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A obra De spirittu et littera foi escrita bem próxima da obra De peccatorum meritis

et remissione et de baptismo parvulorum. Naquela obra de resposta a Marcelino, Agostinho

afirmara que era possível alcançar a justiça e a perfeição neste mundo. O homem pode alcançá-la, através da vontade e do auxílio divino, entretanto, ninguém será capaz de alcançar esta perfeição, apenas Jesus alcançara tal estado. Marcelino não compreendera muito bem a resposta de Agostinho409. Este será o ponto de partida para esta obra, que analisaremos à luz de nossa questão.

Viver sem pecado é a ação mais excelente que um homem pode alcançar nesta vida, é a perfeita santidade. Dentro desta obra, participa a vontade humana. Esta perfeição da qual participa a ―obra‖ humana depende, essencialmente, da interferência divina410. A

grande disputa entre Agostinho e os pelagianos é que os segundos afirmam que a vontade humana é capaz, por si, de atingir a perfeição nesta vida, observando, através do livre arbítrio da vontade, os preceitos dados por Deus aos homens; enquanto Agostinho afirma, categoricamente, que a vontade humana não consegue a vida bem aventurada sem a graça divina411. Assim, mais uma vez, podemos perceber a relação intrínseca que deve haver entre vontade humana e graça divina, na concepção agostiniana sobre os atos humanos:

Nós, por outro lado, dizemos que a vontade humana, de tal maneira, é ajudada pelo divino, para que faça a justiça, da seguinte forma: além de ser criado o homem com o livre arbítrio, e receber a doutrina, pela qual recebe preceitos de como deva viver, aceita o Espírito Santo, que suscita em sua alma seu prazer, e o amor daquele sumo e incomensurável bem, que é Deus. Ainda agora, com a fé, se caminha (a Ele), não pela vista; para que, cada um, por exemplo, com esta dada gratuidade, arda incendiando, fixamente, ao Criador; e se inflame para ascender à participação de sua verdadeira luz, a fim de que ele seja seu bem, pelo qual tenha o ser412.

409 Cf. De Spir. et Litt. I, 1. 410 Cf. De Spir. et Litt. II, 2.

411 Cf. De Spir. et Litt. II, 4. A ação da graça divina leva PLINVAL (1959), p. 356 a considerar que: ―Toutes

les vertus qui sont en nous des complaisances de Dieu et dont l‘enseble constitue notre mérite et notre sainteté représentent assurément des dons gratuits ; mais ces dons ne sont pas pour cela des vertus étrangère à notres et inscrustées, consubstntialisées en nous. Qu‘il s‘agisse de la chasteté, de la patience, aussi bien que de la « «perfection » ou de charité, tout cela est munus divinum‖.

412 De Spir. et Litt. III, 5: Nos autem dicimus humanam voluntatem sic divinitus adiuvari ad faciendam

iustitiam, ut praeter quod creatus est homo cum libero arbitrio praeterque doctrinam qua ei praecipitur quemadmodum vivere debeat accipiat Spiritum Sanctum, quo fiat in animo eius delectatio dilectioque summi

Mesmo que o homem saiba, por um preceito, o que deva fazer, sua vontade não terá força para agir da maneira correta, por isso, Agostinho afirma que o preceito sem a graça, parafraseando Paulo, é a letra que mata. O versículo paulino ―A letra mata, mas o Espírito é que dá a vida‖ (2 Cor. 3, 6) é a chave de leitura para esta obra analisada413. A letra é o

preceito, a regra pura e simples; o Espírito é sinônimo de graça, a intervenção divina na vontade humana. Sem o ―espírito‖, o homem transgride a lei. A lei é um catalisador para se pecar, mais do que um norteador. Assim, Agostinho também afirma que viver na justiça é um dom Deus, mas não prescinde jamais a vontade humana, pela qual o homem faz o bem ou o mal414. Esta vontade, precisa ser justificada gratuitamente pela graça divina, ou seja, a vontade humana só cumpre a lei se a vontade decaída for curada pela graça divina415. Aquele indivíduo que tem consciência de que Deus é causa de suas boas obras, possui sabedoria, sinônimo de piedade416; entretanto, aquele que toma a si próprio, unicamente, como autor de suas boas obras é idólatra417. Para Agostinho, pelagiano é sinônimo de idólatra.

Nesta mesma obra, Agostinho apresenta o que significa a verdadeira liberdade. Esta concepção que apresentaremos destoa da noção ―comum‖, retomada pelos pelagianos, de que a liberdade é poder agir de diferentes maneiras, através da vontade; poder fazer o bem ou poder fazer o mal. Agostinho parte de um versículo do apóstolo Paulo, de uma das cartas aos Coríntios: ―Pois o senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade‖ (2 Cor. 3, 17)418. Na visão de Agostinho, Espírito é sinônimo de graça divina. A

graça divina será capaz de abster o homem de cometer o pecado, e este ato será considerado a verdadeira liberdade. Aquele que não é livre é um escravo, mais especificamente, escravo do pecado419. O homem livre é o homem que cumpre a lei, e este, por sua vez, é o homem illius atque incommutabilis boni, quod Deus est, etiam nunc cum per fidem ambulatur, nondum per speciem (2Cor, 5, 7), ut hac sibi velut arra data gratuiti muneris inardescat inhaerere Creatori atque inflammetur accedere ad participationem illius veri luminis (Jo 1, 9), ut ex illo ei bene sit, a quo habet ut sit.

413 Cf. De Spir. et Litt. IV, 6. 414 Cf. De Spir. et Litt. V, 7. 415 Cf. De Spir. et Litt. IX, 15.

416 Agostinho retira esta relação de um versículo do livro de Jó 28, 28, citado pelo próprio autor: ―Ecce pietas

est sapientia‖.

417 Cf. De Spir. et Litt. XI, 18.

418 No original latino temos ―Dominus autem Spiritus est; ubi autem Spiritus Domini ibi libertas‖. 419 Cf. De Spir. et Litt. XI, 28.

feliz, aquele que terá a vida eterna, que consiste no conhecimento do Deus único e verdadeiro420, como Agostinho encontra no Evangelho de João: ―Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e Jesus Cristo, aquele que ele enviaste‖ (Jo 17, 3)421. Estes são chamados de predestinados (―praedestinati‖)422, termo importante para este

período do pensamento agostinano, e que teremos a oportunidade de retornarmos posteriormente.

Voltando a questão da liberdade, Agostinho se faz a seguinte questão: ―Então, o livre arbítrio é destruído pela graça423?‖ Já sabemos que não. O homem, mesmo após a queda, continua a possuir o livre arbítrio da vontade, o querer fazer o bem ou o mal, entretanto, após a queda original, o homem não consegue fazer o bem. A graça divina não anula a liberdade da vontade, mas a consolida, lhe efetiva. Como a liberdade é o cumprimento da lei, e este cumprimento só ocorre com a graça, a graça, juntamente com a vontade humana, é que realiza a liberdade. Nesse sentido, a graça cura a vontade decaída do ser humano. O homem, após o pecado original, torna-se escravo do pecado. A verdadeira liberdade só ocorre com a ―libertação‖, através da graça divina. Há três conclusões do que foi dito: a) Livre arbítrio da vontade é algo diferente de liberdade da vontade; b) A graça possibilita a verdadeira liberdade; c) A graça potencializa a vontade, que antes da graça está limitada.

420 Cf. De Spir. et Litt. XXII, 37.

421 No latim encontramos ―Haec est autem vita aeterna, ut cognoscant te unum verum Deum et quem misisti

Iesum Christum”.

422 Cf. De Spir. et Litt. XXIX, 40.

423 De Spir. et Litt. XXX, 52: ―Liberum ergo arbitrium evacuamus per gratiam?‖ Sobre a relação da graça

com o livre arbítrio afirma SAGE, Athanase, Le péché originel dans la pensée de saint Augustin, de 412 à 430 : in. Revue des Études Augustinienne, V. XV, n° 1-2, 1969, (p. 75- 112), p.100: ―Pour Augustin, le cas des enfants baptisme illustrait, sans aucune contestation possible, l‘absolue prévenance de la grâce. Cet priorité de la grâce ne violente pas un libre arbitrie encore en sommeil. Elle met au contraire les enfants en mesure de contrebalancer, au moment de l‘éveil de leur raison, la séduction des biens sensibles ; elle établit leur libre arbitre, blessé par la concupiscence, dans l‘axe de son authentique finalité. S‘ill s‘agit des adultes, l‘évêque appliquait, au conflit de priorité entre la grâce et le libre arbitre, l‘abrupte solution de l‘Apôtre au conflit de priorité entre la foi et la loi : « Legem destruimus per gratiam ? Absit ; sed legem statuimus » L‘évêque dira : « Liberum arbitrium evacuamus per gratiam ? Absit, sed magis liberum aritrium statuimus ». Les deux cas sont solidaires. C‘est en passant par le seuil de la foi que des vases de colère se transmuent en vases de miséricorde et le seuil se présente, dès l‘éveil de la raison, quand l‘homme commence à pouvoir pécher ou ne pas pécher. Et c‘est un seuil de grâce, car la foi est un don absolument gratuit. La foi, qu‘il s‘agisse de foi humaine ou de foi divine, implique toujours l‘exercise du libre arbitre ; mais la grâce ne le violente pas‖.

Agostinho irá se perguntar se está no poder do homem a fé424. Esta pergunta possibilita o discernimento entre duas ações: poder (―posse‖) e querer (―velle‖). Vontade (―voluntas‖) vem de querer (―velle‖); e poder (―potestas‖) vem do verbo poder (―posse‖), assim, quem quer, tem vontade; e quem pode, tem poder. A relação entre querer e poder ocorre no fato de que o poder só se realiza através da vontade. Agostinho irá afirmar que Deus concede a crença ao ser humano, pois, a vontade atual não tem a capacidade de crer por si mesma425. Antes do pecado original, estava no poder da vontade o querer, que realmente se efetivava. Em outras palavras, o homem podia querer bem ou querer mal, e a vontade era capaz de efetivar este querer. Após o pecado original, as duas ações, querer e poder se distanciaram. Em sua atual condição, o homem ―não faz o bem que quer, mas faz o mal que não quer‖, nas palavras de Paulo; o homem continua podendo querer mal e continua podendo efetivar tal querer; contudo, o homem pode até querer pela vontade o bem, mas ele não se efetiva, pois lhe falta poder para tal. Isto é o que chamamos vontade decaída. Além do mais, o homem neste estado perde a capacidade de agir só pelo querer, pois, muitas vezes, ele faz algo que não queira, já que sua vontade está tomada pelas consequências do pecado original.

Agostinho irá responder que a vontade de crer em Deus é fruto da liberdade, que é obra de Deus. Deus chama a todos, mas nem todos irão, por sua própria escolha. Isso significa que é possível não querer a graça divina? É claro que o homem não terá este poder426. De certa forma, Deus opera na vontade humana para que ela aceite a graça. Deus age, tanto de maneira exterior, quanto de maneira interior, em relação ao homem, para que ele queira crer, haja vista a própria vida de Agostinho. Agostinho afirmará que a iniciativa de consentir ou dissentir sobre a graça divina é iniciativa da vontade, mas, a própria vontade consentindo é obra da graça de Deus427. Então, por que Deus persuade uns e não outros? Tanto nesta obra quanto em todas as demais obras de Agostinho, esta questão não receberá resposta.

424 Cf. De Spir. et Litt. XXXI, 53. 425 Cf. De Spir. et Litt. XXXI, 54. 426 Cf. De Spir. et Litt. XXXIII, 58. 427 Cf. De Spir. et Litt. XXXIII, 58.