• Nenhum resultado encontrado

2. A Criança Vítima de Mau-Trato

2.1 Definição de Mau-Trato

Ao longo do tempo, não tem sido fácil nem consensual definir o que é mau-trato, os seus diferentes tipos, e quais as repercussões destas experiências no desenvolvimento das crianças. Para a dificuldade de clarificação e consenso face a esta temática têm contribuído as diferenças sócio-culturais e os próprios referenciais pessoais. De facto, actos que para uns indivíduos e grupos sócio-culturais são formas de educar e disciplinar, para outros podem ser identificados como formas de mau-trato. Contudo, é hoje aceite que o mau-trato infantil constitui uma forma particular de violência, com aspectos específicos que importa observar e analisar.

O mau-trato e a negligência devem ser encarados como uma construção social na medida em que são um produto de diferentes culturas e contextos, conforme o demonstram diversos estudos (e.g. Belsky, 1980; Canavarro, 1999). Contudo, como reflectem Colen e colaboradores, quando nos centramos numa mesma sociedade somos igualmente confrontados com problemas no que se refere à imprecisão das dimensões que integram as diferentes definições técnicas (legais, serviço social ou médicas), para além de existir ainda variabilidade nas definições em função dos diferentes objectivos a que se destinam, e imprecisão na definição de graus e tipos de perigo (Colen et al., 2005).

Apesar da amplitude do conceito e das suas classificações, tem sido possível encontrar alguns pontos de confluência, entre os diferentes autores, definindo-se o mau-trato como englobando situações de violência física intencional, abuso sexual, violência psicológica ou

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de VinculaçSo, Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento

moral, omissão ou inadequação dos cuidados e interferência no normal desenvolvimento da criança (e.g. Alberto, 2004; Rosinha, 2004).

Assim, em geral, o mau-trato infantil engloba uma diversidade de atitudes violentas contra a criança, podendo estas ter um carácter passivo (negligencia, abandono) ou activo (abuso físico, abuso sexual) as quais, independentemente da intencionalidade do agressor, são susceptíveis de ter consequências nefastas para a criança (visíveis ou não), em qualquer área do seu desenvolvimento (Bruynooghe, 1988).

No que se refere a definições específicas, Wolfe (1985) define o maltrato infantil inserindo-o num “(...) contínuo dos comportamentos parentais que incluem interacções afectuosas num dos pólos, e o abuso extremo no outro pólo (...)”, com " injúria(s) física(s) não acidental(ais) que resultam de actos (ou omissões) por parte dos pais ou substitutos e que viola(m) os padrões comunitários relativos ao tratamento das crianças” (Wolfe, 1985, p. 464).

Coimbra, Faria e Montano (1990) apresentam uma definição mais alargada de mau- trato infantil que “(-.) compreende todas as acções dos pais, familiares ou outros que provoquem um dano físico ou psicológico (...), ou que, de algum modo, lesionem os direitos e necessidades da criança no que diz respeito ao seu desenvolvimento psicomotor, intelectual, moral e afectivo. Compreende ainda a negligência definida como o conjunto de carências de ordem material e/ou afectiva que lesionem os direitos e as necessidades psico-afectivas e físicas da criança “ (pp. 193-194).

Por sua vez, M. Calheiros (1996) realça que “a imagem de negligência aparece associada à definição de situações de falta de acompanhamento, supervisão e a uma educação cujo problema central parece ser a ausência de uma organização natural do dia-a-dia da criança (..), enquanto numa situação de mau-trato as pessoas garantem o cumprimento das questões básicas de relação, saúde, ensino, alimentação, observando-se actos parentais mais graves, anti-normativos e intencionais” (pp.173-174). Esta autora, no seu estudo dirigido para a definição e avaliação do mau-trato, organiza o mau-trato e a negligência em quatro tipos diferentes - mau-trato psicológico, mau-trato físico, negligência psicológica e negligência física. A autora refere que os padrões de educação negligente se encontram relacionados, no seu estudo, com o nível sócio-económico e cultural das famílias, e em que há uma desculpabilização/aceitação deste tipo de atitudes. Pelo contrário, as experiências abusivas encontram-se associadas com actos parentais anti-normativos, praticados com uma intencionalidade.

Também segundo Canha (2003) os maus-tratos podem ser classificados em diversos tipos: o mau-trato físico, a negligência, o abuso sexual, o mau-trato psicológico, o abandono,

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de Vinculaçâo', Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento

a rejeição e o síndroma de Munchausen por procuração. Cada um destes tipos de mau-trato pode ser exercido isoladamente. Contudo, é mais frequente a associação e coexistência de vários tipos de agressão face à mesma criança, o que, compreensivelmente, agrava as suas repercussões sobre ela. Apresenta-se em seguida a caracterização que a autora faz de cada uma das dimensões focadas (ver pp. 21 -22).

No mau-trato físico, cujo protótipo é a criança batida, incluem-se situações como a criança ser abanada, as equimoses e hematomas, os ferimentos, as queimaduras, os traumatismos crânio-encefálicos, as fracturas, as intoxicações, a sufocação e o afogamento. Por sua vez, a negligência consiste na incapacidade de proporcionar à criança uma satisfação das suas necessidades básicas, designadamente ao nível da higiene, alimentação, saúde, afecto e vigilância, todas elas indispensáveis para um desenvolvimento normal. No que se refere ao abuso sexual, ele está relacionado com o envolvimento da criança ou adolescente em actividades que visam a satisfação sexual de um adulto (ou de outra pessoa), geralmente sob coacção (força/ameaça). Incluem-se na definição a participação da criança em actividades de exibicionismo, fotografias ou filmes pornográficos, o contacto com órgãos sexuais, a penetração anal ou vaginal ou práticas sexuais aberrantes. A criança pode, pois, ser abusada sexualmente sem que apresente lesões físicas, nomeadamente nos órgãos genitais. Ém relação ao mau-trato psicológico ele remete para a incapacidade em proporcionar à criança um ambiente de tranquilidade e de bem-estar emocional e afectivo. Esta forma de mau-trato inclui a ausência de afecto, as recriminações e humilhações verbais frequentes, bem como as situações de grande violência e conflito familiar que suscitem medo e um clima de tenor. Por seu tumo, o abandono diz respeito às crianças abandonadas nas matemidades, hospitais ou outras instituições, ou a crianças fechadas em casa, deixadas na rua, sem providência de alimentação e vigilância. A rejeição relaciona-se com o não reconhecimento da criança como elemento da família, por parte de um ou de ambos os progenitores, situação associada à ausência de ligação afectiva e emocional. Por último, o síndroma de Mimr.hanwn p0r procuração consiste na simulação, por parte de um elemento da família, de sinais e sintomas, criando doenças na criança que obrigam a sucessivos exames, muitas vezes invasivos, e a internamentos.

Na linha da caracterização que Bruynooghe (1988) faz das atitudes violentas contra a criança, com carácter passivo ou activo, já antes apresentadas, o autor agrupa o mau-trato da seguinte forma: a violência física incluiria o abuso físico e o abuso sexual; a violência passiva incluía a negligência e o abandono. Este autor considera ainda o abuso psicológico

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de Vmcolaçâo, Desenvolvimento. Competências Sociais e Comportamento

(emocional), o qual se pode enquadrar em qualquer uma das formas anteriores ou apresentar- se isoladamente.

Conforme sobressai na literatura, e é referido por Alberto (2004), esta última forma de mau-trato, o psicológico, é talvez a mais difícil de ser avaliada, uma vez que se dilui noutras formas de abuso e nas situações mais vulgares do quotidiano familiar e institucional. De facto, o maltrato psicológico tem a particularidade de estar presente nas outras formas de mau-trato; cada uma delas representa violência, contra uma pessoa, uma personalidade que é atingida na totalidade e não apenas num segmento (Idem, p. 32).

Por sua vez, Claussen e Crittenden (1991) inscrevem, dentro do mau-trato psicológico, a negligencia sócio-emocional e o abuso emocional que incluiria ostracismo, exploração sexual, falta de atenção, recusa de tratamento, ausência de afecto, falta de estabilidade, falta de afeição física, punição física, expectativas não razoáveis, punição psicológica, disciplina prematura, recusa de independência e difamação da criança.

No que se refere ao abuso físico, ele traduz, de uma forma global, toda a violência exercida contra a criança, muitas vezes considerada na sua dimensão disciplinar e educacional (Alberto, 2004). A autora acentua ainda que ele é amiúde abordado de forma genérica no mau-trato infantil, falando-se muitas vezes deste exclusivamente na sua dimensão de abuso físico.

A negligência, por seu turno, é considerada por diversos autores, incluindo Alberto (2Ò04), como a forma de mau-trato mais frequente, e que se caracteriza, na linha do referido por Canha (2003) e outros autores, pela falha em responder às necessidades da criança, sejam necessidades educacionais, alimentares, de higiene, sanitárias ou afectivas.

Deste modo, e ainda de acordo com Alberto (2004), “enquanto a negligência é a forma passiva de violência em que se mantém alguma relação entre os pais e os filhos, no abandono, a rejeição é total (...); é o não assumir das funções parentais” (p. 31) em termos de protecção, educação e cuidados dos filhos. Com efeito, na negligência os pais não assumem a sua função de cuidar dos filhos aos vários níveis (alimentar, médico, escolar, social, afectivo, etc), ignoram os filhos e não se relacionam com eles (quer de forma positiva, quer negativa), crescendo estes, muitas vezes, entregues a si próprios. Como referem Clark e Clark (1989, citado por Alberto, 2004), a negligência poderá ser mais difícil de se observar do que outras formas de mau-trato, nomeadamente o mau-trato físico, na medida em que ela pode ser essencialmente psicológica, isto é, os pais asseguram à criança as necessidades materiais mas ignoram as suas necessidades sócio-afectivas.

Crianças Acolhidas em Lar Residencial: Representações de Vinculaçáo, Desenvolvimento, Competências Sociais e Comportamento