• Nenhum resultado encontrado

A segunda questão abrange as dúvidas de Simpliciano ao trecho da Carta aos Romanos que compreende o capítulo 9, versículos 10-29280. Como o próprio Agostinho afirma no início de seu comentário, Paulo, nesta Epístola, tem o seguinte fim: ―Isto é, pois, que ninguém se glorie sobre as obras do mérito‖281. A Epístola aos Romanos irá explicitar,

na visão de Agostinho, o papel da graça e suas características. Em outras palavras, a graça se antepõe a todo e qualquer mérito humano. Isto significa que a graça depende, exclusivamente, de um dom divino, que, no caso da vontade, irá atuar sobre ela, a fim de garantir sua correta escolha. Se a graça dependesse de uma influência humana ―a graça já não é graça282‖.

280 Rm 9, 10-29: [10] E não é só. Há também Rebeca, que concebeu gêmeos de um só homem, Isaac, nosso

pai, [11] e antes mesmo de eles nascerem e terem feito algo de bem ou de mal, para que fosse confirmado o propósito de livre escolha de Deus, [12] que depende daquele que chama, e não de ações humanas, foi-lhe dito: ―O mais velho servirá ao mais novo‖, [13] conforme está escrito: ―Amei mais a Jacó do que a Esaú‖. [14] Que diremos então? Haveria, porventura, injustiça em Deus? De modo algum. [15] Pois ele disse a Moisés: ―Farei misericórdia a quem eu quiser e terei piedade de quem eu quiser‖. [16] Portanto, a escolha de Deus não depende da vontade ou dos esforços do ser humano, mas somente de Deus que usa de misericórdia. [17] Pois a Escritura diz a respeito do faraó: ―Eu te deixei de pé precisamente para mostrar em ti meu poder e para tornar meu nome conhecido por toda a terra‖. [18] Assim, pois, ele faz misericórdia a quem ele quer e endurece a quem ele quer. [19] Então me dirás: ―Que tem ele ainda a censurar? Pois, quem pode jamais resistir à sua vontade?‖ [20] Pensa bem, homem! Quem és tu para contestares a Deus? Porventura vai o vaso de barro dizer a quem o modelou: ―Por que me fizeste assim?‖ [21] Acaso não pode o oleiro, da mesma massa, fazer um vaso de luxo e outro vulgar? [22] Se, pois, Deus, embora quisesse manifestar sua ira e tornar conhecido seu poder, suportou com muita paciência ―vasos de ira‖ já preparados para a destruição; [23] se, a fim de tornar conhecida a riqueza de sua glória para com os ―vasos de misericórdia‖ que de antemão preparou para a glória…[24] Nós é que somos estes vasos de misericórdia que ele chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os pagãos. [25] É isso que ele diz no livro do profeta Oséias: ―Aquele que não era meu povo, eu o chamarei meu povo, e a não amada chamarei amada; [26] e lá onde lhes foi dito: ‗Vós não sois meu povo‘, ali serão eles chamados filhos do Deus vivo‖. [27] Por seu lado, Isaías brada a respeito de Israel: ―Mesmo se o número dos filhos de Israel for como a areia da praia, o resto é que será salvo; [28], pois o Senhor cumprira, plena e prontamente, sua palavra sobre a terra‖. [29] É como predisse ainda Isaías: ―Se o Senhor dos exércitos não nos tivesse deixado um germe, nos teríamos tornado como Sodoma e teríamos ficado iguais a Gomorra.

281 Ad. Simplic. I, 2, 2: ―Haec est autem, ut de operum meritis nemo glorietur‖. 282 Ad. Simplic. I, 2, 2: ― [...] gratia iam non est gratia‖ (Rm 11, 6).

Retomando a visão de Paulo sobre a história de Esaú e Jacó, Agostinho interpretará a visão paulina, sobre a história dos filhos de Isaac, como sendo paradigma em relação à noção de graça. Há como premissa da análise um trecho da Epístola aos Efésios (2, 8-9): [8] É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de Deus! [9] Não vem das obras, de modo que ninguém pode gloriar-se‖. Agostinho associará tal parte com um trecho da Epístola aos Romanos283.

Agostinho, influenciado por Paulo, verifica que Deus, dentre os dois irmãos, escolhe Jacó, concedendo-lhe a graça, através de sua vontade eterna, antes que eles tenham nascido, antes que eles possam ter agido de qualquer modo. Como a graça influencia o livre arbítrio da vontade? Dado que o homem decaído não consegue mais efetivar o bem, a graça, concedida gratuitamente, irá atuar na vontade, possibilitando as boas obras. Quando Deus afirma ―[13] Amei mais a Jacó do que a Esaú‖, Jacó torna-se exemplo de quem recebe a graça, pois ele agirá bem, não por mérito próprio, mas porque Deus atuou sobre a sua vontade; em contrapartida, Esaú não recebe a graça, pois não fora escolhido por Deus, não tendo, pois, a capacidade de agir bem:

É chamado, então, graça. Percebe-se, na verdade, que as boas obras são consequência da graça, que não produzem a graça, mas elas são produzidas pela graça. Não é, pois, o fogo que aquece para queimar, mas, porque queima (então, aquece); nem, da mesma forma, a roda corre bem para que seja redonda, mas, porque é redonda (corre bem). Assim, ninguém, portanto, age bem para receber a graça, mas porque recebeu (age bem) [...] A graça, por outro lado, justifica, para que o justo possa viver justificado. O primeiro é, pois, a graça, o segundo é a boa obra [...]284

Para Agostinho, está excluída a possibilidade do homem, através de sua vontade, e, consequentemente, através de suas obras, merecer o recebimento da graça. Na verdade, as boas obras serão precedidas pela graça. Como o homem está com a vontade dividida, fruto do pecado original, o único meio de completar as boas obras é através da graça,

283 Rm. 9, 10-13

284 Ad. Simplic. I, 2, 3: ―Vocantis est ergo gratia, percipientis vero gratiam consequenter sunt opera bona, non

quae gratiam pariant, sed quae gratia pariantur. Non enim ut ferveat calefacit ignis, sed quia fervet; nec ideo bene currit rota ut rotunda sit, sed quia rotunda est. Sic nemo propterea bene operatur ut accipiat gratiam, sed quia accepit [...]Iustificat autem gratia, ut iustificatus possit iuste vivere. Prima est igitur gratia, secunda opera bona [...]‖.

juntamente com a própria vontade, que, corroboramos, não fica negligenciada nesta operação da graça.

Deus não escolhe alguém para conceder a graça por causa de sua natureza, o que é exemplificado pela escolha de Deus sobre Jacó, dado que tanto Esaú quanto Jacó têm o mesmo pai, a mesma mãe, a mesma concepção e o mesmo criador285. A eleição (―electio‖) de Deus, no entendimento de Agostinho, também não ocorre pelas futuras obras dos homens, já conhecidas pela onisciência divina; nem mesmo pela fé futura dos homens. As obras futuras e fé futura são nulas, pois não há alguém que as realize no presente286. Além do mais, tanto as obras, quanto a fé, dependerão da graça divina, e não, apenas, da própria vontade humana. A escolha de Jacó não significa a exclusão de Esaú por Deus. Esaú faz parte, juntamente, com toda a humanidade, da massa de pecadores (―massa peccati‖), descendentes do pecado de Adão. O homem, para Agostinho, é completamente dependente de Deus. O eleito, para ter a capacidade de fazer boas obras, e, consequentemente, ter uma boa vontade, depende da vontade de Deus, que concederá livremente a graça287. Em suma, Deus elege os eleitos288.

285 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 4. 286 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 5.

287 Em Ad. Simplic. I, 2, 6 encontramos os seguintes trechos que corroboram tal visão: ―[...] cum ergo nulla

esset electio bene agentis secundum quam maneret propositum Dei, non ex operibus sed ex vocante, id est ex eo qui vocando ad fidem gratia iustificat impium, dictum est ei: Quia maior serviet minori. [...] sed quia illud manet ut iustificet credentes, ideo invenit opera quae iam eligat ad regnum caelorum. Nam nisi esset electio, non essent electi, nec recte diceretur: ‗Quis accusabit adversus electos Dei‘? (Rm 8, 33) [...] Hic autem quod ait: Non ex operibus sed ex vocante dictum est ei quia maior serviet minori, non electione meritorum, quae post iustificationem gratiae proveniunt, sed liberalitate donorum Dei voluit intellegi, ne quis de operibus extollatur ( [...] então, ninguém é eleito segundo as boas ações, que reside nos propósitos de Deus. Não pelas obras, mas, através da vontade daquele que chama, através da graça, concedendo a fé que justifica o ímpio. Disto foi dito ‗que o maior serve ao menor‘. [...] mas, permanece ainda, aquele desígnio, a fim de justificar os que crêem, por isso, são as obras pelas quais elege para o reino dos céus. Na verdade, a não ser que não haja eleição, não há eleitos, e nem o reto dizer: ‗Quem acusará, contrariamente, aos eleitos de Deus?‘ [...] Ao dizer, pois: Não pelas obras, mas através da vontade, que é dito isto, ‗que o maior serve ao menor‘. Não a eleição dos méritos, que provém após a justificação da graça, mas, da liberdade dos dons de Deus que quis doar, a fim de que ninguém se extasie das próprias obras‖.

288BROWN (2005), p.189, sugere como Agostinho exclui as demais possibilidades: ―Com efeito, Agostinho

não deixou a Simpliciano ‗nenhuma saída‘. Sua resposta à ‗Segunda Questão‘ é um clássico de sua implacável técnica dialética. Foi essa capacidade de excluir todas as alternativas a sua própria interpretação, tomando-as por logicamente incoerentes com uma intentio única, um sentido fundamental de São Paulo, que lhe permitiu fazer o que Ambrósio nunca poderia ter feito: derivar de um texto aparentemente nada ambíguo uma complexa síntese da graça, livre-arbítrio e da predestinação. Pela primeira vez, Agostinho passou a ver o homem como absolutamente dependente de Deus, até mesmo em sua iniciativa primeira de acreditar nele‖.

A fé também depende da graça divina, pois, o homem decaído não é capaz de voltar a sua própria vontade para Deus. De certa forma, Agostinho antecipa a contraposição à corrente do semipelagianismo289, que propõe a fé como algo que parte do próprio ser humano. Entretanto, para Agostinho: ―Ninguém, então, crê se não é chamado290‖. Como as

boas obras dependem da justificação, e esta, só é dada tendo a fé como base, ―então, anterior a todo mérito está a graça291‖. Apenas a vontade de Deus explica a escolha de Deus por Jacó, como também explica a não escolha em relação a Esaú292.

O fato do homem não receber a graça por sua própria vontade, não significa que a faculdade da vontade tenha sido esquecida por Agostinho. Agostinho irá relacionar a vontade com a graça. Em uma passagem que pode ser interpretada de diferentes maneiras, Agostinho afirma: ―Ninguém, assim, crê se não é chamado, mas nem todos os chamados crêem. Muitos, pois, são os chamados, poucos, porém são os eleitos. Alguns que são chamados desdenharam, outros, estão seguindo ao crerem. Sem dúvida, acreditaram com a vontade293‖. Um problema que se levanta com o trecho anterior é a difícil questão se o livre arbítrio da vontade tem a capacidade de recusar a graça divina. Em nossa visão, Agostinho não concebe para a vontade a capacidade de querer ou não querer receber a graça. Continuando seu raciocínio, nosso autor chama a atenção de que tanto o querer (―velle‖), quanto o esforço/correr (―currere‖) dependem da graça divina. Será também pela graça que o homem alcança o que deseja, chega a sua meta, produz boas obras e vive feliz. Na relação vontade humana e graça divina, por um lado, Deus participa com o seu chamado, por outro lado, o homem participa ao seguir o chamado294. O fato é que Agostinho precisa relacionar certas passagens bíblicas que afirmam a capacidade do homem em aceitar a ajuda divina, através de sua própria vontade, daquelas passagens que não tomam a ajuda humana. Em sua obra Ad. Simplic. Agostinho abre espaço para uma atuação da vontade, mesmo ela sendo

289 Trataremos do semipelagianismo no capítulo posterior. 290 Ad. Simplic. I, 2, 7: ―Nemo enim credit qui non vocatur‖. 291 Ad. Simplic. I, 2, 7: ―Ergo ante omne meritum est gratia‖. 292 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 8.

293 Ad. Simplic. I, 2, 10: ―Nemo itaque credit non vocatus, sed non omnis credit vocatus; multi enim vocati,

pauci autem electi (Mt 22, 14), utique hi qui vocantem non contempserunt sed credendo secuti sunt. Volentes autem sine dubio crediderunt‖.

corrupta. Entretanto, e o mais importante, para que a vontade humana ―atue‖, ela necessita da graça divina.

Ao recorrer a uma passagem da Carta de Paulo aos Filipenses (Fil. 2, 12.13): [12] ―(...) realizai a vossa salvação, com temor e tremor. [13] Na verdade, é Deus que produz em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado‖. nosso autor afirma que a boa vontade (―bona voluntas‖), termo que Agostinho já trabalhara no De Libero Arbitrio, não dependerá da atuação da própria vontade, mas, exclusivamente, da atuação de Deus. Na afirmação seguinte percebe-se que Agostinho julga a graça capaz de atuar na cooperação da vontade para com a graça divina:

É manifesto que, frustra-nos o nosso querer, a não ser pela misericórdia de Deus. O querer, porém, a não ser que nós queiramos, é em vão a misericórdia de Deus. Se, pois, Deus é misericordioso, também queremos. Isto, de fato, refere-se à misericórdia, o fato de querermos [...]295.

O texto acima pode ser lido como a confirmação de que Deus, através de sua misericórdia – pois, todo homem é pecador - auxilia a vontade humana a ratificar o seu bom querer. Sem a graça divina o homem não é capaz de querer bem296. Isto não significa que o homem responda, através da sua vontade, à graça divina. Na verdade, é pela própria graça divina que o homem responde positivamente ao chamado da graça, produzindo a boa vontade. Se a vontade humana fosse capaz de, por si, aceitar ou não a graça divina, poder- se-ia dizer que a misericórdia de Deus seria insuficiente para o bom querer297:

‗Muitos são os chamados, poucos os escolhidos‘. E, assim, embora muitos foram chamados de uma só maneira, todavia, nem todos foram afetados da mesma maneira, Só seguem o chamado aqueles que são levados pelas mãos, convenientemente; de modo que não seja menos verdadeiro o dito. Por isso, nessas circunstâncias, nem o querer, nem o esforço, mas é o Deus de compaixão, que chamou no modo apto àqueles que seguiram a vocação?‘ A outros, porém, vieram, na verdade, o chamado, entretanto, como eles foram aqueles que não se moveram,

295 Ad. Simplic. I, 2, 12: ―At illud manifestum est frustra nos velle, nisi Deus misereatur. Illud autem nescio,

quomodo dicatur frustra Deum misereri, nisi nos velimus. Si enim Deus miseretur, etiam volumus. Ad eamdem quippe misericordiam pertinet ut velimus [...]‖

296 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 12. 297 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 13.

nem estavam aptos a serem apanhados, pode-se dizer que foram chamados, decerto, mas não eleitos298.

Os homens pecadores podem ser chamados por Deus, mas se não tiverem sido eleitos, eles não terão a capacidade de aceitarem o chamado de Deus. Este chamado pode ser interpretado como sendo a graça que Deus concede à vontade, tornando-a apta a corresponder à própria graça. Podemos perceber que Agostinho fala em dois tipos de chamados: a) um que será aceito, porque a vontade chamada foi eleita; e b) um chamado que será recusado, pois a vontade que recebeu a graça não foi eleita299. Não há nenhuma imposição violenta da graça divina na vontade humana. Há uma coordenação entre a vontade humana, preparada por Deus, e a graça divina, para que o homem aceite o chamado de Deus300. Deus move a vontade humana para que ela se direcione ao bem, pois afeta, com a graça, esta mesma vontade. A vontade precisa de algo para se mover, algo que lhe dê prazer e que lhe deleite301.

O que permanecerá um mistério para o homem é porque Deus escolhe uma determinada vontade e não outra. De maneira alguma pode-se afirmar que Deus é injusto em sua escolha: ―Assim, é necessário crer, com a maior tenacidade e maior firmeza isto mesmo, que Deus ‗cujo querer é misericordioso e a quem o querer tem paciência‘, isto é,

298 Ad. Simplic. I, 2, 13: ―[...] ‗Multi vocati, pauci electi‘, ut quamvis multi uno modo vocati sint, tamen quia

non omnes uno modo affecti sunt, illi soli sequantur vocationem qui ei capiendae reperiuntur idonei, et illud non minus verum sit: Igitur non volentis neque currentis sed miserentis est Dei, qui hoc modo vocavit, quomodo aptum erat eis qui secuti sunt vocationem? Ad alios autem vocatio quidem pervenit, sed quia talis fuit, qua moveri non possent nec eam capere apti essent, vocati quidem dici potuerunt sed non electi‖.

299 WETZEL (1992), p, 157: ―In particular, if Augustine wants to build human response to a calling into the

divine initiative (thus making faith a gift of grace), he needs to distinguish two modes of calling. One mode fails to elicit faith because the recipient has not been elected. The other mode manages somehow to cause the consent of the recipient to the life of faith. Strictly speaking, the first mode is more a punishment than a calling. The second mode, though a calling in the truest sense, seems to involve a contradiction. Can consent be both voluntary and caused? For Augustine the conjunction must hold. If consent is not voluntary, it is not consent. If consent is not caused, God does not have control over the calling. Augustine‘s solution is simple and brilliant. When God calls those who have been elected for redempltion, he suits the calling to the needs of their situation‖.

300 WETZEL (1992), 157-158: ―In a suitlable calling (vocatio congruens) the recipient is not forced to consent

(a contradition in terms), but is draw out in a divinely contrived environment of choice to assent to a new way of life. The efficacy of the suitable calling (its irresistibility) results from the providential coordination of wiling with the availability of the right sources of delight‖.

301Como esclarece BROWN (2005), p.189: ―Agostinho chegou a essa conclusão após uma reavaliação da

natureza da motivação humana. Foi essa descoberta psicológica que conferiu poder de convicção a sua interpretação de Paulo. Em resumo, Agostinho analisou a psicologia do ‗deleite‘. O ‗deleite‘ é a única fonte possível de ação, nada mais é capaz de mover a vontade. Portanto, o homem só pode agir se puder mobilizar seus sentimentos, se for ‗afetado‘ por um objeto prazeroso‖.

quando o querer de Deus é misericordioso e quando o querer de Deus não é misericordioso, é parte de uma justiça oculta e de sobre-humana medida de investigação [...]‖302.

A possibilidade que Agostinho encontra para justificar a postura de Deus é voltar a falar do pecado original (―pecati originalis‖). Pelo pecado original o gênero humano não passa de uma massa de pecado (―massa pecatti‖)303, pecadora com Adão, em quem ―todos

os homens morreram‖ (1 Cor. 15, 22). Como Deus é justo, a humanidade tem uma dívida para com Ele; assim, todos os homens são pecadores e estão condenados. Como a dívida deverá ser paga a Deus, o criador pode exigir a dívida ou perdoar, o que significa que Deus, mesmo escolhendo alguns dentre a massa condenada, é justo304.

Quase no término de sua segunda resposta a Simpliciano305, Agostinho retoma a concepção de pecado que ele havia começado a desenvolver no segundo Livro do De

Libero Arbítrio. Tendo, implicitamente, a noção de que há uma ordem intrínseca no

universo criado por Deus, que coloca cada coisa em seu devido lugar, nosso autor irá afirmar que Deus não odeia Esaú por ele ser homem, já que ele é um homem constituído de corpo e alma, criados pelo próprio Deus, e que, como todas as obras da criação, são boas. O criador odeia em Esaú seu pecado, que Agostinho define da seguinte forma: ― É, pois, o pecado dos homens uma desordem e perversão, isto é, uma satisfatória aversão ao Criador supremo, e uma conversão às criaturas inferiores‖306. Todas as coisas criadas por Deus são

boas, mas, ao direcionar a vontade a estas criaturas, abandona-se o Criador, Sumo Bem, invertendo a ordem hierárquica dos bens307. Este foi o erro de Adão e este é o pecado de

302 Ad. Simplic. I, 2, 13: ―Atque ita tenacissime firmissimeque credatur id ipsum, quod Deus cuius vult

miseretur et quem vult obdurat, hoc est cuius vult miseretur et cuius non vult non miseretur, esse alicuius occultae atque ab humano modulo investigabilis aequitatis [...]‖

303 Sobre a expressão massa pecatti afirma SAGE (1967), pp. 219-220: ―Dans la réponse à la seconde

question de Simplicien sur l‘Épître aux Romains chapitre IX, apparaît de noiuveau La mention de massa: massa pecatti, massa peccatorum; on rencontre même: uma conspersio omnium. Saint Paul, dans Le chapitre IX de l‘Épître aux Romains, entend souligner, explique Augustin, l‘absolue liberté de Dieu dans la dispensation de ses misericordes essentiellement gratuites. Dieu ne peut jamais être taxe d‘arbitrire‖.

304 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 16. 305 Cf. Ad. Simplic. I, 2, 18.

306 Ad. Simplic. I, 2, 18: ―Est autem peccatum hominis inordinatio atque perversitas, id est a praestantiore

Conditore aversio et ad condita inferiora conversio‖

307 ARMAS (1956), p. 171, afirma que ―No pecamos por amar cosas malas, sino por amar desordenadamente

cosas buenas, porque nada malo hizo Dios. Buenos son los cuerpos, bueno el oro, bueno los mares, bueno los astros, cuanto vuela, cuanto repta, cuanto serpea y cuanto anda. Pero existe jerarquía en los bienes: hay un

todo pecador em todas as épocas. Como a vontade atual está completamente corrompida,