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2.3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A FACULDADE DA VONTADE NO LIVRO VIII DA OBRA CONFESSIONES

Talvez a obra Confessiones seja o texto essencial para quem deseje conhecer ou estudar Agostinho. Ao longo desta ―biografia‖, há diversos assuntos tratados em suas linhas. Dentre esses assunos nos deparamos com o problema da faculdade da vontade. Encontram-se comentários sobre a voluntas ao longo de toda obra, mas é o Livro VIII o mais importante para esta temática.

Ao ver narrada a definitiva ―conversão‖ de Agostinho ao cristianismo, nos deparamos com um grande conflito interno. Mesmo já sendo um bispo, um homem influente em seu universo, temos a descrição do quão são difíceis tais mudanças de vida. Será justamente em suas narrações nas Confessiones que teremos elementos suficientes para analisarmos a faculdade da vontade em seu estado atual, pós-pecado original; estado este que difere completamente da situação colocada no Livro I do De Libero Arbitrio.

É interessante notar que o mesmo autor que ―descobre‖ a faculdade da vontade, para explicar a questão do mal, vai descrever esta mesma faculdade em sérias dificuldades. Não há contrasenso algum, o que temos, pois, por um lado, é a descoberta de uma faculdade autônoma em relação ao desejo e a razão, faculdades estas há muito tempo trabalhadas pelos gregos; e, por outro lado, tem-se a constatação (que todo ser humano pode fazer por experiência própria) de que esta faculdade não é auto-suficiente.

Um exemplo concreto, a tentativa frustrada de conversão ao cristianismo, é o mote para que Agostinho descreva fenomenologicamente a faculdade da vontade. Ter todo o conhecimento de uma determinada situação não é garantia alguma de efetivar uma determinada ação. A ―voluntas‖ não será capaz de cumprir uma determinada exigência da própria ―mens‖. A vontade move o corpo, os braços, pernas, cabeça, mas não é capaz de se mover. Por isso, o homem é denominado ―mostrum‖ por Agostinho.

Agostinho descreve, e poderiam ser diferentes exemplos, sua dificuldade em se tornar um homem casto para devotar sua vida a Deus. A justificativa para o fenômeno descrito é que uma ―voluntas‖, após agir sempre de uma determinada maneira má torna-se uma ―voluntas perversa‖. Ao permanecer agindo, frequentemente, como uma ―voluntas

perversa‖, cria-se um ―consuetudo‖, que, por sua vez, orginará uma ―necessitas‖, uma espécie de segunda natureza. A ―voluntas‖ estará submetida a esta ―necessitas‖, não tendo mais a capacidade, por si só, de sair desta situação. A vontade é completamente arrastada para onde não quer estar e nem permanecer. A vontade era auto-suficiente? Era antes do pecado original. Este evento é o motivo pelo qual a vontade passa a estar em permante conflito consigo, pois, o homem atual está submetido à lei do pecado em seus membros.

Temos, pois, a existência da faculdade da vontade, que continua sendo uma faculdade da ―mens‖, autônoma em relação à razão e ao desejo, mas que não cumpre suas funções, como descritas no capítulo anterior.

O conflito interno pode ser identificado como o conflito entre as diferentes ―vontades‖ que, na verdade, é uma única vontade, que se direciona para diferentes objetos. O ―eu‖ quer isto, e o mesmo ―eu‖ não quer isso. O ―eu‖, por exemplo, quer parar de fumar, mas o mesmo ―eu‖ não quer parar de fumar. Há, pois, uma resitência da vontade em relação à própria vontade. Entretanto, o conflito não se resume a uma dicotomia. Percebe-se um conflito entre inúmeras possibilidades, das quais, muitas vezes, a vontade não é capaz de tomar uma decisão. Na maioria dos casos as ―decisões‖ são tomadas por ímpetos, que não têm nenhuma relação com uma decisão voluntária.

Temos aqui, no nascedouro de uma teoria sobre a vontade, a descrição do conflito interno da vontade. A experiência pessoal de cada indivíduo possibilta constatar o conflito diário que a vontade enfrenta consigo. Muito antes de teorias que questionam a auto- suficiência da vontade, Agostinho teve a capacidade de descrever, brilhantemente, este conflito. Não há, jamais em Agostinho, uma negligência quanto à faculdade da vontade, mas, Agostinho procura ilustrar como a faculdade é mais complexa do que se poderia

imaginar. Um dos grandes méritos de Agostinho é descrever a faculdade da vontade com seus conflitos internos.

As explicações sobre os conflitos da vontade podem ser inúmeras. Pode-se falar em teorias sociais, psíquicas e biológicas. Agostinho, no entanto, explica estes conflitos através de uma visão cristã de mundo. Para ele, é fato que Deus criou o homem de maneira perfeita, mas, com o pecado original, há mudanças significativas na constituição ontológica do ser humano. Esta mudança afeta profundamente a faculdade da vontade, que passa a não fazer aquilo que quer.

Podemos tomar esta teoria da vontade para exemplificar casos do cotidiano, entretanto, no fundo desta temática, como dissemos, o verdadeiro conflito que Agostinho procura descrever é aquele sobre a tentativa frustrada de conversão. Agostinho tem todos os elementos necessários para devotar sua vida ao Bem Supremo. As histórias narradas sobre conversão seriam exemplos perfeitos a serem seguidos, mas o passo definitivo não ocorre.

O verdadeiro conflito interno para Agostinho é o conflito entre se voltar para Deus, o Bem Supremo, ou permanecer atrelado aos bens inferiores, isto é, aos bens temporais. Aqui, as palavras de Paulo se fazem ouvir ―faço o mal que não quero e não faço o bem o que quero‖. Para Agostinho a maior dificuldade da vontade é voltar-se para Deus, seu verdadeiro bem, o objeto que ira lhe causar deleite.

Há, inevitavelmente, um paradoxo percebido. Se a) Deus é o Criador de todas as coisas; se tudo sai de Deus; b) Se todas as criaturas, inclusive o homem, foram criadas para que se voltassem para Deus e c) Se Deus é o fim de todas as coisas; como, então, conciliar com d) o fato do homem não ter mais a capacidade de se voltar para Deus? Será preciso uma intervenção de Deus na vontade humana para que a vontade possa direcionar sua vida ao seu fim.

O conflito descrito ocorre porque o livre arbítrio da vontade ainda é capaz de escolher. No último caso exemplificado, Agostinho tem a capacidade de querer devotar sua

vida a Deus, mas isto não se concretiza. O querer permanece como uma possibilidade de ação do livre arbítrio, mas, este querer não significa poder. Deve-se enfatizar que passa haver uma grande distância entre querer e poder. O querer do livre arbítrio só se concretiza quando escolhe mal. Neste caso, o livre arbítrio tem a possibilidade de concretizar a sua escolha, assim, querer e poder se igualam. Entretanto, caso o livre arbítrio escolha um bem, pois o querer continua sendo algo de sua natureza, esta escolha não se concretiza, fazendo com que querer e poder não se igualem. Só há uma possibilidade do querer se igualar ao poder: é preciso uma intervenção exterior.

Devemos nos voltar àqueles conceitos essenciais para que vejamos como eles se caracterizam após a queda do pecado original.

a) A faculdade da vontade (―voluntas‖)  mesmo após a queda do pecado original, a vontade permanece sendo uma faculdade da alma humana, mas, com algumas mudanças em sua essência. b) O livre arbítrio da vontade (―libero arbitrio voluntatis‖)  esta capacidade da vontade permanece após o pecado original. A vontade continua tendo a capacidade de escolher. O livre arbítrio é capaz de escolher tanto bem como mal. Na má escolha, a vontade continua tendo o poder de concretizar tal escolha. Será necessária uma intervenção exterior, para que o querer bem se concretize. Tais condições fazem com que os homens sejam responsáveis por seus pecados pessoais.

c) A liberdade (―libertas‖)  após o pecado original a vontade não tem mais a capacidade de ser livre, isto é, não tem mais a capacidade de fazer o bem. Será necessária a graça divina para efetivar a liberdade da vontade. Tal condição será explicitada no capítulo posterior.

Temos apontado as características da vontade antes e depois do pecado original. É preciso explicitar como ocorre e quais as características da intervenção de Deus na vontade humana. Isso se chama “gratia‖, e sua caracterização ocorrerá a partir da obra De Diversis