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Outras tantas faces da violência contra a mulher (VCM) em Conceição do Coité-BA

A violência apresentada na cena 1, protagonizada por Judite, é um tipo de “violência sexual, entendida como

[...] ação que obriga uma pessoa a manter contato sexual, físico ou verbal, ou a participar de outras relações sexuais com uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipula- ção, ameaça ou qualquer outro mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal. Considera-se como violência sexual também o fato de o agressor obrigar a vítima a realizar alguns desses atos com terceiros. (LEI... )

Esse tipo de violência representa 8,5% das VCM denunciadas. O estupro consumado representa 40% do universo de crimes se- xuais, a sedução representa 18%, a ameaça e a tentativa de es- tupro, 27%, o abuso sexual 13% e o atentado violento ao pudor

18 todas as tipologias, ou faces da violência contra as mulheres aqui indicadas foram categorizadas tendo como referência o Portal da violência contra a mulher. (lei...)

representa 2%. Onde foi possível identificar a idade das mulheres estupradas, observamos que 88% delas tinham idade entre 10 e 26 anos, o que corrobora com a noção de que as mulheres mais jovens estão mais propensas a esse tipo de violência.

Além da violência sexual, a personagem aqui citada sofreu violência física, entendida como “ação ou omissão que coloque em risco ou cause danos à integridade física de uma pessoa”. (LEI...) A violência sexual seguida de violência física representa 29% das cenas denunciadas. Enquanto categoria, a violência física é formada por lesão corporal e tentativa de agressão/assassinato.

A violência física está presente em todas, ou quase todas, as cenas de violências analisadas. Uma dessas foi vivida em praça pú- blica por Jane (cena 2), que contou com o seu irmão para denun- ciar a violência por ela sofrida. O histórico da cena ressalta que o irmão da Jane, identificado apenas como “queixoso”, denunciou um indivíduo que “agrediu fisicamente a sua irmã por parte de pai, na altura do rosto, chamando-a de “puta”, “bregueira”, “sa- patona” e “sinônimos”. Consta no histórico da cena que o queixo- so, em defesa da sua irmã, deu um murro no “queixado”, que foi levado pelo “policiamento”, mas liberado instante depois. Após ter sido liberado, o agressor ameaçou de morte o queixoso e a sua irmã sapatona.19

Levando em conta o xingamento “sapatona”, comumente usado para identificar uma mulher homossexual que assume per- formance masculina, afastando-se completamente das normas esperadas do comportamento do feminino, é possível dizer que o pano de fundo da cena de violência vivida por Jane é a lesbofobia, violência sofrida por mulheres homossexuais em função do seu gênero e da sua orientação sexual.

As teorias do século XIX que trataram a homossexualidade fe- minina, também chamada de lesbiandade, como doença passível

de cura e tratamento, influenciaram os profissionais da ciência do início do século XX, que produziram como verdade a noção de que o relacionamento amoroso e a prática sexual entre mulheres são desvios sexuais, comportamento de pessoas doentes, peri- gosas, perversas, nocivas ao convívio social. (NOGUEIRA, 2008, p. 63) Até mesmo Beauvoir (1949), matriz teórica do pensamento feminista, via as lésbicas como seres invertidos, incompletos, ir- realizados.

As verdades produzidas pelo androcentrismo20 da ciência criaram imagens “[...] forjadas no cadinho dos enunciados do senso comum, cuja repetição criava a realidade: machonas, vira- gos, feiosas, mal amadas. Rebotalho da natureza, desprezadas ou detestadas pelos homens”. (SWAIN, 2002)

A lesbofobia é o efeito desses discursos sobre o corpo e sobre a “alma” das lésbicas.

Que as lésbicas vivam a sua sexualidade em segredo, que não mostrem sua/nossa existência à sociedade, é o desejado pelo “pensamento hetero”,21 produtor de verdades e de silêncios que visibilizam, marginalizam, maltratam, agridem e matam as lésbi- cas, como o fizeram com Geane, 28 anos, negra, pobre, moradora da periferia, mãe, “sapatona”, personagem da primeira cena de homicídio lesbofóbico registrado na história de Conceição do Coi- té.22

Se Jane era lésbica, se fazia sexo com mulheres e as amava como fazem as “sapatonas”, a história dificilmente saberá. Jane é uma excluída da história. Dela, além do nome e da agressão sofri-

20 O androcentrismo é apresentado por Moreno sarda (1987, p. 23) como “enfoque de um estudo, análise ou investigação a partir da perspectiva unicamente masculina, e utilização posterior dos resultados válidos para a generalização dos indivíduos, homens e mulheres [...]”.

21 O “pensamento hetero” é apresentado por Monique Wittig (1980) como um conjunto de discursos produtores da heterossexualidade compulsória.

22 O assassinato de Geane foi cometido na periferia da zona urbana, pelo filho da sua companheira, um garoto de 10 anos. (adOlesCente..., 2008)

da, lesão corporal, a queixa nada mais informa, fato que dificulta, ou mesmo impossibilita a sua identificação.

A lesão corporal é conceituada no art. 129 do Código Penal

Brasileiro23 como uma ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem. No geral, as cenas de violência física representam 63% das violências denunciadas. Deste total, 90% são referentes à le- são corporal e 10% à tentativa de agressão/assassinato. O xinga- mento caracteriza outro tipo de crime, a violência moral, definida no glossário do Portal da Violência contra as mulheres como “ação destinada a caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação da mulher”. As cenas de violência física acompanhadas de violên- cia moral representam 9% das queixas analisadas.

Uma das mulheres que conheceu os efeitos da violência moral através do dissabor do xingamento foi Celia, professora, morado- ra da zona urbana, cuja idade, escolaridade e estado civil não fo- ram informadas. A queixa é sintética (cena 3): diz apenas que Célia compareceu ao:

[...] complexo policial queixando-se que estava na secretaria da escola Professor Cezenando Gonçalves da Silva, quando Maria da Silva lhe agrediu com palavras de baixo calão – ‘descarada’, ‘nigrinha’ e outros.24

As palavras de “baixo calão” a queixa também não diz. Mas o termo “nigrinha”, a princípio, sugere que Célia é uma mulher que apresenta fenótipos de mulher negra e que o pano de fundo dessa cena é o racismo naturalizado, invisibilizado pelo mito da democracia racial. Seguindo este raciocínio, a escola, evidenciada como local da cena, provavelmente o local de trabalho da profes- sora Célia, confirma a noção da escola como local de produção do feminino, do masculino e das hierarquias entre os sexos e a raça,

23 ver Greco, r. (2010).

24 livro de Queixas de 1985 a 1988. Queixa n.28/87 de 15/09/1987. arquivo depol/Conceição do Coité.

fato que a torna um espaço privilegiado para a desconstrução do racismo e do sexismo. (CARDOSO; SILVA, 2009)

Se Célia é uma mulher negra, se a sua agressora era uma mulher branca, também não é possível afirmar, uma vez que a queixa por ela registrada, assim como todas as demais queixas analisadas, é silenciosa em relação ao quesito raça/etnia. A violência denuncia- da é identificada na queixa como “agressão moral”, possivelmen- te em função das palavras de “baixo calão”. Se foi motivado pelo racismo, também não é possível afirmar, apenas inferir. O fato é que a violência moral, categoria que compreende o xingamento, o desacato, a calúnia, representa 14% das violências denuncia- das no período em questão. Desse total, 4% são acompanhadas de violência patrimonial e 11% de violência psicológica. Além das violências sexual, física e moral, encontramos registros de violên- cia psicológica e patrimonial protagonizadas por mulheres.

A violência patrimonial, definida pelo glossário do Portal da Violência contra a mulher como “ato de violência que implique dano, perda, subtração, destruição ou retenção de objetos, do- cumentos pessoais, bens e valores”, está presente em diferen- tes cenas de violência física e moral e psicológica. Apenas 0,1% das “queixas” analisadas referem-se exclusivamente a esse tipo de violência. É o caso da cena narrada por dona Márcia, 27 anos, moradora da zona urbana (cena 3) que, no dia 07/07/98 registrou queixa contra seu ex-marido/companheiro, por este ter invadido a sua casa e destruído o “aparelho de televisão, marca Sharp 14 polegadas”.25 Outra cena de violência patrimonial (cena 4), que envolve violência moral e psicológica, foi produzida por um ex- -marido e sua ex-esposa, Maria, 24 anos, moradora da zona ur- bana, solteira, escolaridade não informada. O histórico da cena26 mostra que há três meses o queixado, o ex-companheiro/marido,

25 livro de Queixas 01/98. Queixa n. 434/98. arquivo depol/Conceição do Coité - Ba. 26 livro de Queixas 1993. Queixa n. 257/93. arquivo depol/Conceição do Coité - Ba.

vinha “agredindo moral e fisicamente” a queixosa. Mas, no dia 12/07/93, além de “agredir moralmente”, ele a ameaçou de agres- são física e tentou levar o filho do casal de um ano e oito meses. Como não conseguiu, reteve consigo a certidão de nascimento da criança e fez ameaças de morte. Esta foi a única cena denun- ciada envolvendo retenção de documentos, as demais envolvem destruição de objetos. Excluindo os 3% de violência moral, que envolvem a violência patrimonial, os dados evidenciam 0,4% de violência patrimonial.

A violência psicológica, categoria aqui constituída pela amea- ça, pela perseguição e pelo cárcere privado, é definida no mesmo “Portal da violência contra a mulher”, como

[...] ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, hu- milhação, isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desen- volvimento pessoal. (LEI...)

Esse tipo de violência representa 14% das queixas analisadas, sendo que as ameaças em geral (de agressão, de assassinato, de retenção/destruição de objetos/documentos) representam 98% das cenas, a perseguição 1% e o cárcere privado 1%.

A mulher que foi encarcerada é Eva (cena 5), 18 anos, mora- dora da zona rural, que pretendia separar-se do seu marido, mas este a prendeu em casa para evitar a separação. Quanto tempo durou o cárcere, a queixa registrada, em 20/11/97,27 não informa.