nos Estados Unidos da América, de A. Freud e Bowlby em Inglaterra, e de J. Aubry e M. David em França.

Actualmente, a noção de carência de cuidados matemos tem ainda um lugar privilegiado na investigação do desenvolvimento infantil, mas analisam-se outro tipo de questões. De facto, no momento actual não se contesta, por exemplo, os efeitos nocivos das condições de educação e cuidados nas instituições descritas por Sptiz, das colocações prolongadas, ou das repetidas hospitalizações, centrando-se antes a atenção naquilo a que poderíamos chamar “o hospitalismo intra-familiar”, ou seja, nas famílias que não parecem poder dar ao(s) seu(s) bebé(s) ou à(s) sua(s) criança(s) a estimulação necessária (Marcelli, 2005). Estas famílias, denominadas “famílias problema”, “famílias de risco” ou “famílias sem qualidade”, representam o novo campo de interesse para a investigação.

Marcelli (2005) refere que é impossível definir de maneira unívoca a carência afectiva, uma vez que ela é diversa, tanto na sua natureza quanto na sua forma, sendo necessário tomar em consideração a interacção mãe-criança em três dimensões (p. 488):

• Insuficiência de interacção, que remete para a ausência da mãe ou do substituto materno (o que conduz a um acolhimento institucional precoce);

• Descontinuidade dos laços, relacionados com as separações, independentemente dos motivos que as originem;

• Distorção, que se refere à qualidade do contributo materno (mãe caótica, imprevisível e inconsistente).

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de VmculaçSo, Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento

Já Ainsworth (1976) mencionava que o termo “privação materna” podia ser aplicado a vários grupos de crianças em condições familiares diferentes que, isoladamente ou em conjunto, parecem, por vezes, ter consequências semelhantes. Um desses grupos de condições tem sido muito explorado, designadamente a privação que Ocorre quando um bebé (ou uma criança pequena) vive numa instituição onde não dispõe de um substituto materno e onde recebe cuidados maternais insuficientes, resultando daí poucas oportunidades para manter uma relação com uma figura equivalente à materna. Um outro grupo de condições remete para a privação que ocorre quando um bebé (ou uma criança pequena) vive com a sua própria mãe, ou com alguém que se constitui como ura substituto permanente da mãe, mas em que os cuidados recebidos e as interacções estabelecidas são insuficientes. Em ambos os casos, a privação da mãe diz respeito a uma insuficiência de interacção entre a criança e uma figura matema. Por último, temos um grupo de condições, a separação mãe-filho, que também surge com a designação “privação matema”. No entanto, tem que se ter em consideração que separar uma criança da sua mãe não implica que ela sofra, obrigatoriamente, insuficiência de cuidados e de interacção (Ainsworth, 1976). A separação mãe-filho só promove privação de cuidados quando a criança vai viver num contexto (seja ele institucional ou de outro tipo) em que a interacção com o cuidador substituto é insuficiente (e.g., Ainsworth, 1976; Bowlby, 1980). De facto, desde que se proporcione à criança um substituto matemo, com quem ela possa estabelecer uma relação de qualidade, de forma suficientemente continuada, a experiência de separação não conduz necessariamente a um resultado negativo.

Note-se que o termo “privação matema” é igualmente empregue relativamente a outros tipos de interacção mãe-filho, em que possa haver repercussões negativas para a criança, decorrentes, por exemplo, de rejeição, hostilidade, crueldade, indulgência excessiva, controle repressivo ou falta de afecto. No entanto, uma vez que estas formas de interacção não incluem necessariamente insuficiência de interacção nem descontinuidade na relação, é mais apropriado identificá-las como “distorcidas” e não como privação matema (Ainsworth,

1976).

N a sequência do que foi mencionado, fica patente que a carência pode ser quer intra, quer extra-familiar e estar ligada a um défice de estimulações e de contributos afectivos dos pais, à ausência de figuras parentais apropriadas ou, ainda, a experiências de separação precoces e repetidas (Mazet & Stoleru, 2003).

Convém também ter presente que pode haver incoerência e descontinuidade na relação mesmo que não exista a ausência de contacto com a figura matema (Bowlby, 1980;

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de Vinculaçâo. Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento

Rutter, 2002), e ainda que, como antes se indicou, há circunstâncias de vida que impõem a separação da mãe e da criança durante períodos de tempo, que podem ser mais ou menos prolongados, sem que a mãe o consiga evitar, podendo estas separações não acarretar, por si só, efeitos irreparáveis para a criança, como se pensava há alguns anos.

Na prática clínica é difícil observar situações ditas “puras” (já que coexistem vários factores de carência e está muitas vezes associada uma distorção qualitativa da relação), por isso, o estudo clínico da carência precoce de cuidados matemos deve ser feito de forma cautelosa, mais ainda porque as manifestações e as consequências desta carência estão relacionadas com vários factores, tais como a idade, características próprias da criança (por exemplo, o seu grau de tolerância à frustração ou de vulnerabilidade), a intensidade da carência e a sua duração, e ainda a qualidade da relação pré e pós experiência de carência (Mazet & Stoleru, 2003).

Considera-se, tal como Rutter (1972), que a separação é sempre dolorosa para as duas partes e pode ter consequências graves para a criança. No entanto, sabe-se que, em determinadas situações, esta separação é necessária e a resposta institucional é uma alternativa, designadamente face a crianças com comportamentos disruptivos, com dificuldade de auto-controle, que apresentam graves dificuldades em se relacionar com outras crianças e adultos, que passaram por graves situações de mau-trato e violência na família, ou que têm famílias que mostram grande impermeabilidade à intervenção técnica (Zurita & dei Valle, 2005).

E também importante apoiar a mãe, no sentido de a ajudar a lidar com a situação de separação e, enquanto a reunificação não se verifica, tentar proporcionar à criança uma relação substituta que ajude a minorar o seu sofrimento (Rutter, 1972).

Em conclusão, e na linha do que é defendido por Seabra Diniz (1993), “(...) a carência (ou o abandono) tem várias facetas. Antes de mais, é uma situação externa socialmente identificável e caracterizada. Deste ponto de vista, remete-nos para os perigos materiais que a criança pode correr por falta de quem dela cuide (pelo menos com o mínimo de qualidade) e para os meios que é preciso mobilizar para garantir a sua sobrevivência e o bem-estar. Por outro lado, a carência (ou o abandono) é também uma situação interna da criança, um estado emocional, um sofrimento que a atinge profundamente e impede a sua evolução psicológica normal” (p. 33). Daí a necessidade de promover a continuidade e estabilidade nas relações afectivas substitutas, e não contemplar somente os cuidados materiais e funcionais que as crianças precisam para não correr riscos imediatos (físicos e/ou psicológicos), tal como aconteceu durante muito tempo no contexto institucional (Idem).

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de Vtoculaçâo, Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento