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5. ENTRE SOCIOEDUCAÇÃO E PUNIÇÃO: AMBIVALÊNCIAS NAS PERCEPÇÕES

5.2 Entre “linha dura” e “passa pano”

Ao reunirmos as percepções apresentadas nas discussões anteriores, delineia-se um cenário de conflitos e de negociações entre aspectos socioeducativos e punitivos na atuação laboral dos agentes socioeducativos. A análise das técnicas de reestruturação ideológica empregadas pelos agentes socioeducativos, em especial as de ressignificação da mácula moral, (ASHFORTH; KREINER, 1999) indica que estes trabalhadores têm uma relação de proximidade e afetividade com os adolescentes. O diálogo emergiu como uma interação valorizada, constituindo-se como uma peça-chave na atuação laboral. O cuidado, as orientações e os conselhos presentes nas práticas dos agentes socioeducativos demonstraram compaixão, empatia e preocupação com o bem-estar do adolescente e de seus familiares, sinalizando um trabalho comprometido com a socioeducação. Por outro lado, e na contramão destes aspectos, a percepção dos mesmos trabalhadores evidenciou que ainda há centralidade em práticas e perspectivas disciplinares e punitivas em suas atuações laborais. A defesa dos procedimentos de segurança exaustivos e da transformação dos adolescentes por meio da disciplina, prioriza a manutenção da segurança e da ordem institucional como principal finalidade da instituição.

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As ocorrências, as medidas disciplinares e os relatórios, aparecem como indispensáveis instrumentos de punição e de dominação, aproximando as práticas e percepções dos agentes socioeducativos da lógica das instituições totais (GOFFMAN, 2013) e disciplinares (FOUCAULT, 2000).

As ambiguidades entre socioeducação e punição até aqui narradas foram indicadas pelos interlocutores como necessárias e desejáveis. A conciliação entre práticas coercitivas e afetivas, entre distância e proximidade, e entre diálogo e repressão foi a estratégia apresentada pelos entrevistados como a mais eficiente para “manter o módulo tranquilo” e, ao mesmo tempo, escapar dos rótulos de agente “linha dura” e “passa pano”. Neste sentido, observa-se, novamente, que tais percepções perpassam questões pragmáticas (como “tirar um plantão” tranquilo?) e construções identitárias (como lutar contra uma identidade social maculada pelo trabalho sujo?).

Esta análise retoma a discussão sobre os desafios vivenciados e os saberes práticos construídos pelos agentes socioeducativos na complexa tarefa de lidar com adolescentes internados em um ambiente extremamente instável103.

Aí você tem sempre uma questão: Como responder a uma agressão do interno? uma agressão verbal que seja… uma atitude indisciplinada do interno… Se você for muito rígido você pode tá criando um outro problema… e além de você criar um problema com o próprio interno, você pode tá criando problema com o outro servidor que não gostou da forma que você tratou o interno. E se você for um pouco mais ameno… “não vou criar um caos ou um drama disso…” Você não sabe qual é o procedimento que todo mundo vai fazer. Você não sabe se o colega vai brigar com o menino, se vai querer algemar e levar para a delegacia. Você não sabe o que ele vai fazer… e às vezes numa mesma situação acontecem coisas diferentes… então você não sabe o que vai acontecer… Ou acham que você é muito agressivo ou que você passa pano… às vezes em uma situação que a pessoa sequer veio conversar contigo. (Vitor)

As reflexões do interlocutor apresentam algumas dessas questões que estão em disputa no cotidiano dos trabalhadores. Para solucionar a pergunta inicial, “Como responder a uma agressão do interno?”, o entrevistado apresenta duas alternativas que produzem consequências distintas. Uma atitude muito rígida, ao invés de solucionar a questão da agressão verbal ou da indisciplina, “pode tá criando um outro problema”, ao amplificar o conflito com o adolescente

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e ao ser percebido pelos demais servidores como “agressivo”. Enquanto a outra alternativa, ser “um pouco mais ameno”, poderia levá-lo a ser visto como um “passa pano”. Neste cenário, o que fazer? O saber prático dos trabalhadores, construído e reproduzido a partir da experiência, indica que a resposta não está na escolha entre uma destas alternativas em disputa, mas na conciliação e no equilíbrio entre aspectos punitivos e socioeducativos.

Inspirada na escrita de Andrade (2017), a partir do uso de mosaicos, a metodologia utilizada neste trecho para apresentar a percepção dos agentes sobre esta questão difere da forma usual que tem sido utilizada ao longo do texto. Aqui, ao invés de apresentar as falas dos interlocutores de forma individualizada, elas serão narradas em conjunto, através de uma organização das falas realizada pela autora, buscando-se delinear as tensões e negociações através de uma narrativa contínua.

A gente não tá aqui pra ficar fazendo ocorrência… pra ficar criando problema, criando problema… pra de repente um de nós ter que ir pra delegacia. Não estamos aqui procurando isso. Se você consegue trabalhar bacana, manter o diálogo… você consegue manter o módulo tranquilo, mas tem outros colegas que têm outra forma de trabalhar, é mais carrancudo… é na prensa… e as coisas não funcionam assim. É igual pegar um parafuso e ir arrochando… uma hora vai espanar. É o que acontece.104/ Eu aprendi inclusive a ter um pseudocarinho, mas é principalmente pra manter o módulo tranquilo… porque aqui o clima é muito alto, é uma tensão muito forte.105/ E, ao mesmo tempo, é muito complexo. Você tem que ter paciência e saber conversar e conquistar a confiança deles, saber dar quando é preciso dar, saber ser justo e ao mesmo tempo não permitir que eles tentem te manipular, ou que eles tentem te fazer de bobo.106/ Mas tem cabeça dura que acha que não… que acham que eles deveriam ter mais voz. Sim, mas tem que ser conduzido com calma… porque se você dá todo direito, toda voz sem se importar com os procedimentos, você tá criando o caos de novo no sistema. Se eles verem que você tá perdendo a mão, se eles sentirem que não tem firmeza na sua fala, eles vão montar em cima de você.107/ A gente usa um termo muito feio, mas que é muito usado aqui dentro… que é “passar pano”, que é adular, passar a mão

104 (Júlio) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas. 105 (Amanda) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas. 106 (Raquel) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas. 107 (Vítor) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas.

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na cabeça… o grande erro é esse.108/ Nem sempre você pode ser tão rigoroso, mas você também não pode querer que todas as demandas dos internos sejam cumpridas, porque naquele momento não é adequado ou a unidade não pode fornecer.109

Primeiramente, a conciliação e o equilíbrio entre aspectos socioeducativos e punitivos assumem uma perspectiva pragmática, a de manter o módulo tranquilo. Apesar de centrais, posturas extremamente repressivas podem gerar maiores problemas do que solucioná-los, gerando inconvenientes que rompem com a ordem e a tranquilidade do plantão. Assim, a situação de conflito inicial pode ser amplificada, chegando até mesmo a ser um estopim de uma rebelião, ou simplesmente gerar uma ocorrência mais séria, trazendo a possibilidade do agente ter que sair da Unidade para levar o adolescente a uma delegacia, talvez de madrugada, e ainda ter, em alguns casos, que justificar a sua ação para não responder um Procedimento Administrativo Disciplinar.

É a partir desse contexto de desafios pragmáticos que os agentes socioeducativos aproximam-se de práticas mais humanizadas e, em alguma medida, dos pressupostos socioeducativos e de uma política de garantia de direitos. Para os interlocutores, a relação de proximidade e de afeto associada ao cuidado e a garantia de direitos dos adolescentes pode reduzir as insatisfações e contribuir com o bem-estar dos internados e, assim, manter o módulo mais tranquilo. O diálogo e as relações de confiança estabelecidas entre os adolescentes e os agentes também permitem que os conflitos e enfrentamentos possam ser resolvidos sem ocorrências e medidas disciplinares.

Essas mesmas práticas e percepções discutidas sob a perspectiva do trabalho sujo110 (ASHFORTH; KREINER, 1999) evidenciaram que, além de “manter o módulo tranquilo”, a aproximação da perspectiva socioeducativa também se constitui como uma importante ideologia ocupacional de ressignificação do trabalho e das identidades sociais dos agentes socioeducativos. Por meio de diferentes técnicas e práticas de manipulação do estigma laboral; o diálogo, o cuidado, a educação e as orientações exercem um papel relevante na luta contra a maculação generalizada. Em especial, estas técnicas de ressignificação buscaram combater o

108 (Caio) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas. 109 (Mariana) Trecho extraído de uma das entrevistas realizadas.

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principal estigma, o que dentro da divisão moral entre trabalhadores sujos os constituem como trabalhadores ainda mais sujos: a mácula moral da violência e da tortura.

Por meio das técnicas de ressignificação111, os agentes socioeducativos buscam refutar percepções sociais que o estigmatizam como violentos e torturadores, assim, por meio do diálogo, do cuidado e da educação, demonstram distanciamentos e rupturas, individuais e/ou coletivas112, com o perfil “linha dura” de trabalho, ressignificando e construindo uma

identidade profissional menos ‘suja” e que confira maior prestígio na divisão moral do trabalho. Como indicado anteriormente, esta rotulação de agente “linha dura” emerge nos discursos dos trabalhadores como uma identidade extrema, de cristalização da repressão e da violência, e que, portanto, do ponto de vista da estigmatização profissional em que estão inseridos, deve ser combatida. Por outro lado, as técnicas de reestruturação ideológica empregadas em excesso podem retirá-los de um extremo, da repressão excessiva, levando-os a outro, da proteção excessiva. Dessa forma, desloca-se a sua identidade do rótulo “linha dura” para o de “passa pano”, identidade também estigmatizada.

Considerando-se que os adolescentes autores de atos infracionais são amplamente estigmatizados como “bandidos”, “perigosos” e “irrecuperáveis”, considerando-se ainda que a opinião pública tem cobrado medidas cada vez mais repressivas e punitivas contra eles, (MISSE, 2007; PAULA, 2010; GHIRINGHELLI, 2015) sinais de aproximação, de empatia e de cuidado nas interações entre os agentes socioeducativos podem aprofundar ainda mais a maculação social da sua identidade profissional, passando de “agressor” a “amigo de bandido”, tornando-se um “passa pano”. A expressão “passar pano”, utilizada também na linguagem exterior à internação, foi descrita por um dos entrevistados como “adular, passar a mão na cabeça113”, uma noção que, nas falas dos trabalhadores, muitas vezes se confunde com a ideia

de proteção, de garantia de direitos e de valorização do protagonismo do adolescente nas deliberações na Unidade.

Este termo é utilizado frequentemente pelos agentes para descreverem a atuação das especialistas, sempre de forma negativa e pejorativa, apontando que a visão da “proteção,

111 Ver tópico 4.3.1.1 - As ressignificações do trabalho sujo.

112 Como discutido no tópico 4.3.1.1, ao mesmo tempo que o rompimento e a transformação de práticas repressivas e violentas, vistas como “linha dura”, foram indicadas por alguns agentes em relação às suas práticas individuais, em outros momentos, também sinalizaram que este processo ocorreu na cultura do trabalho da categoria como todo.

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proteção, proteção114” impede a responsabilização dos adolescentes pelos atos infracionais cometidos e faz dos profissionais que a defendem, ingênuos e suscetíveis às mentiras e à manipulação dos adolescentes. Dessa forma, além do reforço ao desprestígio e à imagem desacreditada desses trabalhadores sujos, por meio da maculação social, ser um “passa pano” também impede que os agentes tenham respeito, autoridade e mantenham a ordem e o controle do módulo. Neste contexto de encruzilhadas, entre desafios pragmáticos cotidianos e tensões identitárias, é preciso saber em qual momento disciplinar, reprimir, punir e distanciar-se, a fim de demonstrar autoridade e controle, tanto para os adolescentes quanto para os demais servidores. E ao mesmo tempo, também é preciso saber em qual momento dialogar, aconselhar, garantir direitos e demonstrar afeto pelos adolescentes, para reduzir as insatisfações e conflitos no módulo.

Os agentes socioeducativos encontram no equilíbrio entre práticas e percepções punitivas e socioeducativas uma forma de “tirar o plantão tranquilo” e, ao mesmo tempo, de distanciamento das identidades maculadas ao se equilibrarem entre “linha dura” e “passa pano”. Sob a perspectiva dos trabalhadores, a associação entre a humanização das relações entre agentes e adolescentes e os procedimentos disciplinares e punitivos é uma estratégia eficiente para manter a ordem institucional e para manter um distanciamento da maculação moral e social do trabalho sujo que desenvolvem.

Ao retomarmos as discussões realizadas separadamente sobre a valorização do diálogo115 , da disciplina e da punição116, percebe-se que, afinal, o principal instrumento de trabalho utilizado pelos agentes socioeducativos não é um nem outro, mas a conciliação entre “a palavra” e “a caneta”.