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4.6 CONSIDERAÇÕES SOBRE A QUESTÃO DA VONTADE NAS OBRAS ANTIPELAGIANAS.

Neste capítulo decisívo, pudemos falar sobre Agostinho e os pelagianos. Nestas considerações provisórias gostariamos de fazer, primeiramente, um quadro comparativo entre Agostinho e os pelagianos com referências aos temas relacionados à vontade, e, posteriormente, algumas outras considerações.

(TEMA\AUTORES) PELAGIANOS AGOSTINHO ADÃO PECADO DE ADÃO LEI DE DEUS RECÉM- NASCIDOS CRIANÇAS CRISTO GRAÇA MÉRITO LIVRE ARBÍTRIO SALVAÇÃO LIBERDADE

Foi criado mortal e estava

destinado a morrer. Passaria à vida eterna. Por sua causa a morte entrou no mundo. Prejudicou somente o próprio

Adão. Pode ser imitado.

A humanidade estava em Adão. Todos foram afetados pelo pecado original.

Basta para orientar a vida humana. Com ela se age bem.

É um incentivo ao homem para agir ilicitamente (contrariamente à lei) Nascem como Adão, sem pecado

algum.

Nascem sem pecado particular, mas com o pecado original.

Como não tem pecado, se morrerem ganham a vida eterna.

Precisam ser batizadas para remissão do pecado original. É um exemplo a ser seguido pelos

cristãos.

A humanidade depende de sua vinda para que seja salva. É o livre arbítrio, a Lei de Deus e a

Doutrina cristã.

Infunda a Vontade humana para agir bem.

É anterior à graça. É posterior à graça

Tem a capacidade de escolher bem e mal.

Tem a capacidade de escolher bem e mal.

Ocorre pela vontade particular de cada indivíduo.

Depende da graça divina. Sinônimo de livre arbítrio. Perdida após o pecado original,

depende da graça para se realizar. É o agir bem.

Os pelagianos, que, como Agostinho, se consideravam intérpretes fidedignos de Paulo, tinham uma visão bem otimista quanto ao ser humano, e quanto à faculdade da vontade e suas funções. Com uma visão moralista extremamente rigorosa, a visão sobre a vontade estará associada a este forte moralismo. Para Pelágio e seus seguidores, a vontade é uma faculdade auto-suficiente, cujo querer se iguala ao poder, em todas as situações; a vontade faz aquilo que deseja. Nesse sentido, a vontade é uma faculdade capaz de levar vida sem pecado, bastando-lhe o querer para se efetivar. Ao conceder a lei aos homens, Deus possibilitaria o cumprimento destas mesmas leis, através da vontade.

Nas palavras de Juliano temos uma síntese sobre a faculdade da vontade e sua atividade:

É um movimento, porém, de sua alma, que, já por sua idade, pode julgar as coisas pela razão, e, quando se propõe a pena ou a glória, o sofrimento ou o prazer, brinda- lhe a ocasião e a ajuda, sem necessidade de impor uma das duas partes. Esta vontade, ante uma alternativa, tem em sua mesma essência o poder de escolher mediante o livre arbítrio; dela, verdadeiramente, a obra existe, e não há vontade antes do querer; nem pode querer antes que possa não querer. Nem um e outro tem qualidade de pecado, isto é, querer e não querer, antes de alcançar o uso da razão645

Para os pelagianos todo homem em seu perfeito estado racional, tem controle sobre sua atividade interna, o que garante a plena responsabilidade pelos atos externalizados. O querer é aquilo que há que de mais próprio em cada indivíduo. É aquilo sobre o qual o homem tem mais controle. Vontade e querer são sinônimos, como tambêm querer e poder.

A visão dos pelagianos sobre Deus é que ele é um Deus bom e justo, que cria a vontade em seu perfeito estado, e que, também, mantém este bom estado sempre. Nesse sentido, o pecado dos primeiros pais, só interfere na vida dos homens se estes quiserem. O primeiro pecado serve, apenas, como um mau exemplo. Com a vontade em seu perfeito estado, os homens podem não querer seguir o exemplo deste ato mau.

645 Opus. imp. I, 47: ―Motus autem animi eius, qui iam per aetatem iudicio rationis uti potest; cui cum poena

monstratur et gloria, aut contra commodum vel voluptas, adiutorium et velut occasio offertur, non necessitas imponitur partis alterutrae. Haec igitur voluntas, quae alternatur, originem possibilitatis in libero accepit arbitrio; ipsius vero operis existentiam a se suscipit, nec est prorsus voluntas antequam velit, nec potest velle antequam potuerit et nolle; nec utrumque habet in parte peccati, id est, velle et nolle, antequam usum rationis adipiscitur‖.

O fato de Deus ser bom leva os pelagianos a afirmarem que a concupiscência da carne é algo naturalmente bom, pois, não há como conciliar um Deus bom, com algo inevitável, que seja visto como algo mau.

Para os pelagianos, a noção de necessidade não se relaciona com a noção de liberdade. A liberdade da vontade é uma possibilidade de escolha, possibilidade esta de se fazer o bem ou o mal. Ser livre é ser possível, e nesta possibilidade não se encontra a necessidade de se agir bem ou mal. Em suma, liberdade para os pelagianos deve ser entendida como o livre arbítrio em Agostinho. Liberdade e livre arbítrio teriam as mesmas características nos pelagianos.

Mesmo que a vontade cometa o pecado em vários momentos, isto não condiciona a vontade a continuar a cometer o pecado. Apenas a vontade é capaz de mudar sua posição quando lhe for pertinente. Mais uma vez, exclui-se, pois, toda e qualquer necessidade atrelada à vontade. Cada homem é capaz de pecar ou deixar de pecar quando quer.

O pelagianismo será um contraponto às posições agostinianas sobre a faculdade da vontade e as questões correlatas. O pelagianismo possibilitará Agostinhno a aprofundar certos aspectos que ele começara a trabalhar na obra De Diversis Quaestionibus ad

Simplicianum.

Para Agostinho, Deus cria o homem num estado onde querer e poder estão intrinsecamente associados. Mas em um determinado momento, a vontade não é mais capaz de fazer aquilo que lhe compete. Sua explicação para tal fato é o evento do pecado original, onde ―Por um homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte‖ (Rm 5, 12).

No estado atual, a vontade continua tendo a possibilidade de cometer pecados, pois, para o ato mau, o querer e poder ainda se igualam. Entretanto, para agir bem, o querer e o poder na vontade são antagônicos. Neste estado, o homem é capaz até de querer o bem, mas sua vontade não tem força para efetivar esta escolha. Assim, pode-se falar, após o pecado original, em uma vontade que possui o livre arbítrio da vontade, capaz de escolher bem ou

mau, sendo que a vontade não tem força própria para efetivar o bem querer. Será preciso algo exterior para efetivar esta escolha. Deus é a causa para a boa escolha da vontade, e isto se chama liberdade.

Passa a ser inevitável que, ao tratarmos da faculdade da vontade em Agostinho, passamos a falar e a destacar a graça, como aquilo que potencializa a vontade, permitindo que ela possa fazer o bem que quer, tornado a vontade livre. Nesse sentido, há uma ordem de acontecimentos que demarcam como a vontade pode voltar a ser livre, possibilitando a visão de duas faculdades da vontade para Agostinho, uma anterior e outra posterior ao pecado original; e como a faculdade da vontade fica durante a atuação da graça.

1) Adão  a) criado com a faculdade da vontade

b) criado com o livre arbítrio da vontade, que é capaz de escolher bem ou mal. c) criado com a possibilidade de ser plenamente livre (escolher bem).

2) Evento do pecado original  a) o homem permanece com a faculdade da vontade. b) o livre arbítrio continua a querer bem ou mal. c) por causa da pena do pecado:

c.1) o homem não tem a capacidade de fazer o bem que quer (o homem não é livre)

c.2) o homem está preso no hábito do pecado, que se torna uma segunda natureza, forçando a vontade a agir de maneira má.

3) Ajuda da graça sobre a vontade decaída 

a) o homem volta a ser livre novamente, como antes da queda original, tendo a capacidade de agir bem.

b) o homem consegue superar a força do hábito em seus membros, deixa de fazer o mal inevitavelmente.

A atuação da graça, de certa forma, anularia a faculdade da vontade? Talvez esta seja a questão mais delicada de todo o trabalho. Quando a graça divina atua sobre a vontade, há uma irresistível necessidade da vontade em agir bem. Isto anularia o papel da

vontade? Estariam os pelagianos certos: não há como relacionar necessidade e vontade? A nosso ver, com a graça, a vontade volta a ser o que era antes do pecado original, com a ressalva que, se a vontade de Adão, em sua constituição originária, poderia escolher o mau e efetivá-lo, como realmente fez; o homem que recebe a graça não tem a ―possibilidade‖ de agir mal. A vontade não pode recusar a graça, porque fora preparada por esta mesma graça para assimilar a graça divina em sua constituição. A vontade não é mais auto-suficiente, mas, Deus age no homem por meio desta mesma vontade. Mesmo após o pecado original, o homem continua tendo a possibilidade de querer bem ou querer mal, através do livre arbítrio da vontade, mas a vontade necessitará da ajuda divina para efetivar a boa escolha, e, com isso, voltar ao seu estado de natureza, que é se voltar para aquilo que lhe deleita, que é o Sumo Bem, ou, em uma palavra, Deus.

Como tivemos possibilidade de dizer, Agostinho, ao constatar que a vontade não é mais auto-suficiente, e para explicar a superação do estado miserável do homem, não está jamais rebaixando o homem dentro da criação divina, mas, coloca Deus em seu devido lugar dentro deste arcabouço teórico, como sendo aquilo que possibilita o ordenamento universal, inclusive o ordenamento interior do ser humano.

CONCLUSÃO

Chegamos ao fim de nosso estudo. Após uma longa análise sobre a faculdade da vontade em Agostinho, pudemos perceber as diferentes nuanças sobre a vontade nos períodos e obras analisados. Por termos feito uma síntese no final de cada capítulo, buscaremos agora, apenas, um breve fechamento.

Em nosso primeiro capítulo, analismos a obra De Libero Arbítrio. Nela percebemos como Agostinho ―descobre‖ a faculdade da vontade, para explicar que não é o Deus cristão, criador de todas as coisas boas o autor do mal. A faculdade da vontade, que difere das faculdades do desejo e da razão, é a responsável última pelos atos dos indivíduos. A faculdade da vontade descrita no Livro I do De Libero Arbítrio, deve ser entendida como uma faculdade criada por Deus em seu perfeito estado natural. Uma faculdade capaz de efetivar o seu querer . E que, como tudo criado por Deus, tem como Sumo Bem e Fim este mesmo Deus.

Neste estado criado por Deus, o homem tem uma faculdade da vontade capaz, com seu livre arbítrio, de escolher bem ou mal. Por causa de sua constituição, a faculdade da vontade tem a capacidade de efetivar o seu querer. Querer e poder eram duas ações que andavam mutuamennte na vontade dos primeiros pais.

Através desta faculdade da vontade, o primeiro homem, Adão, criado com a vontade naquele estado, descrito no Livro I do De Libero Arbítrio, cometeu o pecado original, escolheu um bem inferior, abdicando de Deus, seu Sumo Bem e Fim último. Por causa de um evento histórico, há uma mudança na constituição ontológica do ser humano, incluindo a vontade. A faculdade da vontade perde as características naturais, não sendo, pois, capaz de efetivar o querer. Ela se torna uma vontade dividida.

Esta vontade dividida e corrompida será caracterizada no Livro VIII das

Confessiones, cuja descrição fenomenológica mostra a faculdade em seu estado atual.