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1.5 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A FACULDADE DA VONTADE NO DE LIBERO ARBITRIO

A obra De libero Arbitrio, em relação ao problema da vontade, pode ser dividida em dois momentos distintos. No Livro I temos a ―descoberta‖ da faculdade da vontade em Agostinho. Pode-se dizer que é a primeira teoria sobre esta faculdade no ocidente. A noção sobre a faculdade da vontade irá surgir num ambiente cristão, que deve tentar responder a uma problemática, presente em todos os tempos: ―O que é o mal‖?

O cristianismo tem um item diferente em relação aos gregos frente à questão do mal: Deus. A crença na existência de um Deus bom, criador de todas as coisas, sendo que todas as coisas também são boas, está na essência do cristianismo. Agostinho terá a revelação como suporte, mas é preciso tentar fundamentar racionalmente aquilo que crê. Nesse sentido, as escrituras serão sempre o ponto de partida e chegada, mas o constructo depende da razão humana.

Para explicar a existência do mal, Agostinho lançará mão de argumentos convincentes e sólidos. O mal não tem um único autor, mas vários. Cada homem é responsável pelo mal que pratica. Para chegar a consolidar tal visão, Agostinho precisará construir uma teoria do interior do homem. Internamente a ―mens‖ (mente) do homem é constituída de ―cupiditas‖, que traduzimos como desejo ou concupiscência, a parte da qual o homem utiliza enquanto aje meramente pelo impulso; e temos também a parte denominada ―ratio‖ ou ―intelligentia‖, que denominamos razão e inteligência. Se o homem se vale de sua ―cupiditas‖, ele se iguala aos animais, por exemplo, ao agirem, por impulso. Valendo-se da ―ratio‖ o ser humano efetiva a sua superioridade aos demais seres, utilizando uma faculdade que só ele tem em sua constituição interna.

No universo ordenado pela ―lex aeterna‖ concebido por Agostinho, o homem também deve estar ordenado. Quando a parte superior comanda a inferior, tem-se este ordenamento. Esta ordem está presente tanto no exterior quanto no interior do homem; assim, internamente, para haver ordem a parte superior (―ratio‖) deve comandar a parte inferior (―cupiditas‖). O homem que assim está é chamado ―hominem ordinatissimum‖.

O que internamente faz com que um homem cometa um pecado? Tendo sempre que no universo ordenado o superior comanda o inferior, pode-se dizer que o homem ordenado, chamado ―sapiens‖, não pode ser dominado pelos animais, que tem, apenas, a ―cupiditas‖. Este mesmo homem não pode ser dominado por um ―stultus‖, que é caracterizado por deixar sua parte inferior dominar sua parte superior, fazendo, pois, que haja uma inversão ao perfeito ordenamento. Um ―sapiens‖ também não pode obrigar outro ―sapiens‖ a pecar, pois o primeiro deixaria de ser sábio. Por fim, Deus não pode obrigar quem quer que seja a pecar.

Os exemplos descritos acima demostram que nada exterior pode obrigar alguém a cometer o mal. Deve-se buscar algo interno que seja a causa do mal. Sem dúvida é a faculdade da ―voluntas‖. O homem se torna conluiado da paixão devido à própria vontade, que direciona a mente para tal estado.

O segundo momento da obra De Libero Arbitrio consiste na relação da ―descoberta‖ da faculdade da vontade com a visão de mundo cristã, o que possibilita esclarecimentos quanto a conceitos importantes. A resposta de que a ―voluntas‖ é a causa do pecado isenta o criador de ter criado o mal. Teria acertado Deus, ao criar o livre arbítrio da vontade, podendo, assim, pecar? O fato da vontade ter sido criada com a possibilidade de se fazer o mal, não significa que ela não deveria ter sido criada. O livre arbítrio (―liberum arbitrium‖) é a possibilidade que a vontade tem de escolher fazer o bem ou o mal. A liberdade (―libertas‖) consiste em fazer o bem, que, no universo cristão, é voltar-se para o Sumo Bem, que é Deus. A dignidade do ser humano está nesta possibilidade de escolher o bem com a sua vontade. Nesse ponto, deve-se voltar para a visão cristã de mal, que consiste em se afastar deste Sumo Bem, preferindo os bens transitórios e perecíveis.

O parágrafo anterior possibilita uma chave de leitura para a visão cristã de mundo. Nas Escrituras é narrado que Deus criou todas as coisas boas, inclusive o ser humano. Também é narrado que o homem se afastara de Deus. Com a ―descoberta‖ de Agostinho, é possível ler a história do livro do Gênesis nesta perspectiva. O homem (Adão) comete o mal ao optar pelos bens inferiores virando-se contra o Sumo Bem, Deus. O homem troca o

Bem imutável pelos bens transitórios, e este fato é explicado pela escolha de seu livre arbítrio da vontade. Ao fazer tal escolha o homem inverte aquela ordem implícita ao universo, escolhendo algo inferior em prejuízo a algo superior.

A partir da ―descoberta‖ da vontade e da leitura que Agostinho refaz sobre o episódio do Gênesis, podemos enfatizar três conceitos essênciais nesta teoria da vontade que estamos formulando em Agostinho:

a) A faculdade da vontade (―voluntas‖)  consiste em uma das faculdades da ―mens‖ humana, juntamente com a ―cupiditas‖ e a ―ratio‖, sendo autônoma em relação a estas duas faculdades. Ela tem a capacidade de escolher independentemente da situação exterior ao indivíduo, sendo a última instância de escolha no indivíduo.

b) O livre arbítrio da vontade (―libero arbitrio voluntatis‖)  consiste na capacidade que a faculdade da vontade tem de escolher dentre várias possibilidades. Esta capacidade, como veremos, está presente no primeiro homem, e, mesmo após o pecado original, continua sendo uma atividade do arbítrio.

c) A liberdade (―libertas‖)  consiste na escolha do Sumo Bem. É a escolha boa do livre arbítrio. Veremos que o ser humano é criado com a capacidade de escolher bem, mas esta é perdida após o pecado original.

A escolha equivocada de Adão, que agirá por ―stultitia‖ será denominada pecado original. Adão, possuindo a faculdade da vontade e, consequentemente, o livre arbítrio, opta por um bem inferior ao sumo bem. Tal acontecimneto, que está baseado nas escrituras, trará trágicas consequências para a condição ontológica do homem, incluindo a sua faculdade da vontade. No De Libero Arbitrio Agostinho, sem se aprofundar muito, vai

afirmar que as duas penalidades que o homem tem pelo seu ato equivocado são: a) a ―ignorantia‖, que irá trazer como consequências o erro e o engano, principalmente no que se refere ao Sumo Bem; o homem perde a capacidade de saber qual é o seu Sumo Bem; b) a ―difficultas‖, que torna o homem escravo do pecado, não tendo mais condições de comandar sua vontade, ficando a mercê da ―cupiditas‖, o que lhe causará uma inversão permanente em relação a ordem universal. A faculdade da vontade estará submetida a esta última pena.

Se Adão possuía no seu livre arbítrio da vontade a capacidade de ser livre, após a queda, a vontade perde aquela sua condição inicial, não podendo agir por si para ser livre. Será necessário algo exterior a ela para que lhe ajude a ser livre. Nesse sentido, podemos dizer que o livro I do De Libero Arbitrio trata a vontade em seu perfeito estado e condição. A vontade atual não tem mais aquelas capacidades descritas. Entre a primeira vontade e as vontades atuais temos o evento do pecado original. Pode-se, então, falar em Agostinho sobre a faculdade da vontade em dois estados bem distintos.

Como se encontra a vontade em seu estado atual? Não devemos buscar resposta completa no De Libero Arbitrio. Para tal, precisamos nos voltar para a obra Confessiones, mais especificamente o Livro VIII, para caracterizar a faculdade da vontade atualmente. Ali encontraremos uma narração fenomenológica sobre a faculdade da vontade posterior ao pecado original.