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4.3.3 De natura et gratia (413-415)

A obra De natura et gratia de Agostinho é uma resposta à obra De natura de Pelágio. A obra agostiniana procura mostrar que a graça divina justifica o homem428, e não o próprio ser humano, que se encontra em um estado decadente. Agostinho afirma no início de sua obra que, tomar a natureza humana como não sendo capaz de agir de maneira boa, não significa que o homem tenha esta natureza má, essencialmente falando, ou, em outras palavras, não se deve afirmar que o homem tenha sido criado com uma natureza decaída. Obviamente, Agostinho tem em mente seus antigos adversários, os maniqueístas, que tomam a natureza humana como sendo má, o que absolviria o ser humano das más ações. É interessante Agostinho fazer esta remissão indireta aos maniqueístas, pois, o próprio Agostinho será acusado diversas vezes pelos pelagianos, e, principalmente, pelo bispo Juliano de Eclano de manter sua antiga crença maniqueísta. Já vimos que Agostinho rechaça a noção maniqueísta sobre a vontade e a natureza humana. Além do mais, seus adversários não são mais os discípulos de Manes, mas Pelágio e os pelagianos, que tomam a natureza humana como sendo capaz de agir bem, através de seu próprio mérito, negligenciando, assim, a graça divina, que, para Agostinho, tem o papel, infundida na vontade humana, de fazer com que o homem aja bem, e não apenas entendida como o preceito da lei, como apreendiam os pelagianos.

Talvez a grande questão, implícita, que os pelagianos não compreendiam, ao afirmarem que o homem era auto-suficiente, é a questão sobre se o homem é capaz de salvar-se. Se a justiça advém da natureza humana, Cristo, então, morreu em vão pelos pecados do homem, pois, é pela fé e sangue de Jesus Cristo que os homens se salvam429. O que os pelagianos não perceberam, e que, para Agostinho, era uma questão primordial, é que a disputa de visões entre Agostinho e os pelagianos, na verdade, era uma disputa não apenas sobre concepções de cristianismo, mas envolvia a essência do próprio cristianismo. Como a graça divina, para o bispo de Hipona, passa pela morte e ressurreição de Cristo, se a graça divina, como entendiam os pelagianos, é, unicamente, os preceitos e exemplos de

428 Cf. De Nat. et Grat.I, 1. 429 Cf. De Nat. et Grat.II, 2.

Cristo, Cristo deixa de ser o cordeiro de Deus, e, com isso, toda a concepção sobre o cristianismo, que tem Cristo em seu centro, perderia sua validade. Os pelagianos não notaram que, ao remeter a figura de Cristo a mero exemplo, minavam o cristianismo como um todo. Agostinho utilizará a linguagem da medicina para ilustrar como o homem necessita da figura do Cristo de maneira essencial. Para Agostinho, basta o livre arbítrio da vontade para que o homem peque, mas será preciso muito mais que a vontade para se elevar. Será preciso um médico, pois, o homem não está são430. O pecado deixa o homem doente, que passa a cometer mais pecados após o pecado original431. Cristo é o médico que cura, através de sua graça, a natureza decaída do homem. E, mesmo sendo homem, por sua natureza divina, Cristo não morre por causa do pecado original, como todos os demais homens, mas porque quis redimir o homem de suas mortes e pecados432. Graça, desta feita, deve ser entendida como misericórdia de Deus para com os homens, graça esta que redime o ser humano de sua situação condenatória, e que inclui a vontade, num estado lastimável, de não conseguir fazer aquilo que quer.

Agostinho não toma a natureza humana como tendo sido criada má por Deus. O bispo de Hipona frisa que a natureza humana fora criada sem culpa ou vício qualquer. Em sua concepção original, o homem, através de sua vontade, era capaz de escolher bem ou mal, dado que sua natureza contém o livre arbítrio em sua vontade. Desta feita, eximi-se Deus de ter feito uma natureza imperfeita e má, o que seria contra a própria natureza de Deus. Poder-se-ia falar em uma necessidade de pecar da vontade humana, mas, esta necessidade não é intrínseca à natureza humana. Em seu estado atual a natureza do homem não tem a possibilidade de não pecar, o que poderia caracterizar uma situação intrínseca à sua constituição, entretanto, esta impossibilidade de não pecar, se deve à natureza humana decaída, por causa do pecado original433. A única forma de explicar o vício atual é por meio do pecado original, cometido pelo livre arbítrio da vontade humana434.

430 Cf. De Nat. et Grat.XXIII, 25. 431 Cf. De Nat. et Grat.XXII, 24. 432 Cf. De Nat. et Grat. XXIV, 26. 433 Cf. De Nat. et Grat. XLVIII, 56. 434 Cf. De Nat. et Grat. III, 3.

De tudo o que foi dito, não se pode tomar o pecado como uma substância capaz de afetar a natureza humana. Agostinho não pode chamar o pecado de substância, pelo fato de Deus ser o criador de todas as substâncias existentes, é ele quem dá o ser às substâncias. Nesse caso, não faz sentido chamar o pecado de substância, mas um não-ser435. Para ilustrar isso, Agostinho se vale de um exemplo muito claro de se compreender: assim como o não- comer não é uma substância, mas afeta o organismo, o pecado, que também não é uma substância, afeta completamente a natureza humana, tornando-a corrompida, incluindo, também, sua vontade, que se torna incapaz de fazer o bem, se voltar para Deus436.

A graça, pela qual Deus atua na vontade humana, não advém por qualquer merecimento humano437, dado que a própria vontade, no estado atual, não tem força para tal. Além da própria prática da vontade, que mostra o quanto a vontade humana é fraca, Agostinho se recorda da oração do ―Pai-nosso438‖, onde Cristo ensina os homens a pedirem

perdão (pelos pecados cometidos anteriormente), e, também, ensina a pedirem para que não caiam em tentação (pecados futuros)439.A oração do ―Pai-nosso‖ é um indício de que a graça divina não vem por merecimento, mas é pura gratuidade.

Apesar de destacar, nesta obra, a figura de Cristo, e da necessidade da graça para se agir bem, em nenhum momento Agostinho negligencia o papel da vontade, mesmo ela estando decaída. Enfatizamos isso, mais uma vez, para que não se tome Agostinho por ter negado qualquer participação da vontade no processo de boa escolha. Realmente, não é o homem que se cura, mas há um tipo de relação entre a vontade e a graça divina: ―Onde, na verdade, nós trabalhamos cooperando, onde certamente ele opera, como sua misericórdia nos previu. Previu, porém, para que sejamos curados, e, para que, subsequentemente, estejamos, fortemente sãos.440‖. Agostinho afirma que a vontade humana coopera com a

graça divina, o que significa que há uma relação entre a vontade e a graça. Deus antecipa o

435 Para uma visão do pecado como não sendo uma substância, nos remetemos às Confessiones livro VII, onde

Agostinho discerne sobre o pecado e o mal como um não ser, pois Deus, como Sumo Bem, cria todas as coisas boas.

436 Cf. De Nat. et Grat. XX, 23. 437 Cf. De Nat. et Grat. IV, 4. 438 Mt. 6, 9-13.

439 Cf. De Nat. et Grat. XVIII, 20.

440 De Nat. et Grat. XXXI, 35: ―Ubi quidem operamur et nos, sed illo operante cooperamur, quia misericordia

homem, por sua misericórdia, para possibilitar o homem agir bem441. Mais do que rebaixar o ser humano perante Deus, Agostinho eleva Deus sobre o homem e sobre todas as coisas. Não há aniquilamento da vontade humana, mas ascensão de Deus. Agostinho espera, apenas, humildade perante seu criador e reconhecimento de sua misericórdia. Ao reconhecer os valores da graça divina, Agostinho faz a seguinte afirmação: ―Não é, pois, isto o que comemoramos: que o arbítrio da vontade seja tolhido, mas, pregamos a graça de Deus. A quem, realmente, produz esta verdade, se não a quem quer? Mas, quem quer com humildade, não se orgulha com as forças de sua vontade, como se essa fosse suficientemente perfeita de justiça442.‖ Com o socorro da graça sobre a vontade, a ―necessidade‖ que o homem tem de pecar é anulada, permitindo ao homem vislumbrar viver a liberdade em sentido estrito443.

4.3.4- De perfectione iustitiae hominis (415); De gestis pelagii (417)