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4. TRABALHO SUJO: PERCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS AGENTES

4.1 Percepções sobre a estigmatização laboral dos agentes socioeducativos: Sujeição

4.1.1 Máculas social e física: a dupla face da sujeição criminal

A mácula denominada por Hughes (1958) como social, está presente em ocupações que servem outras pessoas ou em trabalhos que envolvem o contato regular com grupos estigmatizados. (ASHFORTH; KREINER, 1999) No contexto observado em nossa pesquisa, a mácula social advém do fato de os agentes socioeducativos atenderem adolescentes autores de atos infracionais. Ademais, o sistema socioeducativo é igualmente estigmatizado desde a sua origem e desacreditado publicamente sob ótica da impunidade.

O desprestígio das ocupações que lidam diretamente com adolescentes autores de atos infracionais não é recente. O entrevistado Júlio, por exemplo, ao recordar a sua trajetória profissional quando se tornou agente social,60 na década de 1980, e começou a trabalhar no Centro de Triagem e Observação de Menores (CETRO)61, relata que:

Ah, primeiro que ninguém queria ir pra lá. Ninguém tinha coragem de trabalhar lá. Porque a fama é que era bandido, aquela coisa toda… ninguém queria trabalhar com infrator. Então era um lugar que ninguém queria ir. (Júlio)

O entrevistado Pedro, mesmo tendo ingressado no sistema socioeducativo mais de 30 anos depois do primeiro entrevistado, de forma semelhante aponta que a sua ocupação é desqualificada socialmente devido ao público atendido pelos agentes socioeducativos:

A maioria das pessoas reage assim… “mas lá não é perigoso?”, você vai mexer com pessoas ruins”. [...] O problema é que assim, eu acredito que esse nosso trabalho, ele não é bem visto pela sociedade porque a gente tá lidando com as pessoas que a sociedade não conseguiu lidar, que os pais não conseguiram lidar, o Estado não conseguiu lidar e eles estão aqui. Tá, é um problema e eles jogam pra gente e a gente tem que resolver. E muitas vezes as pessoas pensam que 100% dos meninos aqui não têm nenhum tipo de solução, é bandido e vai ser bandido. (Pedro)

60 De acordo com o entrevistado, essa era a nomenclatura do seu cargo no início da sua carreira.

61 Conforme apresentado na seção referente ao histórico do Sistema Socioeducativo do DF, antes de se tornar o CAJE, a Unidade de Internação do Plano Piloto denominava-se CETRO, entre os anos de 1983 e 1990.

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Considerando-se que os estigmas atribuídos aos adolescentes são projetados sobre os agentes socioeducativos, caracterizando essa ocupação como um trabalho sujo, as inquietações da opinião pública no tocante à relação entre jovens, violência, crimes e seus desdobramentos sobre as políticas públicas de controle social são dados relevantes para a análise da estigmatização dos agentes socioeducativos. Diversos autores (ADORNO, 2002, 2010; PORTO, 2001; ZALUAR, 2007; MISSE, 2008) apontam que o crime é uma das principais preocupações dos brasileiros. Nesse contexto, inicia-se a percepção a respeito de um crescente aumento da participação dos jovens no crime, principalmente com o crime violento. Adorno (2002) destaca que as discursividades contemporâneas têm enfatizado a adolescência como problema a partir de uma associação direta entre juventude e delinquência.

As imagens veiculadas pela imprensa e pela mídia eletrônica, cada vez mais frequentes e cotidianas, pintam cenários dramáticos com cores muito fortes: a de jovens, alguns até no limiar entre a infância e a adolescência, audaciosos, violentos, dispostos a tudo e prontos para qualquer tipo de ação, inclusive matar gratuitamente (p. 49).

As reflexões de Misse (2007) acerca da construção social do crime e dos processos sociais de interpretação das ações tipificadas como atos infracionais têm apontado um processo específico de estigmatização dos adolescentes autores de atos infracionais a partir da categoria “bandido”. Misse (2008) aprofunda o referencial teórico de estigma cunhado por Goffman (1988), analisando especificamente os casos relacionados ao crime e a criminação daquele que o cometeu, ao apresentar o conceito de sujeição criminal. Para o autor, esse termo se refere a algo maior do que o estigma, pois não diz respeito apenas aos rótulos de uma identidade social desacreditada. A sujeição criminal se dá através da fusão do delito com o autor, em que a estigmatização da identidade degradada se sobrepõe a todos os outros papéis sociais do adolescente. A Sujeição Criminal não ocorre com qualquer indivíduo que cometeu crimes, mas com aqueles sujeitos rotulados como “bandidos”, “violentos” e “marginais”. Nas palavras do autor é “um indivíduo que carrega o crime na própria alma”, sendo percebido como irrecuperável, como alguém que sempre cometerá crimes (MISSE, 2010, p. 21).

O rótulo de “bandido”, atribuído aos adolescentes internados reflete o processo de sujeição criminal e confere a eles uma tendência a praticar novos crimes com certa regularidade, provocando uma grande reação moral aos atos infracionais por eles cometidos. Sobre os adolescentes se têm as reações mais fortes e clama-se por punições mais duras, deseja- se, inclusive, a eliminação física destes indivíduos (MISSE, 2007, 2010).

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Neste contexto, os entrevistados destacaram ainda que o sistema socioeducativo é visto como ineficiente e incapaz de promover uma mudança na trajetória infracional dos adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas, o que causa um impacto direto na credibilidade do trabalho que os agentes socioeducativos realizam.

Eles acham que os internos têm que vir pra cá porque aprontou e tem que ficar preso mesmo, não conseguem ver que aqui dentro tem essas atividades… que muitos entram aqui… eu já ouvi dizer do pessoal de fora, eles entram ruim e saem pior. Então eu acho que na visão deles aqui não ajuda, piora a criatura. Então eles não veem que aqui tem essa base. E muitos entram aqui e têm a experiência de ver que não é um lugar bom pra eles. Aí saem e qual que era certo? Nunca mais voltar, mas não… eles voltam de novo. Então aí pra sociedade aqui não muda ninguém não, só faz piorar. (Rosa)

Em muitos casos, a responsabilidade pelo envolvimento dos jovens em atos criminosos recai sobre a fragilidade das políticas implementadas a partir do ECA, pós transição democrática. (ADORNO, 2010) O questionamento sobre a eficácia e efetividade do sistema socioeducativo em conter as condutas violentas praticadas por adolescentes fundamenta um sentimento coletivo de crise de legitimidade na capacidade do Estado em gerir a segurança pública, e, como consequência, reivindica-se cada vez mais a adoção de medidas repressivas, com base em um sentimento generalizado de impunidade. (PORTO, 2001) Segundo Alvarez et al (2017), o crescimento da violência propagou na sociedade o medo e o preconceito contra adolescentes autores de atos infracionais, em uma ligação profunda com o apoio a medidas repressivas e punitivas contra eles. Tais sentimentos de incerteza e frustração frente à capacidade recuperadora das instituições socioeducativas têm subsidiado movimentos de endurecimento penal (PAULA, 2008).

Misse (2007), ao discutir a sujeição criminal de crianças e adolescentes, aponta que: Legalmente, eles não cometem crimes, mas atos infracionais. Não respondem a processos, mas a autos de investigação social; não cumprem sentenças, mas medidas socioeducativas, que podem incluir não a prisão, mas o internamento em instituições totais de confinamento. No entanto, apesar da preocupação social e legal com a sua ressocialização, é muito grande a reação moral aos atos infracionais cometidos por jovens que não alcançaram a idade penal de 18 anos. Não são poucos os grupos sociais que tentam a diminuição da responsabilização penal no Brasil para 16, 14 ou mesmo 12 anos. (p. 191)

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O conceito de sujeição criminal desenvolvido por Michel Misse abrange dois processos interdependentes de estigmatização dos agentes socioeducativos. O primeiro deles é a estigmatização do público atendido: “bandidos”, “perigosos”, “irrecuperáveis” e “repulsivos”. O segundo processo, decorrente do primeiro, volta-se para a descrença da população frente à política pública que os agentes socioeducativos integram. Desse modo, as percepções sociais sobre as medidas socioeducativas projetam a ausência de credibilidade e de reconhecimento do trabalho dos profissionais de todo o sistema socioeducativo.

De acordo com o quadro conceitual apresentado por Ashforth e Kreiner (1999), a mácula física é atribuída às ocupações diretamente associadas com o lixo ou com a morte e àquelas que são desenvolvidas em ambientes nocivos ou em condições perigosas. No que se refere à categoria profissional estudada nesse trabalho, a mácula física está indissociavelmente relacionada à mácula social, haja vista que a profissão dos agentes socioeducativos é percebida como uma atividade perigosa ou de risco por lidar diretamente com “bandidos violentos”, ou seja, o perigo e o risco sempre estão associados aos adolescentes, pois são eles os potenciais agressores dos agentes, tanto no ambiente laboral como fora dele.

A caracterização da ocupação como uma profissão de risco foi mais frequente do que os aspectos referentes à mácula social. Dos treze entrevistados, dez deles mencionaram que a sua profissão é percebida como perigosa. Na maioria dos casos, o perigo é vivenciado no interior da Unidade de Internação, como detalhado nos seguintes trechos:

A minha mãe é que ficou um pouco preocupada. [...] Acho que a minha segurança, né? Porque a gente sempre escuta falar coisas muito ruins, né, sobre insegurança dos agentes. Principalmente porque as notícias que saem nunca são muito positivas, né? É sempre uma notícia de alguém que tentou atacar algum agente, de alguma fuga, que teve algum objeto perfuro-cortante encontrado dentro do quarto. Então eu acredito que a preocupação dela é porque tudo que sai na mídia é isso. (Raquel)

Quando eu fui nomeado, ela [mãe] ficou feliz e depois perguntou… “É para aquele concurso? Ah, meu Deus do céu!” Porque naquela época o CAJE só tinha notícia boa, né? Era tentativa de fuga, era rebelião… era “ah, eu tenho um conhecido que ficou doido depois de trabalhar lá”, “eu tenho um conhecido que se machucou”. As notícias eram assim. (Vitor)

Tem gente que vê o nosso trabalho como de muito risco e realmente tem risco… e se você não trabalha com a segurança ideal, é um pouco ruim. (Roberto)

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O perigo está vinculado, predominantemente, à possibilidade de os agentes se tornarem reféns em situações de fuga ou rebeliões, consumadas ou tentadas e, nesse contexto, serem agredidos ou até mesmo mortos pelos adolescentes com a utilização de estoques62. Esses episódios não são comuns63, mas as falas de alguns agentes entrevistados corroboraram com a percepção social de que a profissão é perigosa:

Eu acho que as situações de risco... que querendo ou não a gente teme pela nossa vida, pela vida dos colegas e dos internos. Eu já passei por situações de morte, de fuga e de agressões. [...] É um lugar que você coloca a sua vida em risco quando vem trabalhar, é um lugar que você pode sair morto… Eles são meninos que estão em formação ainda, eu considero eles até mais perigosos que os adultos. (Amanda)

Você vê muitas pessoas de cargos altíssimos [juízes e promotores] na unidade com escolta. Se isso não é perigoso, por quê vêm com uma escolta, com armamento? (Augusto)

Pelos aspectos analisados até aqui, ressalta-se a junção entre as máculas sociais e físicas no contexto laboral dos agentes socioeducativos. Por meio das categorias “bandido”, “infrator” e “menor”, cristalizadas nas percepções sociais sobre os adolescentes internados, percebe-se a dupla face da Sujeição Criminal (MISSE, 2008), tanto pelo fato de lidarem cotidianamente com esse público de “menores” irrecuperáveis (mácula social) e, também, por serem esses “menores” perigosos os principais geradores de risco ao trabalho dos agentes socioeducativos (mácula física).

Ainda aponta-se que os trabalhadores também compartilham dessas mesmas percepções estigmatizadas sobre os adolescentes. Conforme discutido anteriormente64, uma parte do público atendido é percebido pelos próprios agentes como “bandidos”, e não há muita credibilidade por parte dos agentes sobre a possibilidade real de transformação desses adolescentes. Do mesmo modo, algumas das falas que integram essa seção indicaram que os interlocutores também percebem o risco e o perigo decorrentes do contexto do trabalho que realizam.

62 Estoque é a nomenclatura utilizada por adolescentes e funcionários do sistema socioeducativo ao se referirem às armas improvisadas produzidas pelos adolescentes com materiais diversos, como pedaços de ferro retirados da estrutura de concreto das paredes e das próprias camas, por serem sempre afiados são uma espécie de “facas” artesanais.

63 Não foram encontrados dados oficiais sobre servidores agredidos ou mortos no sistema socioeducativo. 64 Ver tópico 4.4.2 - O Socioeducando

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