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Neste trabalho, participação política é entendida como “ação que se desenvolve em solidariedade com outros no âmbito do Estado ou de uma classe, com o objetivo de modificar ou conservar a estrutura (e, portanto, os valores) de um sistema de interesses dominantes” (PIZZORNO, 1975, apud AVELAR, 2007, p.264). Avelar (Idem, p.265) afirma que, por reunir um “universo diferenciado de manifestações empíricas”, é difícil sistematizar o repertório de participação nas democracias contemporâneas, mas resume os canais de participação entre os canais eleitoral, o canal corporativo (categorias e associações de classe

que buscam defender seus interesses perante governo ou Estado, inclusive sindicatos), e o canal organizacional, isto é,

formas de organização coletiva no âmbito da sociedade civil, como os movimentos socias, as subculturas políticas, as atividades das organizações não governamentais de natureza cívica, experiências de gestão pública em parceria com grupos organizados da sociedade, como o orçamento participativo, os conselhos gestores, etc. (Idem, ibidem).

Neste trabalho, o foco está nos canais corporativo, por se tratar de sindicatos, e organizacional, porque observamos a ação de movimentos sociais. Entretanto, é necessário ressalvar que, no que se trata da participação na Reaf, há sobreposições na atuação de sindicatos e movimentos, ao tempo em que seguem havendo diferenças em suas estratégias de atuação.

É necessário, também, registrar aqui alguns dos múltiplos significados que o conceito de participação recebe, na literatura sobre o tema no Brasil e no Paraguai. Há diversos entendimentos sobre a validade e as limitações da participação em espaços institucionais. De forma geral, eles se referem à percepção de haver ou não possibilidade de incidência da sociedade civil sobre os governos nacionais e instituições internacionais, por meio de sua atuação em canais institucionais. De fato, ser sindicato ou movimento é um dos elementos que influi na avaliação dos atores sobre as possibilidades, mas não necessariamente o único, já que há movimentos que atuam em canais institucionais.

No Brasil, a Constituição de 1988 abre caminho para uma legislação que prevê a participação da sociedade civil, por meio dos cidadãos individualmente ou de suas associações. Ao lado do Estado, tais atores definem e avaliam políticas públicas em âmbito municipal, estadual e federal. Para Dagnino (2004), o final da ditadura militar e o reestabelecimento da democracia formal, das eleições e dos partidos no Brasil abriram a possibilidade para esse formato de participação, que permite ação conjunta de Estado e sociedade, alterando as relações de

confronto e o antagonismo que tinham marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas anteriores [e] cedendo lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático. Essa aposta deve ser entendida num contexto onde o princípio de participação da sociedade se tornou central como característica distintiva desse projeto, subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos

onde o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade. (DAGNINO, 2004, p. 96)

Abers & Keck (2008) também distinguem esse momento de redemocratização no Brasil de períodos anteriores em que os movimentos sociais e sindicatos buscavam distanciar-se do Estado autoritário

Recusando-se a retornar aos antigos padrões de cooptação, essas organizações optaram por constituir uma nova esfera de atividade fora da política tradicional – a sociedade civil, na qual a espontaneidade e a autonomia dos movimentos populares seriam uma força de transformação. Como o Estado era o sujeito do autoritarismo e não poderia ser um espaço de democratização, a transformação só poderia se realizar na sociedade civil. Já no início dos anos 80, no entanto, muitos ativistas se convenceram de que, para conter os esforços das elites em preservar um sistema de privilégios, eles teriam que se organizar para influenciar na arquitetura das novas instituições. Muitos ajudaram a fundar ou migraram para o Partido dos Trabalhadores, cujo projeto valorizava a autonomia e a diversidade dos movimentos e apoiava a democracia participativa (Keck, 1991). Os movimentos sociais também se mobilizaram com sucesso para assegurar que a nova Constituição, aprovada em 1988, garantisse a criação de mecanismos de participação direta em diversas áreas de políticas públicas. (ABERS E KECK, 2008, p.102)

Audiências públicas, conferências, fóruns, conselhos setoriais de políticas públicas e orçamento participativo foram alguns dos formatos de participação que se desenvolveram, no Brasil, ao longo dos anos. Avritzer (2005, p.23) identifica cerca de 10 mil conselhos de políticas criados após 1988; Abers e Keck (2008) citam dado de 39 mil conselhos relacionados a políticas sociais, a partir de dados do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA, 2005, p.128 apud ABERS E KECK, 2008, p.100).

“Conselhos setoriais, ou de políticas públicas, são mecanismos de deliberação pública criados no interior do poder executivo para a participação da sociedade civil, com a presença de representantes também de provedores de serviços privados - no caso dos sistemas nacionais de assistência social e saúde”, define Avritzer (2005, p.23-24). A grande vantagem desse modelo seria a possibilidade de o Estado se tornar mais permeável às demandas da sociedade, sobretudo daquela organizada (DAGNINO, OLVERA E PANFICHI, 2006). Ele permitiria a “formulação de políticas mais inclusivas e mais representativas de interesses sociais mais amplos” (ABERS & KECK, 2008, p.103).

Nessa perspectiva, a atuação de atores não estatais contribui para o bom funcionamento da democracia, ainda que tenha como desafio superar a “confluência perversa” entre dois projetos políticos distintos – um de participação da sociedade nas decisões do Estado, que passa a ter de levar em conta necessidades das populações –, e outro de redução do Estado, isentando-o de suas responsabilidades de garantia de direitos e transferindo-as para a sociedade civil, denominado, pela autora, como um projeto neoliberal (DAGNINO, 2004, p.95):

Apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva. Sob a aparente confluência, dois discursos distintos acabam ganhando espaço na sociedade. (...) A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia. (DAGNINO, 2004, p.96-97, ênfase da autora)

Os diferentes sentidos apresentados por Dagnino são trazidos aqui com o intuito de demonstrar que a ideia de participação, mesmo no Brasil, não ganhou espaço como algo positivo sem que houvesse controvérsias e disputas em torno de seus significados.

A prática de criação de conselhos chegou também ao universo das políticas públicas de desenvolvimento rural. A partir da pressão de movimentos e sindicatos, algumas destas políticas adotaram formato de participação em conselhos na década de 90, com significativa contribuição das estruturas criadas pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf (KUNRATH SILVA & MARQUES, 2004, p.11).

Ao longo dos mais de 20 anos de experiências participativas, foram realizadas muitas avaliações sobre seu impacto no funcionamento do Estado. Avritzer (2005, p.33-34) conclui que a qualidade de algumas políticas melhora com a participação da sociedade civil, a exemplo das políticas de saúde, e que tais experiências podem ter efeitos distributivos e de redução de pobreza, mas aponta uma desigualdade de participação em áreas mais pobres, se comparadas a áreas onde a população tem melhores condições de vida.

Abers & Keck (2007, p.9) avaliam que os “estudos empíricos sobre esses conselhos encontraram poucas evidências de que eles de fato contribuam para que as vozes dos excluídos social e politicamente sejam ouvidas pelo Estado”. Em suas pesquisas, elas percebem também que interesses de setores organizados conseguem obter mais influência que os não organizados; há resistência, dos governos, às novas formas de tomada de decisão e

nem sempre os representantes governamentais que participam dessas instâncias têm poder para implementar o que é decidido (Idem, p.11).

Em suma, as razões pelas quais os conselhos não corresponderam às expectativas dos movimentos sociais que os apoiaram podem ser divididas em duas categorias: ou os representantes da sociedade civil deixaram de refletir as aspirações e de efetivamente representar setores tradicionalmente excluídos da população, ou o Estado resistiu a compartilhar o poder de tomada de decisão com eles. (ABERS & KECK, 2007, p.11)

Após analisar correntes teóricas diversas que tratam das ideias de representação e legitimidade e discutir papeis – esperados ou de fato encontrados nas experiências – dos participantes da sociedade e do Estado, as autoras concluem que14

os conselhos gestores deveriam ser entendidos como potenciais espaços dinâmicos, nos quais atores diversos não somente deliberam, mas também mudam as suas práticas. Ao interagir, produzem relacionamentos e recursos que podem utilizar para resolver problemas concretos. (ABERS & KECK, 2007, p.1)

O argumento é que a reunião da diversidade de experiências, visões de mundo e posicionamentos nesses espaços é importante por possibilitar o contato entre ideias distintas que, assim, podem levar a “uma espécie de combustão criativa que produz idéias que jamais existiram de outra forma” (Idem, p.18). Seriam criados, naqueles espaços, não necessariamente justiça ou projetos comuns, mas a possibilidade de formulação de alternativas inovadoras a partir dos elementos já existentes que, de outra forma, não se encontrariam. “A interação afeta não apenas as compreensões, mas também o que as pessoas fazem; ela transforma a capacidade dos atores em influenciar a vida social” (Idem, ibidem). A caracterização dessa discussão tomando como base os debates realizados no Brasil nos pareceu necessária para diferenciar o debate que vem ocorrendo aqui e no Paraguai. Na literatura sobre movimentos sociais naquele país, foram encontrados alguns textos que falam sobre a participação em movimentos sociais, mas não análises sobre a participação em instâncias de avaliação ou formulação de políticas públicas, por exemplo. Carlos Mora (2006, p.344) aborda a participação nos movimentos sociais paraguaios e a incidência destes

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Os outros dois argumentos apresentados no artigo referem-se aos debates sobre a legitimidade dos atores que participam dos conselhos (que seria alcançada pela possibilidade de estar presentes “pontos de vista diversos e não somente quando estas falam em nome de grupos sociais amplos” [Idem, p.2]) e a como o Estado deveria agir em tais espaços (defendendo interesses daqueles que não estão ali representados). Essas duas conclusões não estão em destaque por abrirem outros campos de debate nos quais este trabalho não terá condições de entrar.

movimentos na política do país, definindo participação como “uma atividade de reprodução e transformação da realidade social que permite o desenvolvimento da identidade coletiva e da capacidade do ator ou sujeito social”. O autor ressalta que a unidade básica de participação nas organizações de primeiro grau (locais) no Paraguai é a unidade doméstica: “sob esse conceito, as organizações comunitárias podem estar integradas por grupos de jovens, homens e mulheres que, se bem tem estruturas diferentes, funcionam como um todo, já que é a família a que se organiza” (Idem, p.359).

Já Fogel (2006, p.95) analisa “visões de democracia implícitas nas demandas dos movimentos sociais rurais nos últimos dez anos”, com foco nas práticas organizativas internas aos movimentos, nas relações entre eles e nos desafios da democratização do Paraguai, que incluem a redefinição do papel do Estado frente à perda de legitimidade de atores chave na política do país – como setores do empresariado e organizações sindicais –, e dos partidos políticos. Pelo texto, entende-se que os canais que os movimentos sociais têm para pressionar o Estado paraguaio “não são institucionais; na modalidade dominante, se negocia depois de muita violência” (Idem, p.103). Os setores camponeses – entendidos como autores institucionais autônomos – questionam com manifestações e ações diretas a esfera institucionalizada do Estado, à qual, de outra forma, não teriam acesso. Outro desafio é superar o estancamento das demandas nos níveis municipais, chegando até a esfera nacional.

As formas de inclusão do demos nos processos de decisão pública que caracterizam a democracia formal vigente também são questionadas pelos camponeses mobilizados, que propõem formas compatíveis com a igualdade política. A participação demandada [pelos movimentos] é pensada no cenário nacional como modo de institucionalizar a participação camponesa em questões críticas, sem passar pelas articulações com governos municipais. Nessa orientação estaria pesando a desconfiança nas modalidades que limitam os espaços de participação aos microespaços e tendem a fragmentar as organizações. No final das contas, se buscam formas de inclusão nas que todos sejam igualmente valorizados e consigam igual atenção a seus interesses (FOGEL, 2006, p.104-105)

Nessa perspectiva, as organizações camponesas praticam uma “democracia social” ao permitir e realizar participação, representação e negociação em uma esfera própria, que é a esfera da organização social. A partir dessa esfera, autônoma, é uma relação de negociação que as organizações travam com a esfera tradicionalmente definida como política – onde estão os governos e os partidos políticos. É nessa esfera autônoma que os movimentos fomentam

ideias e visões com pouca afinidade ao pensamento neoliberal que marca, na avaliação do autor, o Estado paraguaio.

Perguntado, em entrevista, sobre como seria vista, no Paraguai, a participação de organizações da sociedade em espaços de diálogo com o governo, Ramón Fogel respondeu que essa ideia nunca chegou a ganhar força no país.

[No Paraguai], a construção de cidadania sempre veio pelo lado de mobilizações, com muita frequência reprimidas, muito associadas à criminalização do protesto. Nosso ministro do interior está com o Plan Colombia, tudo se resolve com violência, mais armas, mais munições, mais coletes antibalas, helicópteros, aviões para disparar de cima. (...)

O governo Lugo é um problema, porque há um setor que o rodeia e faz um discurso progressista, mas usa o discurso dos organismos multilaterais. Estamos repetindo, das posturas progressistas, os mesmos discursos do Banco Mundial, do BID, de Obama. (...)

Por exemplo, participação significa: temos que nos amar, não falar de diferenças, mas de coincidências, ter quatro dias de idílio, de romance e depois falamos de coincidências. No final, o consenso será aquilo que querem os poderosos. Exemplo claro: através da governança o Estado, se não defende interesses sociais, não aplica ostensivamente sistema jurídico, não tutela interesses, nada, só aproxima as partes, que se colocam de acordo. (entrevista em 14/09/2010)

Assim, a participação em instâncias de negociação no interior do Estado seria um campo minado, porque marcado pela visão neoliberal. A ideia predominante é que a cidadania se constrói por meio de mobilizações e de pressão, e não por meio de canais institucionais em um Estado mais propenso a reprimir manifestações do que a criar espaços de escuta e acolhimento de demandas. Ademais, o discurso de participação é, pelo menos por parte dos autores paraguaios pesquisados, identificado com as imposições dos organismos multilaterais que, conforme apontado por Dagnino (2004), valem-se de termos como participação, sociedade civil, cidadania e democracia para revestir de capa progressista ideias de redução do papel do Estado, sob a ideia de governança. Por fim, os espaços de participação são entendidos por esses autores como espaços de dissolução de conflitos, e não de diálogo ou de produção de soluções.

Os debates aqui apresentados indicam que as divergências sobre a ideia de participação não ficaram no passado, mas seguem vivas e atuais. Conforme veremos no desenvolvimento desse

trabalho, também no Brasil posturas que questionam a ideia de participação em instâncias institucionais seguem presentes nas formulações de movimentos sociais do campo, e por isso precisam ser consideradas.

3 AGRICULTURA FAMILIAR, MOVIMENTOS DO CAMPO NO

MERCOSUL E A CRIAÇÃO DA REAF

Este capítulo resgata, de maneira breve, o processo de expansão do uso do termo agricultura familiar como referente para as populações do campo no Brasil, primeiro país sul-americano onde ganhou força. Depois, são apresentadas informações sobre o apoio crítico ao Mercosul por um conjunto de atores do campo no Cone Sul das Américas, inicialmente realizado por sindicatos que, não se opondo ao bloco, abriram caminho para a emergência de demandas a ele, depois sistematizadas pela Confederação das Organizações de Produtores Familiares do Mercosul (Coprofam).

Estes dois processos – a consolidação da ideia de agricultura familiar e o apoio crítico de algumas organizações do campo ao Mercosul – foram antecedentes importantes para a criação da Reunião Especializada Sobre Agricultura Familiar (Reaf).

Este capítulo também recupera o processo de construção da Reaf, buscando traçar as ideias, relações, contatos e associações que possibilitaram a criação de tal instância no Mercosul. Por fim, será apresentado o funcionamento da Reaf, de forma a facilitar as referências que serão feitas a ele ao longo desta dissertação.