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2. NOTAS CONCEITUAIS: SOCIOEDUCAÇÃO, PUNIÇÃO E TRABALHO SUJO

2.1.3 Instituição Total

O sociólogo Erving Goffman (2013), em sua obra Manicômios, Prisões e Conventos buscou explorar o mundo social das Instituições Totais, a partir de estudos empíricos em instituições hospitalares manicomiais39, analisando como essas instituições e outras similares produzem a subjetividade daqueles que a integram, tanto dirigentes quanto internados, ou seja, nas palavras do autor, o que se busca é “uma versão sociológica da estrutura do eu”.

Nesse intento, o autor desenvolve o conceito de Instituições Totais, definindo-as como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 2013, p. 11).

Segundo Goffman (2013), as Instituições Totais, ainda que atendam públicos distintos, apresentem finalidades específicas, sejam públicas ou privadas e integrem os seus membros de forma voluntária ou compulsória, são marcadas por uma tendência ao “fechamento” em relação ao mundo exterior, criando obstáculos à interação dos membros dessas instituições com o restante da sociedade. Essa tendência é tão importante nessas instituições que não raramente ocorre a sua materialização em estruturas físicas, como portas trancadas e muros altos que incorporam essa separação entre a instituição total e outras esferas sociais.

Em meio às suas singularidades, o autor agrupa as Instituições Totais em cinco categorias principais, aqui apresentadas de forma exemplificativa como i. casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes; ii. hospitais para doentes mentais e leprosários; iii. cadeias,

39 Entre os anos de 1954 e 1957, o autor realizou estudos nos Institutos Nacionais do Centro Clínico de Saúde e no Hospital St. Elizabeth, ambos nos Estados Unidos (GOFFMAN, 2013, p. 7).

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penitenciárias e campos de concentração; iv. quartéis, navios e escolas internas e, por fim; v. monastérios e conventos. Recorrendo ao método dos tipos ideais, o autor analisa características gerais comuns às Instituiçõe Totais (GOFFMAN, 2013).

Uma das bases destas instituições encontra-se na ruptura da divisão socioespacial das esferas da vida do indivíduo internado. Isto é, atividades que no contexto social geral são desenvolvidas em espaços e com pessoas diferentes, como dormir, brincar e trabalhar, no cenário das Instituições Totais passam a ser concentradas em um único lugar, organizadas em horários rígidos e acompanhadas constantemente por um grande número de pessoas que são tratadas de forma semelhante e sob a mesma autoridade.

De acordo com Goffman (2013), a burocratização das necessidades humanas exige um pequeno grupo dirigente, responsável pela vigilância, procurando garantir que no grupo dos internados, “todos façam o que foi claramente indicado como exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível e constantemente examinada por outros” (p.18) O autor ainda aponta que a relação entre esses grupos interdependentes é mediada por estereótipos, em que “a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas vezes vêem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos”( p.19), constituindo uma divisão clara entre equipe dirigente e internados fundamentada em mundos sociais e culturais diferentes. No mesmo texto, ao se debruçar sobre o mundo do internado, o autor analisa os processos de Mortificação do Eu, que são desenvolvidos sistematicamente desde a sua entrada nas Instituições Totais. Tais processos são materializados por meio de humilhações e rebaixamentos constantes, impactando as crenças que os indivíduos têm sobre si mesmos, da restrição da posse de bens pessoais e da transformação da sua aparência social, que costumam ser extensões de si mesmos, bem como pela padronização do tratamento de todos os internados, sufocando as individualidades.

Outro ponto importante na obra de Goffman e na discussão aqui apresentada refere-se aos processos de infantilização social, e de Desculturamento consequentes da internação. O primeiro, incompatível com desenvolvimento da autonomia necessária à inclusão social, de acordo com Benelli (2014):

retira da pessoa sua autonomia, liberdade de ação e capacidade de decisão, perturbando decididamente sua autonomia civil. As menores partes de sua atividade estão sujeitas a regulamentos e julgamentos da equipe dirigente. [...] Cada especificação normativa de conduta priva o indivíduo da oportunidade de equilibrar suas necessidades e objetivos de maneira pessoalmente eficiente, violentando a sua autonomia. O controle minucioso é extremamente limitador numa instituição total (p. 34).

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Já o Desculturamento está intimamente ligado à longos períodos de internação, decorrendo um afastamento da cultura do indivíduo precedente à Instituição, em relação à vida social e familiar anterior, levando-o à inadaptação e à incapacidade de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária em seu retorno à sociedade mais ampla (GOFFMAN, 2013, p. 23).

Preliminarmente, é possível perceber que, apesar de todas as ressignificações dadas às unidades de internação para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, essas unidades ainda podem ser classificadas como instituições totais, pois são espaços em que se mantêm os adolescentes isolados do restante da sociedade e todas as atividades que são desenvolvidas por eles são programadas, controladas e vigiadas pela instituição, e como tal, têm uma tendência a reproduzirem os processos de Mortificação do Eu descritas pelo autor.

Oliveira (2000) aponta que sem um projeto pedagógico, o sistema socioeducativo não se concretiza, reproduzindo muitas vezes o que se pretendia negar. Os profissionais que trabalham diretamente com esses adolescentes muitas vezes não se reconhecem como educadores, bem como vivenciam “um dilema de considerar o adolescente um delinquente ou um educando”. Dessa maneira, é comum que esses profissionais tenham como foco principal a atenção às “rotinas despersonalizantes” e o cuidado com a segurança (p. 22).

As contribuições dos autores sobre a lógica da internação são de fundamental importância para a compreensão do contexto social do tema estudado e das tensões entre a socioeducação e a punição que atravessam todo o sistema socioeducativo. Apesar de haver propostas educativas e inclusivas da socioeducação no campo teórico-normativo, os diversos estudos empíricos (MENDES, 2015; D’ARC TEIXEIRA, 2015; AEDRA, 2017; PAULA, 2008; ALBUQUERQUE, 2015) bem como documentos norteadores (BRASIL, 2006; DISTRITO FEDERAL, 2013, DISTRITO FEDERAL, 2016) têm evidenciado a contradição entre os pressupostos da socioeducação e a manutenção de aspectos punitivos e repressivos nas Unidades de Internação, preservando elementos das instituições totais (GOFFMAN, 2013) e de disciplinamento e docilização dos corpos dos internados (FOUCAULT, 2000). Segundo Benelli (2014), as instituições de internação contemporâneas podem ser consideradas ao mesmo tempo instituições totais e disciplinares

Conforme Albuquerque (2015), percebe-se que na Unidade de Internação de São Sebastião:

[...] intensificou-se a prioridade da manutenção da segurança e garantia da ordem frente às outras atividades desenvolvidas na unidade, inclusive aquelas voltadas à socioeducação. Também aumentaram as regulações disciplinares

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sobre a rotina cotidiana desenvolvida na Unidade com vistas a tais objetivos. Nesse contexto, o cotidiano e o funcionamento da unidade passam a ser fundados no controle e na disciplina (p. 68).

Ao compararmos os elementos basilares da socioeducação com os das instituições totais e disciplinares, percebemos que as perspectivas apresentadas se constituem de maneira próxima ao antagonismo, trazendo desafios profundos ao alcance dos objetivos das medidas socioeducativas no contexto da internação. A socioeducação pressupõe o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo, aniquilados pelos processos de mortificação do eu e dos dispositivos disciplinares de vigilância, controle e docilização dos indivíduos.

A acentuada separação, tanto física quanto cultural, entre as instituições totais e o mundo externo e o consequente processo de desculturamento se configuram como barreiras à inclusão social do adolescente e a reconstrução do seu projeto de vida. Do mesmo modo, os vínculos sociais, comunitários e familiares são fragilizados em oposição a centralidade buscada pela socioeducação.

Por fim, destaca-se ainda que o distanciamento entre os trabalhadores dessas instituições e o público internado, por meio do qual se materializam os processos discutidos por Goffman (2013) e Foucault (2000), são entraves à constituição dos trabalhadores das Unidades de Internação como educadores, que exigem vínculos, individualização do atendimento e afetividades,

Como discutido no capítulo precedente, a tensão entre aspectos punitivos e educativos aqui discutidos por meio da socioeducação e das instituições totais e disciplinares são pilares tanto para a compreensão da complexidade da implementação das medidas socioeducativas quanto para a análise das práticas laborais e das identidades profissionais daqueles que integram a sua execução, em especial, dos agentes socioeducativos.