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violência contra a mulher em Conceição do Coité-BA (1980-1990)

Zuleide Paiva da silva

Cecília Maria Bacellar sardenberg

Introdução

Vivemos em uma sociedade marcada por profundas desigual- dades sociais, onde o fenômeno da violência pode ser encontrado a todo o momento, em todos os espaços, como um vírus que con- tamina as pessoas e produz a cada dia mais vítimas, a violência é (re)produzida de diferentes formas, sendo a Violência Contra a Mulher (VCM) uma das suas expressões mais cruéis, a que mata mulheres e causa males terríveis em toda a família.2

1 título do quarto capítulo da dissertação: Conceição do Coité em “quadrado”: retratos da violência

contra as mulheres (1980-1998), orientada pela professora Cecília Maria Bacellar sardenberg,

defendida em julho/2010.

2 O caráter endêmico da violência contra a mulher pode ser encontrado nos trabalhos Violência

O Mapa da Violência 2010, realizado pelo Instituto Sangari, com dados do Sistema Único de Saúde (Datasus), nos anos de 1997 a 2007, mostra que, no período analisado, 10 mulheres morreram vítimas de homicídio no Brasil, o que é um índice de 4,2 assassi- natos por 100 mil habitantes. (WAISELFISZ, 2010) As taxas de as- sassinatos femininos no Brasil são mais altas do que da maioria dos países europeus, em que os índices não ultrapassam 0,5 por 100 mil habitantes. A Bahia, segundo dados divulgados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, ocupa o segundo lugar no ranking de atendimentos do Ligue 180, serviço nacional que presta infor- mações e recebe relatos de violência contra as mulheres. De ja- neiro a outubro de 2011, foram registrados 53.850 atendimentos envolvendo mulheres baianas. O estado só perde em números para São Paulo, que lidera o ranking do Ligue 180, com 77.189 ca- sos. Em 72% das situações registradas na Bahia, os agressores são os cônjuges das vítimas. Para Vera Lúcia Barbosa, a Secretária de Política para Mulheres, “é preciso mudar a cultura machista baia- na”. (MARQUES, 2012)

Enquanto não mudamos a cultura machista, a violência impe- trada contra as mulheres negras, brancas e de todas as etnias tem múltiplas faces. Uma delas tem sido invisibilizada, tanto pelo gê- nero como pela raça. Este é o caso da lesbofobia,3 entendida como uma das manifestações da fobia que se revela quando se toma as diferenças de orientação sexual entre as pessoas como fonte de preconceito e de discriminação. (SANtOS, S., 2005)

(2005), de Mércia Carréra de Medeiros, nos quais as autoras discutem, respectivamente, sobre o quadro epidemiológico do fenômeno e a necessidade de “divulgar o problema com o intuito de reconhecer sua gravidade, tentar prevenir, denunciar e deter o quanto antes o vírus da violência contra a mulher”. (MedeirOs, 2005, p. 103)

3 a lesbofobia caracteriza-se por toda a ordem de violência física, psicológica e simbólica cometida contra mulheres que vivenciam uma relação afetivo-sexual com outras mulheres.

A prática de violência contra pessoas LGBtt4 avança pelas ruas, praças, casas, religiões, profissões, instituições, incluindo o Estado, silenciada frente à ausência de direitos desse segmento. Homens e mulheres no seu cotidiano também cometem discri- minação quando debocham, ridicularizam, disseminam piadas preconceituosas, ou até mesmo agridem, chegando a casos extre- mos de linchamento e homicídios que se traduzem em uma das formas de “crimes de ódio”. Os crimes de ódio, diz Silvana Santos (2005), revelam a ausência de regras civilizatórias e o funciona- mento de uma espécie de “Estado paralelo” que julga, condena e executa sumariamente homens e mulheres. No caso dos crimes de ódio contra os segmentos LGBtt, eles são patrocinados por uma sociedade homofóbica que atribui pena capital pelo fato desses in- divíduos orientarem sua vida sexual fora dos padrões da hetero- normatividade.5 (SANtOS, S., 2005)

A lesbofobia e todas as formas da violência de gênero revelam a fragilidade das relações humanas, responsável pela promoção e pela materialidade da manutenção de uma organização social de gênero terrivelmente iníqua, onde as diferenças são transforma- das em desigualdades produtoras e mantenedoras da VCM. Essa fragilidade das relações humanas também faz da VCM um espe- táculo da sociedade da informação, onde atuamos, conectados, plugados em diferentes redes sociais, ora como protagonistas, agentes diretos da VCM, ora como coadjuvantes, nos indignan- do, denunciando, intervindo, ou mesmo assistindo e nos calando,

4 lésbicas, Gays, Bissexuais, travestis e transgêneros. ver Facchini (2005), que discute os movimentos homossexuais e a produção de identidades coletiva.

5 a heteronormatividade é compreendida como uma norma social regulatória. a heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as o obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e fundamento da sociedade. Os estudos revelam heteronormatividade como algo que marca toda a sociedade. O termo é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade. seu objetivo é criar sujeitos heterossexuais ou organizar a vida humana a partir do modelo heterossexual, que é supostamente natural e superior. (MisKOlCi, [2010?])

como fazemos diante de imagens que transformam as mulheres e seus corpos em “coisas” que não importam àqueles que assistem.

Porém, apesar de afetar a qualidade de vida das mulheres, de gerar insegurança e medo, além de sofrimentos físicos, mentais, sexuais, coerções e outras formas de privação do direito à liberda- de, os organismos internacionais somente começaram a se mobi- lizar de forma mais efetiva contra esse tipo de violência depois de 1975, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o “Dia Internacional da Mulher”. A partir dessa data, as mulheres, em especial as feministas, fizeram emergir as dores da violência até então caladas no corpo, tornando público aquilo que era priva- do. Desde então, a questão da VCM tomou novos rumos, tornou- -se questão de saúde pública, uma violação dos Direitos Humanos e objeto de estudo em diferentes áreas do conhecimento.

Um levantamento detalhado de trabalhos produzidos no âm- bito acadêmico no Brasil, no período de 1975 a 2005 sobre a VCM, foi realizado pela pesquisadora Miriam Grossi (2006), que reuniu 286 trabalhos em diferentes áreas. A maior parte dessa produção acadêmica analisada dialoga com as lutas feministas, configuran- do um movimento de mão dupla, isto é, “sendo influenciada por elas e, ao mesmo tempo, sendo capaz de influenciá-las”. (GROSSI, 2006, p. 20) Quanto às matrizes explicativas que conduzem esses trabalhos, Grossi pontua que, no início dos anos 90, quando havia ainda poucos estudos empíricos sobre o tema, por mais diversifi- cados que fossem esses estudos, aqueles que vieram a se constituir como referências sobre a temática pareciam remeter a dois gran- des paradigmas teóricos: um centrado no patriarcado,6 que tem

6 sobre o patriarcado ver Pateman (1993) e saffioti (2004). em conjunto essas autoras apresentam o patriarcado como único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher e que singulariza a forma de direito político que todos os homens têm sobre as mulheres pelo simples fato de serem homens. Porém existem argumentos contra o seu uso, mas saffioti, assim como Pateman, recusam-nos.

H. Saffioti (1992) como expoente, outro centrado no relativismo,7 cujo expoente é Maria Filomena Gregori (1992).

Influenciada pelas autoras do patriarcado, mas atenta às auto- ras do relativismo, iniciei em julho de 2008 uma pesquisa quanti- -qualitativa nos “Livros de Queixa” da Delegacia de Conceição do Coité. Após aproximadamente 7 meses, o levantamento total foi realizado em 16 livros, registrado um total de aproximadamen- te 5.647 denúncias de diferentes tipos de crimes: roubo de ani- mal, de documento, arrombamento de casa, brigas de homens, de mulheres, assaltos, homicídios, entre tantos outros. Desse total, 647 foram protagonizadas por mulheres e meninas em situação de violência.

Compreendendo a VCM como uma violação dos direitos hu- manos, “Qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAçãO DOS EStADOS AMERICANOS, 1994 apud PANDJIARJIAN, 2006, p. 85), sem, contudo, negar a noção de VCM como uma cena, um espetáculo produzido e difundido por diferentes canais de comunicação,8 os dados obtidos foram sistematizados, analisados e apresentados como uma cartografia, constituída dos seguintes elementos: a) área de maior incidência do fenômeno; b) perfil dos(as) protagonistas das cenas de violên- cia (“queixosa” e “queixado(a)”); c) responsáveis pela denúncia; d) tipologia da violência denunciada.

7 O paradigma do relativismo concebe a violência como uma forma de comunicação e um jogo do qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice”. nessa perspectiva, a vCM é apreendida como parte da relação afetivo/conjugal. (GrOssi, 1998)

8 Pensar a violência de gênero contra a mulher como uma cena significa levar em conta o campo discursivo, de onde emerge a dominação-exploração-racismo-sexismo como um único fenômeno apresentando múltiplas faces, que se misturam, se encaixam, se (re)produzem e se difundem, criando limites e significados linguísticos com implicações no corpo material, isto é, criando realidades. tomo de empréstimo, a noção de corpo como veículo de transmissão do acervo cultural acumulado. (saFFiOti, 2008) nessa perspectiva a sexuação dos corpos não se dá pela anatomia, mas pelo enquadramento em uma ordem social androcêntrica e heterossexual.

Reconhecendo os limites da referida pesquisa, o propósito deste artigo é apresentar “retratos” da VCM em Conceição do Coi- té no período analisado.

A “queixa”, a “cena” e a sub-notificação: