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2. NOTAS CONCEITUAIS: SOCIOEDUCAÇÃO, PUNIÇÃO E TRABALHO SUJO

2.2 Identidade, Trabalho Sujo e Manipulação do Estigma Profissional

2.2.1 Identidade

Stuart Hall (2006) aponta que as perspectivas sociológicas sobre a questão identitária rompem com a noção iluminista da identidade centrada no indivíduo, ao sustentar que “o núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava” (p. 11). Segundo o autor, é a partir das obras de Mead e dos interacionistas simbólicos que a concepção identitária sociológica se consolidou sob a premissa de que a identidade é construída na interação entre o eu e a sociedade Ao se debruçar sobre a questão do estigma, Erving Goffman (1988) afirma que “as identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão” (p. 116). A identidade social parte de categorizações sociais dos indivíduos, fundamentadas em expectativas normativas prévias ao contato real, produzindo o que o autor denominou de identidade social virtual, enquanto que as categorias e atributos que o indivíduo realmente possui constituem a identidade social real. E, assim, a construção identitária é o produto da articulação de dois processos, da identidade virtual, atribuída pelo meio social, e da identidade real, com a qual o indivíduo se identifica.

Claude Dubar (2005), de forma semelhante às reflexões de Goffman, compreende a identidade social como resultado da articulação entre a identidade para o outro, o que dizem sobre o indivíduo, e a identidade para si, o que o indivíduo diz que é. Por essa perspectiva, a identidade social é central para a questão do reconhecimento social dos indivíduos, uma vez que é a partir dela que ele se localiza e é identificado socialmente. No âmbito da interação entre indivíduos, a relação é mediada por expectativas normativas derivadas das categorias sociais pré-estabelecidas e articuladas ao papel social desempenhado pelos indivíduos em interação. Neste sentido, as pessoas se percebem e são percebidas socialmente por meio de identidades sociais resultantes de categorias projetadas e assumidas. Cabe ainda destacar que

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as categorizações, tipificações ou rotulações abordadas pelos autores, não são estáticas, nem tampouco definitivas, elas se transformam na medida que a própria sociedade se modifica, ademais, não podem ser reduzidas às categorias oficiais ou institucionais, são aquelas produzidas pelos indivíduos nas interações cotidianas que se tornam extremamente caras à análise sociológica.

Entretanto, as negociações identitárias, entre as identidades virtuais e as identidades reais não são sempre marcadas por uma correspondência harmônica, os indivíduos são constantemente levados à endossar ou à refutar as identidades atribuídas pelos outros ou pelas instituições. No cerne dessa articulação, quando se busca atribuir à identidade social um significado diverso daquele percebido pelos outros, os indivíduos precisam recorrer à justificações e categorias legitimadas socialmente pelas instituições e agentes em que estão em interação, assim, a consolidação da identidade visada perpassa, necessariamente, a busca por reconhecimento. Desse desacordo entre a identidade para os outros e a identidade para si “resultam estratégias identitárias destinadas a reduzir a distância entre essas duas identidades” (DUBAR,2005, p. 140).

Neste contexto de descompasso entre a identidade virtual e a identidade real, Goffman (1998) traz importantes contribuições sobre a estreita relação entre o estigma e a construção identitária do indivíduo estigmatizado. O termo estigma é utilizado pelo autor como “um atributo profundamente depreciativo” (p. 13), o que gera como efeito um profundo descrédito social e uma deterioração de sua identidade, e, em alguns casos, o indivíduo estigmatizado não é percebido como totalmente humano, representando inferioridade e perigo. No entanto, Goffman (1998) destaca que o atributo em si não é a causa do estigma, mas são as relações sociais que fazem com que este atributo seja depreciativo, decorre de uma relação entre as expectativas sociais e os atributos de determinado indivíduo ou grupo que faz com que estes não sejam percebidos como “normais”:

Enquanto um estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente dos outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito é muito grande. (GOFFMAN, 1998, p. 12)

Estas construções e negociações identitárias estão intimamente vinculadas a atribuição de sentido e significado às experiências sociais e ao lugar do indivíduo na sociedade. Elas dão

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sentido ao que o indivíduo vive e ao que ele é, tanto de forma individual, quanto coletiva, a partir da aproximação identitária de indivíduos que pertencem a um mesmo grupo, ou possuem os mesmos atributos. Segundo Woodward:

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou? O que eu poderia ser? O que eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representações constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (2008, p.18)

Ao que se refere à construção de significados e de identidades de forma coletiva, especificamente em contextos organizacionais, como é o caso do presente estudo, Hall (2008) aponta que é sobre essas representações coletivas de aproximação entre os membros internos e de diferenciação entre os membros externos, que uma coletividade se percebe enquanto unidade, de forma relacional e marcada pela diferença.

No campo de análise deste trabalho, o interesse volta-se sobre a construção de identidades coletivas, especificamente, sobre as identidades sociais coletivas dos agentes socioeducativos erigidas sob os significados atribuídos por eles ao trabalho que realizam. Ainda é importante destacar que as identidades construídas coletivamente por esse grupo, enquanto trabalhadores, reflete de forma significativa na constituição de suas identidades sociais individuais, haja vista a centralidade que o trabalho vem ocupando na constituição da identidade pessoal e social como um todo.

A identidade social é frequentemente centrada a partir da formação, tanto a escolarização básica quanto a formação acadêmica e/ou profissional, assim como o emprego/trabalho/profissão que as pessoas desempenham, em um processo de reforço mútuo do vínculo emprego-formação. (DUBAR, 2005) Este fenômeno pode ser percebido cotidianamente, haja vista que na maior parte das interações com estranhos, sejam elas formais ou informais, o emprego/profissão/ocupação dos indivíduos é normalmente uma das primeiras informações a serem abordadas. Desta forma, os indivíduos tendem a se definir em termos de sua identidade ocupacional como apontado por Dubar:

Hoje em dia, é na confrontação com o mercado de trabalho que, certamente, se situa a implicação identitária mais importante dos indivíduos. [...] Mas é de seu resultado que dependem tanto a identificação por outrem de suas competências, de seu status e de sua carreira possível, quanto a construção por si de seu projeto, de suas aspirações e de sua identidade possível (2005, p. 148-149).

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A discussão aqui desenvolvida apresenta-se como subsídio à análise do contexto laboral dos agentes socioeducativos, em que a identidade social dos trabalhadores é comprometida devido à ampla estigmatização decorrente do público que atendem e das percepções sociais negativas sobre os próprios agentes, como será discutido no capítulo 4. Desta forma, esta configuração de descrédito e desprestígio enfraquece a validação social de uma identidade ocupacional coletiva positiva, e impacta diretamente nas identidades individuais desses profissionais, considerando que o trabalho atualmente ocupa um espaço central na construção identitária como um todo.