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Refletir sobre a participação das mulheres nos movimentos sociais e, em especial, no Movimento sem teto representou um desafio tanto pela especificidade das características do movimen- to, que tem na sua maioria mulheres, quanto pela proposta de entender este Movimento sob a ótica de gênero, buscando trazer à tona questões que são frequentemente desconsideradas em di- versos estudos sobre os Movimentos Sociais Urbanos.

Analisar a participação das mulheres neste Movimento, as suas relações e ações, na perspectiva de gênero, significou rom- per com o simples olhar “genérico” inicial do pesquisador, que se modificou durante a construção do objeto de pesquisa. Significou mergulhar num debate em que as relações de poder se configu- ravam e ainda se configuram como práticas impulsionadoras na definição da condição das mulheres na dinâmica do Movimento.

A participação é tomada nesta pesquisa como a luta por direi- tos, por aquilo que lhe está sendo negado e a busca por aquilo que lhe pertence, serviu para entender o envolvimento das mulheres do Movimento Sem teto, na conquista pela moradia, pois as mes- mas tomavam (tomam) parte e eram (são) parte do processo polí- tico na conquista da cidadania ativa, mesmo que “invisibilizadas” nas instâncias de poder do movimento, na mídia, por pesquisa- dores/as, etc.

A iniciativa de mudar as condições desfavoráveis e de pobreza em que se encontravam (encontram), juntamente com filhos/as e outros familiares, impulsionava (impulsionam) as mulheres a rea- lizarem inúmeras tarefas fundamentais para a sustentação e exis- tência do Movimento. tarefas estas relacionadas à esfera pública – participação em “cargos” de liderança do Movimento, nas as- sembleias, nos cursos de formação nas ocupações, manifestações públicas, passeatas, resistências nas ocupações – mas, estando em

maioria, na esfera privada – limpeza da ocupação, feitura dos ali- mentos, cuidado com os/as filhos/as e nas atividades da casa.

Ao mesmo tempo em que foi possível enxergar as mulheres em toda a dinâmica do movimento e na “vida” cotidiana dessas ocupações, o pressuposto da invisibilidade das mulheres na ação política no Movimento Sem teto em Salvador se comprova, pois a presença das mulheres nas instâncias de tomada de decisão do Movimento não garante o reconhecimento merecido das mesmas enquanto sujeitos políticos, já que a lógica patriarcal no “fazer política” se consolida nas ações de um número maior de homens ocupando tais espaços em detrimento das mulheres, mesmo estas sendo as mais envolvidas nas atividades do cotidiano do movi- mento. Aspecto que vem sendo legitimado por conta da cultura patriarcal das sociedades, onde as atividades dos homens são in- variavelmente reconhecidas como mais importantes se compara- das às atividades realizadas pelas mulheres, tendo assim, maior prestígio e valor.

Concordando com Joan Scott (1991), isso se deve à ideologia das esferas separadas, em que as mulheres são definidas como seres exclusivamente do âmbito privado, restringindo a sua par- ticipação na vida pública e política que reforça sua invisibilidade e desvalorizando suas atividades, o que impossibilita seu reco- nhecimento na sociedade como sujeitos históricos e agentes de mudança.

Dessa forma, ao se envolverem nas atividades do cotidiano (consideradas aqui como atividades também políticas), assumem funções “menos valorizadas” e distantes das atividades construí- das como de maior valor, quando pensadas sob a lógica da socie- dade androcêntrica e patriarcal. As atividades ou funções estão diretamente relacionadas às necessidades da vida, que envolve melhoria das condições de sobrevivência, habitabilidade e susten- to dos/as filhos/as e, principalmente, por sua condição de mãe,

esposas e donas de casa, responsáveis por todos/as. Entretanto, são estas atividades assumidas exclusivamente pelas mulheres nas ocupações que garantem a existência, manutenção e organização do Movimento, fazendo deste um movimento político e social.

A construção patriarcal da divisão das atividades sociais re- percute como entrave e impede o empoderamento das mulheres do Movimento, influenciando diretamente no número reduzi- do nas instâncias de decisão nas ocupações (principalmente as funções de coordenação). O empoderamento é um mecanismo processual e que envolve diversos componentes, quais sejam: cog- nitivo, psicológico, político e econômico. Esses componentes são compreendidos em graus diferentes pelas mulheres do Movimen- to, dependendo do tipo e grau de envolvimento destas nas ações e práticas cotidianas no interior e fora das ocupações. O grau de compreensão dos componentes do empoderamento vai implicar no rompimento ou não das relações patriarcais presentes fora e dentro das ocupações, relações essas que se apresentam como en- traves e desafios ao empoderamento das mulheres.

Mesmo existindo entraves que excluem grande parte das mu- lheres do Movimento Sem teto das instâncias de decisão e poder, algumas transpõem esses entraves, ao romper com as amarras do patriarcado, a partir da compreensão da sua subordinação, como obstáculo ao seu empoderamento na luta pela moradia e na ga- rantia de seus direitos como cidadãs.

As mulheres buscam colocar em prática ações para melhorar sua condição de vida, acreditando nas mudanças a partir do esfor- ço coletivo e individual no Movimento. Isso contribui para o em- poderamento dessas mulheres, através da participação na política do cotidiano do Movimento, pois consideramos as atividades de garantia das necessidades da vida humana (específico do espaço privado) como atividades políticas e necessárias para a manuten- ção, existência e sobrevivência do Movimento Sem teto. Sem o

engajamento dessas mulheres na política do cotidiano, onde são maioria, não seria possível construir e manter um movimento social que tem como principal objetivo suprir uma necessidade básica, a moradia, que é considerada na sociedade patriarcal “o lugar” da mulher.

As mulheres predominam como participantes no Movimen- to Sem teto, desenvolvendo diversas ações de caráter público e privado, como descrito anteriormente. Embora, muitas vezes es- tejam mais presentes na realização de atividades da esfera da ne- cessidade da vida, elas também participam nas esferas de decisão. É na prática da ação política nas esferas pública e privada que a cidadania torna-se um componente fundamental para que essas mulheres se tornem ativamente participantes, podendo influen- ciar nos processos de decisões em diferentes instâncias, buscando conquistar interesses comuns, como a moradia.

Assim, o problema da moradia, elemento impulsionador da luta das mulheres “sem teto”, não pode ser entendido como um aspecto isolado e sim como um reflexo da dinâmica complexa da sociedade e das relações sociais construídas ao longo dessa luta em Salvador, que inclui tanto a realidade social quanto econômi- ca das personagens envolvidas. Entendemos que a necessidade ou luta de/por moradia não pode ser reduzida à conquista do bem material (a casa propriamente dita), mas deve englobar a vontade coletiva, individual e as articulações das pessoas em seu meio cul- tural e familiar. (BRANDãO, 1978)

O Movimento Sem teto, nesse contexto, representa uma al- ternativa de conquista da moradia pela sociedade civil organiza- da, com nível de renda mais baixo, caracterizando-se, portanto, como um espaço de demanda, sobretudo das mulheres. Através desse Movimento as mulheres se inserem na arena pública, onde as demandas habitacionais se configuram em diferentes setores sociais e varia na própria dinâmica dessa coletividade, visando

conquistar a cidadania. Os movimentos sociais como um todo deixam indícios de possibilidades de mudanças e de construção de outra maneira de pensar as relações de poder nestas instâncias e fora dela.

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