• Nenhum resultado encontrado

5.1 Ideias que mantêm a Reaf em funcionamento

5.1.1 Consolidação da ideia de que há duas agriculturas distintas

Uma das ideias recorrentes nas entrevistas foi a da importância da Reaf para o reconhecimento da existência de duas agriculturas, a familiar e a patronal, que têm características diferentes e, por isso, demandam tratamento específico nas políticas públicas nas ações nacionais e regionais. Neste aspecto, a Reaf contribui para um movimento de difusão da pauta da agricultura familiar no Mercosul. A consolidação da ideia de agricultura familiar esteve presente, durante toda a pesquisa, como aspecto político central para a existência da Reaf.

Houve entrevistados que enfatizaram que a diferença entre as agriculturas não se refere apenas às formas de produzir, mas a modos de vida distintos. Além disso, no interior da agricultura familiar coexistem diversas formas de produzir, tais como o extrativismo e a pesca, uma perspectiva que já está presente nas políticas brasileiras para o setor e que tem se expandido para os outros países.

Conforme avalia Carlos Mielitz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS):

Talvez o resultado mais importante [da Reaf] seja, politicamente, a construção dessa rede de governos e movimentos sociais que consolidaram a ideia de agricultura familiar e hoje têm legitimidade política. Agora já se aceita que é um modo de vida diferente, tem que ser tratado diferente. Movimentos conseguem incidência conjunta, enquanto Reaf, em cada país. A principal conquista é política, no que [as discussões da Reaf] repercutem para dentro de cada país. Já o avanço no comércio regional é menos simples do que se imaginava (entrevista em 12/08/2010).

Para Mielitz, até agora a Reaf conseguiu avançar mais nesse sentido de consolidar a ideia de agricultura familiar no bloco e menos em seu eixo de facilitação de comércio e de ser instrumento de aproximação dos países para construção de políticas comerciais, pois tais iniciativas precisam enfrentar outras exigências de regulação tributária e sanitária, por exemplo. A partir da inclusão da agricultura familiar no conjunto de possibilidades de enquadramento das lutas dos movimentos em cada país, e da posterior inserção do conceito nas legislações nacionais, é mais difícil retroceder nos avanços que forem alcançados pela Reaf, na opinião de Mielitz.

dos Estados nacionais, políticas para as populações que congregam e representam, isso não os exime de continuar disputando espaços, ideias, posições e verbas com outros segmentos da agricultura, no interior dos Estados nacionais. De acordo com Luiz Vicente Facco, assessor da Contag:

Existe, por menor que seja, algum movimento dos governos para implementar recomendações do GMC. À medida que [os governos] reconhecem o conceito de agricultura familiar e a necessidade de políticas diferenciadas, começam a instituir programas, por menores que sejam, que criam diferenciação da agricultura familiar (...) Pontualmente, já existem mudanças importantes no Uruguai, na Argentina e no Paraguai e são frutos de todo um trabalho da Reaf. Você pode perguntar: no que isso mudou na vida dos agricultores? Por ora talvez pouco. Poderia ter sido muito mais? Poderia. Se depender da força de vontade do governo de cada país, dos ministros que às vezes jogam mais peso de participação no CAS, precisamos ainda trabalhar muito para buscar pelo menos o equilíbrio nessa correlação de forças, e também depende de um grau de esforço, de incidência, de cobrança, pressão, mobilização das organizações dos países. (entrevista em 18/06/2010)

O CAS é o Conselho Agropecuário do Sul, formado por ministros da Agricultura do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai. A fala do assessor da Contag demonstra, uma vez mais, que há, no Mercosul, uma disputa pelo modelo de apoio à agricultura nos países e no bloco, na qual a Reaf está inserida. As disputas no interior dos países seguem vivas, a “correlação de forças” que permite a expansão do termo não está consolidada e, sem pressão e mobilização das organizações, pode haver mudanças no cenário. A ação da Contag na Reaf dá continuidade – agora na esfera internacional – ao esforço empreendido pela Contag e pelo departamento rural da brasileira Central Única dos Trabalhadores de consolidação da agricultura familiar como referente para as populações do campo e para a organização de políticas públicas pelos Estados Nacionais.

Ainda no que se refere à construção política, vale notar que este movimento de expansão da ideia de agricultura familiar não está restrito ao Cone Sul das Américas. Pelo contrário, a Coprofam vem buscando expandi-lo para outros continentes e a consolidação da Reaf contribui com a abertura de espaços para debates com organizações da África e da Ásia, possibilitando, portanto, a criação de novas ou o fortalecimento de antigas associações entre os atores.

Na opinião de Alessandra Lunas, a vice-presidente e secretária de relações internacionais da Contag, a existência da Reaf, como um espaço de diálogo com os governos é experiência

concreta que contribui para projetar articulações, fortalecer diálogos com movimentos de outros países, interessados em entender o processo desenvolvido na América do Sul. Na abertura da XIV Reaf, Lunas anunciou os esforços para criação de uma aliança internacional das organizações regionais da agricultura familiar, reunindo a Coprofam, pela América do Sul, a Rede de Organizações Camponesas e de Produtores Rurais do Oeste da África (Roppa) que congrega organizações de 10 países daquela região53, e a Associação de Agricultores Asiáticos pelo Desenvolvimento Rural Sustentável (AFA), uma aliança regional de 10 federações de produtores rurais de 8 países asiáticos, que reúnem 10 milhões de agricultores54. A secretária geral da AFA acompanhou a XIV Reaf, no Brasil, a convite da Coprofam, e participou do seminário que antecedeu a reunião, sobre a campanha que defende a criação, pela ONU, do Ano Internacional da Agricultura Familiar, outra articulação da qual já participam a Coprofam e a AFA. A experiência da Reaf, portanto, vem facilitando a expansão dos contatos internacionais da Coprofam, abrindo portas em alguns debates e a credenciando para entrar em outros. Este não é o foco do presente trabalho, mas as informações sobre as articulações recentes nos interessam por trazer uma dimensão da Coprofam e da Reaf inseridas em um cenário mais amplo de alianças – e disputas – internacionais.

A questão da consolidação da ideia de que há duas agriculturas esteve presente nas entrevistas com lideranças das organizações paraguaias quando elas falavam sobre sua entrada na Reaf, mas foi pouco citada como elemento para a continuidade da presença na Reunião Especializada, tendo sido lembrada apenas por Ottmar Hann, da União Agrícola Nacional. O tema, então, não aparece como central para justificar a continuidade da participação das organizações paraguaias, tendo se mostrado mais importante para os entrevistados brasileiros.

5.1.2 Institucionalização de políticas públicas para agricultura familiar no Brasil e no