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3.1 INTRODUÇÃO AO DE DIVERSIS QUAESTIONIBUS AD

SIMPLICIANUM

A obra De Diversis Quaestionibus ad Simplicianum247, primeira obra escrita após Agostinho se tornar bispo em Hipona, é uma obra essencial dentro do percurso em nossa análise sobre a faculdade da vontade em Agostinho, demarcando uma nova crítica que chegará nas obras antipelagianas. As questões que, o então bispo de Milão, Simpliciano, coloca à Agostinho, no ano de 397, em relação à Epístola aos Romanos de Paulo, permitirá que Agostinho postule soluções que serão debatidas à exaustão 15 anos depois, quando ocorre o início do debate com Pelágio e seus seguidores.

Esta obra não será a primeira análise de Agostinho sobre a Epístola de Paulo aos Romanos. Em 394, Agostinho fez uma primeira análise desta carta, em duas obras chamadas Expositio quarundam propositionum ex epistula ad romanos e Expositio

quarumdam propositionum ex Epistola ad Romanos248. Entretanto, nestas obras, Agostinho ainda está aquém de sua visão, que podemos chamar ―definitiva‖, sobre sua interpretação da Epístola aos Romanos. Em suas primeiras análises da carta de Paulo, Agostinho não se aprofunda em uma interpretação sobre a predestinação e a graça divina, que o acompanhará até seu último debate contra o bispo de Eclano, a saber, Juliano. A graça divina independe das obras, como também a própria fé só ocorre por meio da intervenção da graça. As primeiras interpretações sobre Paulo foram frutos de uma necessidade em apresentar a

247 Nos remeteremos à obra como Ad. Simplic.

248 Propositalmente, deixamos de lado a análise detalhada destas obra, já que nosso interesse principal, o

estudo da vontade, com ênfase no período pelagiano, é devedor da obra Ad. Simplic. Claramente, podemos notar um avanço significativo da segunda análise de Agostinho sobre a carta de Paulo, o Ad. Simplic., em relação às suas primeiras análises (Expositio quarundam propositionum ex epistula ad romanos e Expositio quarumdam propositionum ex Epistola ad Romanos). Para o corpo da tese, a análise das primeiras obras sobre a Carta aos romanos não é necessário, além do que, haveria um aumento significativo de nosso estudo. Por isso, nossas poucas referências às duas obras se justificam, ficando para um outro momento uma análise específica comparativa entre as três obras.

Epístola aos Romanos aos seus amigos de Cartago, tendo abandonado tal empreitada no meio de sua análise249.

Como o próprio nome da obra nos sugere, o texto De Diversis Quaestionibus ad

Simplicianum tem como inspiração algumas questões colocadas por Simpliciano, o mesmo

personagem que já vimos na obra Confessiones, cuja narração sobre a vida de Mário Vitorino, terá papel importante na conversão de Agostinho. Simpliciano assume o bispado de Milão em 397, devido a morte de seu antecessor, Ambrósio, a quem havia batizado. Fora um homem que vivera grande parte de sua vida em Roma, antes de ir à Milão, sendo bastante culto, conhecedor de teologia e filosofia250, e com grande apreço pela filosofia neoplatônica251.

O primeiro encontro entre Agostinho e Simpliciano ocorrera em 386, pouco antes da conversão definitiva de Agostinho; encontro este que pudemos comentar no capítulo anterior. Após se tornar presbítero em 390, e bispo em 395, na cidade norte-africana de

249 Cf. BROWN (2005), p.186, que também nos chama a atenção para a ―descoberta‖ de Paulo no final do séc.

IV em alguns meios: ―Na Igreja latina, as últimas décadas do século IV bem poderiam ser chamadas de ‗a geração de São Paulo‘: o interesse comum por este último reuniu pensadores muito diferentes e os aproximou mais uns dos outros que de seus predecessores. Na Itália, Paulo já recebera comentários do platônico Mario Vitorino e de um leigo anônimo, provavelmente um burocrata aposentado, conhecido por nós como ‗Ambrosiastro‘. Na África, o interesse por Paulo levara o leigo donatista Ticônio a se aproximar mais de Agostinho que de seus próprios bispos. Nessa época, acima de tudo, Agostinho tinha em mente os expositores mais radicais e confiantes de Paulo, os maniqueístas: eles foram responsáveis pela maioria das questões específicas que Agostinho teve de resolver para sua platéia em Cartago. Dado esse interesse generalizado, não admira que, exatamente na mesma época em que Agostinho discorria sobre Paulo em Cartago, seu futuro adversário, Pelágio, apresentasse um Paulo radicalmente diferente a seu círculo de amigos, num dos grandes palácios de Roma.

250 Como podemos conferir em McNARAMA (1958), p. 65: ―Simplicianus was a holy priest who had spent

much of his life in Rome. A distinguished scholar, he was widely travelled and well versed in philosophy and theology. He had baptized Ambrose and remained with him to help him in his work as bishop. When Augustine met him in 396 he was alredy na old man‖.

251 Como pode-se notar nos dizeres de Agostinho na obra Confessiones VIII, 2, 3: ―Ubi autem commemoravi

legisse me quosdam libros Platonicorum, quos Victorinus quondam, rhetor urbis Romae, quem christianum defunctum esse audieram, in Latinam linguam transtulisset, gratulatus est mihi, quod non in aliorum philosophorum scripta incidissem plena fallaciarum et deceptionum secundum elementa huius mundi, in istis autem omnibus modis insinuari Deum et eius Verbum‖ (―Quando, porém, comemorou que tivesse lido alguns livros dos platônicos, que Vitorino, retor da cidade de Roma, de quem ouvira dizer ter morrido cristão, traduziu em língua latina, (Simpliciano) deu-me as felicitações por que não caí nos escritos dos outros filósofos, cheios de falácias e enganos, segundo os elementos deste mundo. Nestas, porém, é insinuado de todos os modos, Deus e o seu Verbo‖.)

Hipona, o contato entre os dois, só voltará acontecer quando Simpliciano se tornar bispo de Milão em 397252.

O contato, após alguns anos sem se verem, ocorre por causa de certas dúvidas que Simpliciano levantará a Agostinho, referentes à Epístola aos Romanos. A forma literária empregada neste tipo de obra é um gênero de ―quaestiones et responsiones‖253; questões

feitas por Simpliciano, e respondidas por Agostinho. Como é um tipo de obra que, a princípio, tem como público alvo, aqueles que formulam as questões, muitas vezes, de grande complexidade, e que, normalmente, eram feitas por pessoas mais letradas, a obra se diferencia das obras dirigidas ao grande público.

As questões levantadas por Simpliciano, permitirão a Agostinho mostrar o avanço de sua leitura referente à Paulo, ao longo de mais de 10 anos de estudo. Nesse tempo, ele se fizera catecúmeno, havia sido batizado, tornara-se presbítero, tendo, por fim, sido consagrado bispo de Hipona. Ao longo desse trajeto, sua leitura de Paulo tornara-se mais refinada, permitindo a Agostinho adentrar nas mais profundas questões que Paulo colocara aos cristãos. Sem dúvida alguma, dentre essas questões está a noção de vontade. Paulo fora um homem de gênio, capaz de penetrar no âmago do cristianismo, mas Agostinho, também o sendo, não será apenas um compilador de Paulo, mas fará uma grande transformação do pensamento paulino254, como já começamos a demonstrar em nosso capítulo anterior.

A carta enviada por Simpliciano, com as questões a Agostinho, não existe mais. Existe, apenas, a carta de resposta de Agostinho (Carta 37), juntamente com as duas obras,

252McNAMARA (1958), p.66: ―When he was chosen to succeed Ambrose as bishop of Milan in 397, he

renewed his contact with Augustine‖.

253 Cf. Saint Augustin. Ouvres de Saint Augustin. Paris: Desclée de Brouwer, vol. 10 (Mélanges doctrinaux),

1950, introduction, p. 383.

254 BROWN, (2005), p.188 com muita felicidade enfatiza o avanço de Agostinho em relação à sua própria

leitura sobre Paulo: ―O próprio caráter deliberado de seus primeiros passos viria a tornar ainda mais impressionante a interpretação agostiniana final de Paulo: no decorrer de uma década, ele já havia vasculhado muitas camadas da teologia paulina (e cada camada poderia levar a vida inteira de um homem menos dotado), a fim de produzir sua síntese revolucionária. Nisso podemos ver a marca de gênio: Agostinho exibiu capacidade inabalável de elaborar, com detalhes precisos e convincentes, uma intuição que pairava sob forma parcial e confusa, nos recônditos do pensamento de seus contemporâneos‖.

que formarão as duas partes da obra Ad. Simplic. Como a carta é curta, e contém muito do espírito que veremos na própria obra, resolvemos transcrevê-la em sua íntegra:

CARTA 37: A SIMPLICIANO (397)

―Agostinho, ao beatíssimo senhor e venerável pai, Simpliciano, aceito com respeito de uma mais sincera caridade, saúde no senhor.

[1] Recebi a carta de vossa Santidade cheia de alegria doce que me diz que você lembra de mim, que você ainda me ama e se alegra com todos os dons que Deus graciosamente concedeu-me, sem qualquer mérito da minha parte. Nesta carta, eu provei o amor paterno de seu coração tão terno: ele não era nem novo nem repentino, mas se eu já sabia, por experiência, senti novamente, bendito Senhor, que eu devo abraçar com respeito a uma caridade muito sincera.

[2] De onde vêm ao nosso trabalho literário uma tal felicidade, que você se dignou a ler alguns dos livros que temos escrito com grande dificuldade? Sem dúvida o Senhor, para quem a minha alma está sujeita, queria me confortar nos meus interesses e superar o medo inerente a este tipo de trabalho, enfrentando a verdade por ignorância ou inadvertidamente, mesmo quando a pé em uma planície cheia de verdade. Quando aquilo que escrevo lhe agrada, eu sei a quem agrada, porque eu sei quem vive em ti. O mesmo Espírito, Doador e Distribuidor de todos os dons celestes, confirma a minha obediência. De todos aqueles escritos que vos dá prazer, Deus disse pelo meu ministério: faça-se, e está feito; em tua verdadeira aprovação Deus diz que está bom.

[3] As perguntas as quais você dignou-me responder, mesmo se a minha lentidão mental me impediu de compreender, teu mérito me ajudou a obter esclarecimento. Ore a Deus por minha fraqueza; e nestes pontos onde você queria praticar uma bondade paterna, além de todos os outros pontos que possa enviar-lhe às mãos, (como eu reconheço, não só os dons que vêm de Deus, mas também os erros que vêm de mim), eu vos peço não somente, que se

dê o trabalho de ler, mas também de querer fazer o suficiente para assumir ser o censor corretor. Até mais‖255.

A carta de Agostinho à Simpliciano indica que as respostas de Agostinho às interpelações do antigo amigo, deveriam ser extremamente bem trabalhadas. O bispo de Milão, um homem de idade avançada, tinha experiência dentro do cristianismo, para ser um leitor atento das respostas de Agostinho. Por isso, Agostinho tinha, ao mesmo tempo, confiança e ansiedade no aceite de Simpliciano. Em sua obra de resposta, Agostinho estaria criando as bases do cristianismo latino. O cristianismo deveria se decidir entre duas interpretações, a de Agostinho e a de Pelágio. Ainda precisaremos analisar o embate entre estes dois homens de gênio, dentro da questão da vontade.

Na carta resposta de Agostinho, é possível perceber uma síntese da obra na afirmação de que o ―acerto vem de Deus, e o erro vem do próprio homem‖. Na questão sobre a faculdade da vontade, esta afirmação pode ser relacionada com a vontade decaída, que depende da graça divina para se consolidar no acerto e no bem. Se nas Confessiones

255 Epistola 37: Domino beatíssimo et venebiliter sincerissima charitate amplectendo patri Simpliciano,

Augustinus, in Domino salutem.

[1]. Plenas bonorum gaudiorum litteras, quod sis memor mei, meque ut soles diligas, magnaeque gratulationi tibi sit quidquid in me donorum suorum Dominus conferre dignatus est misericordia sua, non meritis meis, missas munere Sanctitatis tuae accepi: in quibus affectum in me paternum de tuo benignissimo corde non repentinum et novum hausi, sed expertum sane cognitumque repetivi, domine beatissime, et venerabiliter sincerissima caritate amplectende.

[2]. Unde autem tanta exorta est felìcitas litterario labori nostro, quo in librorum quorumdam conscriptione sudavimus, ut a tua Dignatione legerentur? nisi quia Dominus, cui subdita est anima mea, consolari voluit curas meas, et a timore recreare, quo me in talibus operibus necesse est esse sollicitum, necubi forte indoctior vel incautior, quamvis in planissimo campo veritatis, offendam. Cum enim tibi placet quod scribo, novi cui placeat; quoniam quis te inhabitet novi.Idem quippe omnium munerum spiritalium distributor atque largitor per tuam sententiam confirmavit obedientiam meam. Quidquid enim habent illa scripta delectatione tua dignum, in meo ministerio dixit Deus, Fiat, et factum est: in tua vero approbatione vidit Deus quia bonum est . [3]. Quaestiunculas sane, quas mihi enodandas iubere dignatus es, etsi mea tarditate implicatus non intellegerem, tuis meritis adiutus aperirem. Tantum illud quaeso, ut pro mea infirmitate depreceris Deum, et sive in iis quibus me exercere benigne paterneque voluisti, sive in aliis quaecumque nostra in tuas sanctas manus forte pervenerint, quia sicut Dei data, sic etiam mea errata cognosco, non solum curam legentis impendas, sed etiam censuram corrigentis assumas. Vale.

temos a análise fenomenológica do estado atual da vontade, na obra Ad. Simplic. há a análise sobre a vontade, a partir da Carta aos Romanos de Paulo de Tarso.

A obra Ad. Simplic. contém a resposta de Agostinho sobre trechos bíblicos enviados como dúvidas por Simpliciano. A 2ª parte da obra, o Livro II, lida com questões sobre os Livros dos Reis do Antigo Testamento. Para o corpo de nosso estudo, esta parte da obra não é importante. Isto justifica porque nossa análise se deterá no Livro I da obra. Neste Livro, Agostinho irá responder às dúvidas de Simpliciano, no que diz respeito a dois trechos da Carta aos Romanos, mais especificamente Rm 7, 7-25 e Rm 9, 10-29. Assim, passemos a analisar da obra em questão.