• Nenhum resultado encontrado

4. TRABALHO SUJO: PERCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS AGENTES

4.2 Técnicas e práticas de manipulação do estigma profissional

4.2.4 Considerações Parciais

As diversas estratégias de manipulação do estigma profissional empregadas pelos agentes socioeducativos foram subdivididas e discutidas individualmente nesta seção para fins de sistematização e análise. Entretanto, como já explicitado, essas técnicas, embora distintas teoricamente, se complementam, se reforçam e se entrelaçam mutuamente na realidade empírica (KREINER et al, 2006; ASHFORTH; KREINER, 2013).

As ressignificações desenvolvidas pelos trabalhadores sujos aqui analisadas constituem-se como uma resposta coletiva da categoria profissional, que se fundamenta na negação permanente da imagem repressiva, violenta e de conflito entre os agentes e os adolescentes, ou seja, do estigma moral, cristalizado nas percepções sociais no interior e no exterior do ambiente laboral. É, indiscutivelmente, na luta contra a estigmatização moral que se concentram os maiores esforços e a maior parte da reestruturação ideológica e da ressignificação do trabalho pela categoria. Tais resultados convergem para a discussão desenvolvida por Ashforth e Kreiner (2014) sobre as distinções entre os trabalhos maculados física e socialmente, trabalhos sujos, e aqueles maculados moralmente, trabalhos mais sujos. A maior incidência das estratégias de manipulação do estigma por meio da ressignificação é comum entre os trabalhadores sujos. Como essa técnica transforma o significado do trabalho, ela tem o maior potencial para desafiar atribuições de mácula, e, portanto, são mais empregadas pelos profissionais (ASHFORTH et al, 2007).

As estratégias empregadas contra a maculação moral demonstram que os agentes socioeducativos recorrem substancialmente à aproximação de suas práticas laborais aos pressupostos socioeducativos, ressaltando aspectos que se contrapõem à sujeira do trabalho, como cuidado, educação, proteção, diálogo, orientação e ressocialização dos adolescentes internados. Esses aspectos também evidenciam uma interação com os adolescentes baseada na proximidade, na afetividade e no respeito. Desse modo, ao mesmo tempo que desestabilizam a mácula moral, aproximam suas práticas da finalidade da instituição em que trabalham, ampliando o senso de propósito da categoria, a importância e a necessidade do trabalho que desenvolvem dentro da Unidade.

No que se refere à mácula social, decorrente do processo de sujeição criminal dos adolescentes internados (MISSE, 2007), as percepções dos agentes socioeducativos se consolidam a partir da concepção de adolescentes “perigosos” e “em perigo” e, apesar da

138

distinção, em ambos os casos os adolescentes são percebidos como bandidos ou potencialmente futuros bandidos. Neste sentido, há, em certa medida, a convalidação das percepções sociais estigmatizantes. Percebe-se que combater essa sujeira não constitui a prioridade da categoria profissional, o que foi refletido no inexpressivo número de técnicas empregadas neste intento, apenas duas. Técnicas que combatem a estigmatização social foram identificadas nas comparações sociais seletivas dentro do próprio grupo de trabalho, pelo distanciamento físico e psicológico do trabalho do módulo, diretamente com os adolescentes, assim como pelo distanciamento do público atendido, verificado no distanciamento e imparcialidade em relação aos atos infracionais cometidos pelos adolescentes. Estas não ocupam espaço entre as ideologias ocupacionais, que visam reformular o significado do trabalho e têm maior potencial de êxito na construção do senso de orgulho, de pertencimento e de propósito, mas estão em técnicas complementares e de efeitos paliativos, que contribuem apenas para que os trabalhadores consigam lidar com o trabalho sujo que desenvolvem.

A mácula física, decorrente do risco e do perigo que os adolescentes representam, ocupa um espaço ínfimo dentro do escopo em análise, sendo identificada apenas no emprego de comparações sociais seletivas em relação aos professores e policiais militares (profissões que, segundo os interlocutores, têm menos controle e segurança do que a dos agentes socioeducativos, minimizando, assim, a noção de perigo atrelada a profissão). Por outro lado, em diversos momentos os agentes reforçam a percepção do perigo, inclusive com o intento de receberem um adicional83 em sua remuneração como evidenciado no seguinte relato.

Nosso cargo não tem uma insalubridade, um adicional de periculosidade. Você vê muitas pessoas de cargos altíssimos [juízes e promotores] na unidade com escolta. Se isso não é perigoso porque vem com uma escolta, com armamento? E a gente não tem esses adicionais, a gente tem que buscar na justiça. (Augusto)

Ainda foi observado o emprego de técnicas que não se relacionam diretamente com a maculação generalizada dos agentes ou com a natureza intrínseca do trabalho. Estas, referem- se principalmente a recompensas extrínsecas (escala, estabilidade, união entre os agentes), e à valorização de aspectos positivos do próprio trabalho em comparação com outros trabalhadores sujos (trabalho menos desgastante, mais humano). Essas técnicas não implicam diretamente no

83 O sindicato da categoria tem reivindicado judicialmente o adicional de periculosidade, que representa um acréscimo de 10% do vencimento. Faz jus a este adicional “o servidor que trabalha com habitualidade em locais insalubres ou em contato permanente com substâncias tóxicas, radioativas ou com risco de vida faz jus a um adicional de insalubridade ou de periculosidade”, conforme Art. 79 da Lei Complementar nº 840/11.

139

significado do trabalho, mas contribuem para o ajuste e adaptação ao trabalho sujo, complementando as ideologias ocupacionais na manipulação do estigma profissional e impactando nos níveis de prestígio e desprestígio da categoria. Entretanto, as recompensas extrínsecas também podem ser alcançadas por meio de trabalhos não estigmatizados, o que resulta no enfraquecimento destas técnicas na luta contra a sujeira do trabalho.

A consciência dos trabalhadores sobre a sujeira do trabalho ainda foi evidenciada no uso das diversas técnicas, não somente nas ideologias ocupacionais, considerando-se que as práticas laborais percebidas como positivas e importantes eram frequentemente introduzidas pela contraposição direta às percepções sociais sobre a categoria, marcadas por expressões que evidenciam a desconstrução da estigmatização como “apesar de não ser tão bem visto pela sociedade”, “eles acham que é abrir e fechar cadeado”, “isso não aparece em estatística”, “a gente simplesmente é mal visto”, “dificuldade de desenvolver o meu trabalho e as pessoas não julgarem”, “as mães não vêm”.

Ainda é importante ressaltar que, devido à estigmatização generalizada dos agentes socioeducativos, encontra-se pouca validação social de suas ideologias ocupacionais. Notou- se, que os interlocutores salientam percepções negativas e falta de reconhecimento por parte da sociedade em geral e até mesmo por profissionais da própria instituição em relação ao trabalho que realizam. Nesse contexto, percebeu-se em algumas falas dos agentes socioeducativos a busca pelo reconhecimento dos próprios adolescentes e dos seus familiares, que se apresenta como um recurso importante no cenário de amplo desprestígio que vivenciam.

Eu acho legal quando eu posso ver um retorno da parte deles. Eu até hoje não vi retorno de muitos, de ver que eles são gratos porque mudaram ou que eu fiz a diferença na vida deles. Eu só vi isso uma vez, e foi um dia que me marcou. Ele ficou maior de idade, saiu e foi para a unidade de Brazlândia84, e um dia eu estava lá com uma colega minha, a gente estava fazendo ronda e eu encontrei esse interno lá. Ele conversou comigo pela janelinha do quarto eu eu vi assim que ele estava bem feliz de ter me visto e aí disse que tava rezando. E eles têm uma religiosidade assim… então a gente acaba ajudando, incentivando e fazendo alguma oração com eles. E aí eu vi que ele estava realmente feliz em ter me visto. E estava grato, né? E eu tentei ajudar ele com o que eu podia. Eu percebi gratidão da parte dele e que eu via interesse em mudar. Eu sempre falei “óh, você tem 18 anos, pensa direitinho no que você faz e tenta mudar de vida. E nele eu pude perceber essa vontade de mudar e

84 Como discutido anteriormente, a UISS, em São Sebastião, divide o terreno com outra unidade, a Unidade de Internação de Brazlândia (UIBRA). Ver tópico - 1.2.1 A Unidade de Internação de São Sebastião.

140

essa gratidão. E a gente vê que o nosso trabalho tá dando algum fruto. (Raquel)

A gente ajuda também os familiares, porque eles estão preocupados com os filhos e quando eles vêm que não é nada daquilo que outras pessoas estão falando, elas ficam mais tranquilas e despreocupadas. (Mariana)

O que me fez ficar foi um dia de visita quando eu vi o sofrimento dos familiares tendo seus entes queridos presos e tudo... eu passei a me sentir útil e importante nesse sistema todo e fiquei. [...] Então o que me ajudou foi ver as famílias, são seres humanos que também tem famílias que estão sofrendo. [...] Quando uma mãe vem me agradecer porque o filho diz que eu trato bem, isso não tem preço… então é uma coisa que eu não teria em um escritório fazendo conta, esse prêmio humano é uma coisa que não tem preço. (Amanda) Em alguma medida, os relatos desses momentos, em que os adolescentes ou os familiares demonstram gratidão e reconhecimento pelo trabalho que os agentes desenvolvem, compensam as percepções depreciativas vivenciadas constantemente. Além disso, elas reforçam, ainda que minimamente, as ideologias ocupacionais de ressignificação empregadas pelos agentes, fortalecendo a concepção de que os trabalhadores cuidam, protegem, educam e ressocializam os adolescentes, e que, portanto, desenvolvem um trabalho mais socioeducativo do que repressivo.

Uma ideologia socialmente validada é aquela que foi considerada legítima por outros indivíduos ou grupos, reforçando assim a ideologia. Como observado, se outros parecem compartilhar ou endossar suas crenças, essas crenças são consideradas válidas ("Como todos nós podemos estar errados?"). (ASHFORTH; KREINER, 2013, p. 13685)

Por fim, o pouco reconhecimento advindo de alguns adolescentes e familiares não é suficiente para consolidar e validar as ideologias desenvolvidas pela categoria profissional. Os agentes continuam interagindo regularmente com pessoas dentro e fora da ocupação que sustentam as crenças depreciativas, limitando, assim, os impactos das ideologias ocupacionais dos trabalhadores sobre a construção de identidades positivas e sobre a percepção da ocupação como um trabalho significativo para a sociedade. Sobre esta questão, Ashforth e Kreiner (2013) apontam que é comum que trabalhadores sujos amplamente estigmatizados permaneçam ambivalentes em relação ao propósito do trabalho e sobre a relação com a ocupação, o que impacta diretamente na realização profissional, tornando o significado positivo um desafio contínuo. Essas ambivalências sobre o objeto de estudo serão discutidas no próximo capítulo,

85 Tradução nossa, texto original: “A socially validated ideology is one that has been deemed legitimate by other individuals or groups, thereby reinforcing the ideology. As noted if other appear to share or endorse one's beliefs, those beliefs are taken to be valid ("How could we all be wrong?")”.

141

a partir das tensões entre aspectos punitivos e socioeducativos nas percepções e práticas dos agentes socioeducativos.

142

CAPÍTULO 5

5. ENTRE SOCIOEDUCAÇÃO E PUNIÇÃO: AMBIVALÊNCIAS NAS