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2. NOTAS CONCEITUAIS: SOCIOEDUCAÇÃO, PUNIÇÃO E TRABALHO SUJO

2.1.2 Sociedade Disciplinar

Michel Foucault (2000), em sua obra Vigiar e Punir publicada originalmente em 1975, desenvolve uma análise histórica no campo da legislação penal e dos métodos punitivos adotados pelo Estado moderno. O autor aponta que a partir da segunda metade do século XVIII

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ocorreram transformações substanciais nas políticas penais, o que marcou uma transição dos suplícios e espetáculos públicos para estratégias de confinamento, dando início ao que ele denomina de sociedade disciplinar. É no trabalho de Foucault que se deteve maior ressonância nas esferas acadêmica e política sobre a transformação das penas na formação da modernidade, o que o torna referência nos estudos sobre os mecanismos de controle social nesse período (SALLA; LOURENÇO, 2014).

A obra trata sobre a transição entre duas tecnologias de poder distintas que fundamentam a questão penal - suplício e disciplina - mas não se restringem a ela, permeando diversas outras esferas da sociedade. Desse modo, o autor analisa a passagem de uma arte de punir a outra, ou seja, uma mutação técnica da punição. Nas palavras do próprio autor, a sua obra “consiste em estudar como o poder domina e se faz obedecer” (FOUCAULT, 2000, p. 268).

A reforma da justiça criminal constitui-se fundamentalmente como uma estratégia de redistribuição do poder de punir, suprimindo o superpoder do soberano e o infrapoder das ilegalidades toleradas. A nova economia do poder visa garantir que ele possa ser exercido em toda parte e de forma permanente, reduzindo seus custos econômicos e políticos, além de ampliar os seus efeitos.

Essas alterações nas relações de poder se intensificaram no século XX, abarcando diversas esferas sociais, e não apenas as instituições de segurança pública, perpassando instituições como família, escola, fábrica, universidade e hospital. Estas desempenham um papel fundamental na modernidade, por meio do poder disciplinar, distribuem, vigiam e adestram os indivíduos em espaços determinados. A dominação pela disciplina, fundamenta- se em horários estritos, obrigações e proibições acompanhados por uma vigilância contínua buscando uma transformação do indivíduo.

Na nova física do poder, a figura do soberano é substituída pela enunciação das leis, as quais rapidamente atribuem um papel preponderante ao encarceramento frente a outras medidas punitivas. A prisão carregou consigo o intento da modificação do espírito e do comportamento materializado no ideal da correção e a utilização econômica dos corrigidos. Segundo Foucault (2000), a disciplina constitui-se como um conjunto de “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (p. 118). Fundamenta-se em

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técnicas de adestramento de corpos dóceis, corpos que podem ser utilizados, transformados e aperfeiçoados por meio de coerções constantes sobre os movimentos, os gestos e as atitudes.

A disciplina pressupõe a distribuição dos indivíduos no espaço, de forma que possa ser localizado imediatamente, fomentando as comunicações úteis e interrompendo as inúteis. A distribuição e a vigilância se complementam, possibilitando a construção de um saber sobre o outro. Dessa forma, as instituições disciplinares - a prisão, a escola, o hospital e as organizações militares - são indissociavelmente aparelhos de poder e de saber.

O adestramento dos indivíduos combina o olhar hierárquico com a sanção normalizadora, e, conjuntamente, entrecruza certo exercício de poder com um tipo específico de saber através do exame. É uma vigilância que viabiliza a diferenciação, a classificação e a punição dos indivíduos. Cada detalhe diário é incorporado a um sistema de registro intenso, em que as individualidades são classificadas e medidas para prover o treinamento e a normalização do indivíduo examinado.

Conjuntamente com a distribuição, o controle da atividade representa outra grande operação fundamental constitutiva dos mecanismos do poder disciplinar. A organização temporal dos indivíduos visa “estabelecer censuras, obrigar a ocupações determinadas e regulamentar os ciclos de repetição” (FOUCAULT, 2000, p. 128) através de um controle ininterrupto para garantir a utilidade total do tempo e ditar o ritmo do comportamento.

Em suma, a arte de punir no regime do poder disciplinar não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão:

[...] A penalidade que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza (FOUCAULT, 2000. P. 153).

A íntima ligação da prisão com as bases da sociedade disciplinar emergente a garantiu que ocupasse o papel de pena por excelência da modernidade. A prisão moderna fundamenta- se como “pena das sociedades civilizadas”, com o impacto da noção de humanidade na justiça penal e, essencialmente, no ideal de transformação do indivíduo. Desta forma, espera-se da privação da liberdade a transformação técnica dos indivíduos, por meio da disciplina tomada na sua exaustão.

A operação penitenciária coloca em cena a figura do delinquente, que “se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza”. Nesse sentido, “A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria, mas sobre a afinidade do criminoso com o seu crime” (FOUCAULT, 2000, P. 211).

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Em resumo, por meio das contribuições de Michel Foucault sobre a punição, em especial em sua expressão carcerária, compreende-se que as estratégias de punição que sucedem e substituem o suplício não podem ser reduzidas ao simples encarceramento maciço, pois, mais que isso, a prisão é um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado dentro de uma sociedade disciplinar.

Dessa maneira, percebe-se que a lógica disciplinar ainda é um referencial estratégico importantíssimo na organização das instituições de internação na contemporaneidade (BENELLI, 2014), haja vista que técnicas de vigilância e disciplinamento constantes ainda são predominantes na rotina da Unidade de Internação estudada, sendo aperfeiçoadas e ampliadas nos últimos anos (ALBUQUERQUE, 2015).