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NOÇÕES PELAGIANAS SOBRE A FACULDADE DA VONTADE NA OBRA: DE GESTIS PELAGII (417)

HOMINIS (415) EM RELAÇÃO À FACULDADE DA VONTADE

4.2.3 NOÇÕES PELAGIANAS SOBRE A FACULDADE DA VONTADE NA OBRA: DE GESTIS PELAGII (417)

Neste item, temos a intenção de dissertar sobre o De Gestis Pelagii, que complementa nossa análise sobre a faculdade da vontade nos pelagianos. Esta obra não fora escolhida de forma aleatória, mas, na certeza de que contém mais elementos do que outras do mesmo período, a fim de trabalharmos a noção da faculdade da vontade nos pelagianos. No capítulo dedicado, exclusivamente, a Agostinho, falaremos sobre as demais obras, que não foram trabalhadas nestes primeiros itens.

A obra De Gestis Pelaggi (417) é um comentário de Agostinho sobre um documento (atas) produzido a partir do Concílio de Diáspolis (415). Temos nessas atas trechos das obras de Pelágio e Celéstio, além de suas falas no encontro. Pelágio, frente aos bispos do Concílio de Diáspolis, dará várias interpretações diferentes a trechos do seu próprio texto. Pelágio estava sobre forte pressão diante dos bispos católicos. Sua maneira de abrandar os trechos de suas obras fora uma saída encontrada pelo monge bretão de não ser penalizado formalmente pela Igreja. Nesse sentido, deve-se desconsiderar trechos nos quais Pelágio muda radicalmente sua interpretação.

Para Pelágio, a Lei divina é uma ajuda (graça) de Deus, que tem como fim mostrar ao homem o caminho que ele deve seguir para buscar a vida eterna. Vivendo de acordo com a lei divina, o homem não peca. Por isso, Pelágio afirma: ―Não posso estar sem pecado, a não ser que tenha conhecimento da lei‖371. Tendo o conhecimento da lei, através

da vontade, pode-se agir de acordo com o que lei de Deus determina.

Pelágio irá usar da boa fé dos bispos em Diáspolis, para rechaçar todas as acusações que caíam sobre suas obras. Uma das saídas de Pelágio será acusar seu discípulo Celéstio de todos os erros que caiam sobre sua própria doutrina. Assim, Pelágio chega ao cúmulo de corroborar, com os bispos presentes, os supostos ―erros‖ de Celéstio, mas que, como já vimos, são posições que ele mesmo defendera. As posições repelidas podem ser sintetizadas em a) Adão foi criado mortal; b) seu pecado só lhe prejudicou; c) a lei, isoladamente, conduz ao céu; d) antes de Cristo, viveram homens sem pecados por sua própria força; e) os recém nascidos são como Adão antes de pecar; f) os homens não morrem em Adão, nem renascem em Cristo; g) os meninos sem batismo alcançam a vida eterna; h) os ricos batizados, caso não se desfaçam de seus bens, não terão a vida eterna372.

A doutrina de Celéstio, pelo menos no concílio, será tratada de forma diferente da doutrina de Pelagio. Apesar de verificarmos que o próprio Pelágio ―condenou‖ as proposições de Celéstio, sabemos que seu discípulo nada mais fazia do que confirmar as teses que partiram do próprio mestre. Pelágio, para salvar seus próprios escritos, abandona seu mais fiel discípulo.

Celéstio (e também Pelágio) não entende a graça como um auxílio para a vontade decaída (devido ao pecado original), pois, trata a faculdade da vontade, como auto- suficiente. Graça será entendida como sendo o próprio livre arbítrio da vontade, com a sua possibilidade inerente de fazer o bem, mas, também, o mal. Graça, também, será entendida como sendo a lei e a doutrina, que servem de norteadores para as boas ações373. Não é de estranhar que Celéstio não consiga conciliar o livre arbítrio da vontade com a ajuda divina (exterior), pois o mérito humano viria pela própria obra humana374.

No final da obra De Gestis Pelagii, há uma interessante síntese sobre as proposições do pelagianismo. Mesmo que Pelágio tenha criticado determinadas proposições que ele mesmo defendera, tais afirmações ficarão associadas às doutrinas pelagianas. Vejamos as

372 Cf. De Gestis. XI, 23-24. 373 Cf. De Gestis. XIV, 30. 374 Cf. De Gestis. XVIII, 42.

proposições em sua formulação completa, nos oferecendo um sumário do pensamento pelagiano:

a) Que Adão foi criado mortal e que, caso pecasse, ou caso não pecasse, estava destinado a morrer.

b) Que o pecado de Adão prejudicou somente ele próprio, e não ao gênero humano. c) Que a lei conduz ao Reino do mesmo modo que o Evangelho.

d) Que os recém-nascidos estão no estado que Adão estivera antes da prevaricação. e) Que nem pela morte ou prevaricação de Adão está morto todo o gênero humano,

nem pela ressurreição de Cristo ressuscita todo o gênero humano. f) Que as crianças, mesmo não batizadas, têm a vida eterna.

g) Que os batizados, a não ser que renunciem a todas as coisas, ainda que creiam fazer boas coisas, não lhes servem, nem podem ter o reino de Deus.

h) Que a graça de Deus e sua ajuda não são concedidas aos atos singulares, mas, consiste no livre arbítrio, na lei e na doutrina.

i) Que a graça de Deus é dada segundo nosso mérito; e, por tanto, a própria graça está colocada na vontade do homem, ora se faça digno, ora seja indigno.

j) Que não se podem chamar filhos de Deus, se não puderem estar livres do pecado. k) Que o esquecimento e a ignorância não subjazem ao pecado; porque não provêem

segundo a vontade, mas segundo a necessidade.

l) Que não existe o livre arbítrio, caso ele necessite do auxílio de Deus; pois, cada um, é dom de sua própria vontade, para fazer ou não fazer.

m) Que nossa vitória não seja devido ao auxílio divino, mas através do livre arbítrio. n) Que daqueles, que diz Pedro, ‗nós somos consortes da natureza divina‘ (2 Pe 1, 4),

resulta, consequentemente, que posso estar sem pecado, do mesmo modo que Deus. o) Que os que vêm de penitência não é concedido segundo a graça e misericórdia de Deus, mas, segundo o mérito e trabalho deles, que, pela penitência, foram dignos de misericórdia375.

375 De Gestis. XXXV, 66: ― (a) Adam mortalem factum, qui sive peccaret, sive non peccaret, moriturus esset.

(b) Quod peccatum Adae ipsum solum laeserit, et non genus humanum. (c) Quod Lex sic mittat ad regnum, quemadmodum et Evangelium. (d) Quod infantes nuper nati in illo statu sint, in quo Adam fuit ante praevaricationem. (e) Quod neque per mortem vel praevaricationem Adae omne genus hominum moriatur,

Temos acima uma perfeita abreviação do pensamento pelagiano. Pode-se perceber como as proposições vão ao encontro de nossa temática sobre a faculdade da vontade. Tomemo-nos a liberdade de analisar cada uma das proposições pelagianas, relacionando-as, com nossa temática:

a) Que Adão foi criado mortal e que, caso pecasse, ou caso não pecasse, estava destinado a morrer.  Nesta proposição pode-se perceber que os pelagianos negam, frontalmente, o pecado original, dado que a mortalidade de Adão independe do pecado. Eles encaram a mortalidade adâmica como algo natural. Como os pelagianos tomam a vontade, absolutamente, apta a cumprir suas determinações, não lhes é necessário o conceito de pecado original.

b) Que o pecado de Adão prejudicou somente ele próprio, e não ao gênero humano  Como os pelagianos são descrentes quanto ao pecado original, não lhes é necessário falar das consequências deste primeiro pecado. Por conseguinte, não se pode falar na transmissão da queda e, consequentemente, da vontade decaída como efeito do pecado original.

c) Que a lei conduz ao Reino do mesmo modo que o Evangelho  Mais do que levar o homem a cometer o pecado, como diz Paulo, a lei de Deus para os pelagianos leva ao Reino, da mesma forma que o Evangelho. A vontade auto-suficiente é capaz de apreender a lei e o Evangelho em benefício próprio, ao seguir seus preceitos. Como a vontade está bem, em seu estado natural, a força da própria vontade, para seguir a lei divina, é o único requisito para a salvação.

neque per resurrectionem Christi omne genus hominum resurgat. (f) Quod infantes, etsi non baptizentur, habeant vitam aeternam. (g) Quod divites baptizati, nisi omnibus abrenuntient, si quid boni visi fuerint facere, non eis reputetur, neque regnum Dei posse habere. (h) Quod gratia Dei et adiutorium non ad singulos actus detur; sed in libero arbitrio sit, et in lege atque doctrina. (i) Quod Dei gratia secundum merita nostra detur; et propterea ipsa gratia in hominis sit posita voluntate, sive dignus fiat, sive indignus. (j) Quod filii Dei non possint vocari, nisi omnino absque peccato fuerint effecti. (k) Quod oblivio et ignorantia non subiaceant peccato; quoniam non eveniant secundum voluntatem, sed secundum necessitatem. (l) Quod non sit liberum arbitrium, si indigeat auxilio Dei; quoniam propriam voluntatem habeat unusquisque aut facere aliquid, aut non facere. (m) Quod victoria nostra ex Dei non sit adiutorio, sed ex libero arbitrio. (n) Quod ex illo, quod ait Petrus, divinae nos esse consortes naturae, consequens sit ut ita possit esse anima sine peccato, quemadmodum Deus" [...] (o) Quod poenitentibus venia non detur secundum gratiam et misericordiam Dei, sed secundum meritum et laborem eorum, qui per poenitentiam digni fuerint misericórdia‖.

d) Que os recém-nascidos estão no estado em que Adão estivera antes da prevaricação  Excluída a noção de pecado original, transmitida para toda a humanidade, não há porque os pelagianos não afirmarem que os recém-nascidos encontram-se no estado natural de Adão. Isto significa três pontos: 1º) elimina-se a noção de pecado original, e, consequentemente, 2º) o pecado de Adão não influencia as naturezas futuras; 3º) a vontade do recém-nascido está pura, podendo tornar-se má, pelas suas más escolhas, ao longo da vida do indivíduo. Em suma: só depende da própria vontade agir bem ou mal.

e) Que nem pela morte ou prevaricação de Adão está morto todo o gênero humano, nem pela ressurreição de Cristo ressuscita todo o gênero humano  Este ponto, notadamente, vai além das perspectivas de nosso trabalho. Entretanto, talvez, seja um dos pontos mais importantes a serem debatidos sobre o pelagianismo. Não que os pelagianos excluíssem a figura do Cristo, pois eles mesmos se diziam cristãos, entretanto, as consequências de suas afirmações foram além do que eles propuseram. O gênero humano não cai juntamente com Adão, assim, a figura de Cristo perde sua centralidade, pois toda a economia da salvação está na ideia de que o Cristo salva a humanidade. Para os pelagianos, permenece, apenas, o exemplo da vida de Cristo, a ser seguido pelos homens, através da vontade auto-suficiente.

f) Que as crianças, mesmo não batizadas, têm a vida eterna  Como não há pecado original, as crianças nascem em estado de pureza, e, caso venham falecer, por não terem pecados próprios, têm garantidas a vida eterna.

g) Que os batizados, a não ser que renunciem a todas as coisas, ainda que creiam fazer boas coisas, não lhes servem, nem podem ter o reino de Deus  Sem entrarmos no mérito da questão, tal proposição se assemelha às proposições donatistas, que pregavam a pobreza absoluta. Pode-se, também, perceber a ausência de crença sobre a salvação do batismo, já que, é preciso, necessariamente, certas obras para garantir a salvação. Sobre a questão da vontade, pode-se perceber que a vontade do homem, por si, é capaz de moldar e mudar a vida humana, quando lhe aprouver.

h) Que a graça de Deus e sua ajuda não é dada aos atos singulares, mas consiste no livre arbítrio, na lei e na doutrina  O tema da graça está, implicitamente, presente na temática sobre a vontade em Agostinho. Os pelagianos não negam a graça divina, mas não a tomam como atuante na vontade do indivíduo, pois, a vontade não pode sofrer influência alguma de coisas exteriores a ela. Nesse sentido, a graça será assimilada, nesta afirmação, como sendo três coisas: a) o livre arbítrio, para poder agir bem, bastando-lhe um simples desejo para tal; b) a lei, que é um norteador para o agir bem; c) a doutrina, que pode ser seguida com a vontade.

i) Que a graça de Deus é dada segundo nosso mérito; e, por tanto, a própria graça está colocada na vontade do homem, ora se faça digno, ora seja indigno  Para os pelagianos, como a vontade não pode sofrer influência exterior para agir, podemos ver tal proposição de duas formas: 1º) o próprio livre arbítrio da vontade é uma graça para os pelagianos, como visto em (h); 2º) a graça de Deus não advém como um auxílio divino ao homem para agir bem, na verdade, ao agir bem, a vontade recebe o mérito de Deus. Como a vontade é auto-suficiente, ela é capaz de receber a graça como sendo uma recompensa pelo seu bom agir.

j) Que não se podem chamar filhos de Deus, se não puderem estar livres do pecado  Como a vontade é perfeita, e como Deus espera a perfeição de suas criaturas, não faz sentido aos pelagianos Cristo pedir a perfeição, se não há possibilidade de atingí-la. É através da vontade que se atinge a perfeição, por isso, ela deve estar em seu perfeito estado. Veremos isso em (n).

k) Que o esquecimento e a ignorância não subjazem ao pecado; porque não viriam segundo a vontade, mas segundo a necessidade  O esquecimento e a ignorância não são penas do pecado, pois seriam situações necessárias.

l) Que não existe o livre arbítrio, caso necessite do auxílio de Deus; pois, cada um, é dom de sua própria vontade, para fazer ou não fazer  Como já ressaltado, ao longo deste capítulo sobre os pelagianos, eles não conseguem conceber o livre arbítrio juntamente

com o auxílio divino (graça). A vontade tem a capacidade natural de agir como lhe convir. Isto significa que a vontade tem a capacidade intrínseca de agir mal, mas, também, possui a capacidade intrínseca de agir bem.

m) Que nossa vitória não seja devido ao auxílio divino, mas através do livre arbítrio  Vitória aqui é sinônimo de ―reino dos céus‖. Os pelagianos não aceitam interferência no livre arbítrio da vontade. Da mesma forma que o ―reino dos céus‖ ocorrerá ao homem que usa bem a sua vontade, a danação é fruto do mau uso da vontade. Este otimismo do pelagianismo é uma de suas marcas mais fortes.

n) Que daquelas (palavras), que diz Pedro, „nós somos consortes da natureza divina‟ (2 Pe 1, 4), resulta, consequentemente que posso estar sem pecado, do mesmo modo que Deus  O otimismo que ressaltamos em (m), é explicitado na visão de que o homem pode levar esta vida sem pecado, como Deus. Basta-lhe a vontade. É concebível para os pelagianos que os ―santos‖ usufruem da auto-suficiência da vontade, sempre para o bem. Este tipo de vida pregada era bastante propício para o decadente império romano, como já observado.

o) Que os que vêm de penitência, não é concedido segundo a graça e misericórdia de Deus, mas, segundo o mérito e trabalho deles, que, pela penitência, foram dignos de misericórdia  Para os pelagianos a noção de que, pela misericórdia de Deus, é possível levar vida penitente, lhes é totalmente estranha. Na verdade, ocorre o contrário: através da penitência consegue-se a misericórdia de Deus. Em outras palavras, o mérito pessoal faz com que Deus se volte para o indivíduo, agraciando-o.

4.3 – A CONCEPÇÃO DE VONTADE EM AGOSTINHO NAS