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Esta seção apresenta o funcionamento da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar, de forma a facilitar o entendimento das falas que a isso se referem ao longo do trabalho. O foco é não apenas a descrição formal, mas o entendimento da dinâmica de participação das organizações rurais.

Na manhã da sexta-feira, 19 de novembro de 2010, no início da Plenária Regional da XIV Reaf, realizada em Brasília, Marco Antônio Augusto Pimentel, secretário de Gestão e Finanças da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), pede a palavra para lembrar a proximidade de 20 de novembro, que marca o Dia da Consciência Negra. Fala da opressão em que vivem os negros, de sua importância para os países da região e da dívida que os países têm para com esses irmãos. Ao terminar sua fala, um grupo de mulheres começa a entoar, em coro, a música Nego Nagô30, cantada em movimentos populares e em grupos pastorais ligados à igreja católica.

O relato do episódio é mais caricato do que o conjunto da participação das organizações da sociedade civil nas reuniões da Reaf, mas mostra como a presença de organizações altera a dinâmica das reuniões internacionais, conhecidas pela formalidade dos contatos entre países.

Atualmente, é comum que uma Plenária da Reaf seja organizada com uma grande mesa disposta em U, com duas fileiras de cadeiras, uma atrás da outra. As delegações sentam ordenadas por países. No momento da reunião regional, grande parte das intervenções é dos representantes dos governos, mas as organizações da sociedade civil podem intervir e há espaço para coordenar posições entre representantes dos governos e das organizações quando

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Os versos da música são: Eu vou tocar minha viola - a - a, eu sou o nego cantador/ O negro canta deita e rola - a - a, lá na senzala do Senhor/ Dança aí, Nego Nagô! Dança aí, Nego Nagô!/ Tem acabar com essa história, de o negro ser inferior. O negro é gente e quer escola, quer dançar samba e ser doutor.

há que se tomar decisões ao longo das reuniões. As entrevistas apontam que a construção desse modelo de participação não ocorreu sem conflitos e pressões, apesar de o formato ser, atualmente, aceito pelo Mercosul.

O trabalho principal, durante a Plenária Regional, é a finalização da ata, constituída basicamente por informes sobre como caminharam os temas tratados nos Grupos Temáticos (GTs) da Reaf, que realizam suas reuniões nos dias anteriores à seção Plenária. Os encaminhamentos dos Grupos Temáticos, entre os quais se dividem os participantes ao longo dos dias anteriores, são trazidos à Plenária e ali questionados ou assumidos pelo conjunto de atores. Cinco GTs estão atualmente em funcionamento na Reaf: Políticas de Acesso à Terra e Reforma Agrária; Gênero; Facilitação de Comércio; Gestão de Risco e Seguro para a Agricultura Familiar e Juventude Rural.

Também figuram nas atas os encaminhamentos dos documentos (informes, recomendações) remetidos ao Grupo do Mercado Comum e, quando há, informes sobre outros temas em desenvolvimento, como os resultados de seminários realizados ao longo das Seções Regionais. Por exemplo, na ata da XVIII Reaf, ocorrida na Presidência Pro Tempore Argentina, no primeiro semestre de 2010, foi ponto de pauta o Seminário sobre Agroecologia e Agricultura Familiar realizado durante a Reunião.

O momento mais formal das Seções Regionais é o de abertura da Plenária Regional, na qual costumam estar presentes ministros dos Estados, dirigentes de organizações internacionais e parlamentares. Na XIV Reaf, realizada no Brasil, a abertura foi marcada pela assinatura de convênios entre ministros. Ao longo da semana em que ocorre a Reaf, acontecem também reuniões de trabalho de ministros e reuniões de coordenadores nacionais. Instituiu-se também que as organizações que são associadas à Coprofam chegam ao local da reunião um dia antes, e promovem suas reuniões ou outros eventos, seminários e debates.

As reuniões regionais ocorrem a cada seis meses, ao final de cada presidência pro tempore do bloco. Elas são precedidas pelas Seções Nacionais (SN), realizadas uma ou duas vezes por semestre. Apenas organizações que acompanham as Seções Nacionais podem ir à Seção Regional como parte da delegação de seu país. Em meados de cada semestre, há ainda um encontro dos GTs em Montevidéu, Uruguai, onde fica a sede do Mercosul. Os GTs contam

com uma pessoa em cada país que exerce o trabalho de ponto focal, agregando informações e coordenando debates.

Cada país organiza sua Seção Nacional de maneira própria, ainda que todas mantenham a presença de representantes do governo e de organizações da sociedade e decidam por consenso. O Brasil reproduz, em sua Seção Nacional, o modelo da reunião regional: todos os GTs se reúnem ao longo da reunião, que tem, em geral, três ou quatro dias de duração – a extensão varia dependendo das agendas nacionais. As reuniões dos GTs são abertas a todos os participantes e, na prática, é comum que nem todos os membros da mesma organização estejam presentes em cada um dos GTs, dividindo-se entre os temas que acompanham mais de perto.

Figura 01 – Organograma da Reaf

Fonte: MDA, 2010, p.23.

Segundo a coordenação da Seção Nacional brasileira, os temas tratados nas reuniões nacionais espelham o que se espera ser tratado na reunião regional, exceto quando há temas novos que a SN pretende levar para o debate regional. Nesses casos, a Seção Nacional começa a discutir o assunto antes. No Brasil, no último dia da reunião ocorre a Plenária Nacional, onde há presença mais concentrada de diversos órgãos do governo brasileiro e são construídos os consensos que serão levados pelos participantes à Reunião Regional.

Na Seção Nacional (SN) paraguaia que acompanhei, com duração de dois dias, os participantes reuniram-se em uma única plenária que debatia todos os GTs conjuntamente. Os pontos focais dos GTs e os funcionários do governo paraguaio convidados apresentavam o andamento dos temas sob sua responsabilidade, e depois havia abertura para intervenções das organizações. A reunião é, em geral, realizada em um auditório da sede do Ministério de Agricultura e Pecuária (MAG), em San Lorenzo, a poucos quilômetros da capital do país, Assunção.

Um dos desafios apontados pela Contag à Reaf é a superação das desigualdades no funcionamento das Seções Nacionais, para que todas elas possam ser similares em sua possibilidade de proposição sobre os temas abordados. Na avaliação de Edson Barbieri, assessor da Secretaria de Relações Internacionais da Contag

[As Seções Nacionais] não são iguais. Essa é uma cobrança. Na reunião que fizemos na Argentina, na última Reaf [em Mar Del Plata, junho de 2010], com a secretaria executiva da Reaf, eles cobravam maior incidência por parte da Coprofam e de suas entidades, cobravam mais propostas. Nós também devolvemos a preocupação com o funcionamento das Seções Nacionais, que não têm sido iguais. Tem tido um desnível muito grande. Em algumas o funcionamento é formal, reúnem para discutir quem vai para a reunião da Reaf e não para discutir políticas em seus respectivos países.

No Brasil, apesar de acharmos que ainda tem problemas, temos um funcionamento que reúne 4, 5 dias, discute política, discute estudos, discute um monte de coisas que, do ponto de vista dos outros países, existe diferença, seja porque os governos mudaram agora, ou porque as organizações dos países têm muitas debilidades organizativas e pouca força política. Acontece de organizações não estarem posicionadas para fazer pressão real para que Reaf funcione. (entrevista em 21/06/2010)

Outro dos desafios apontados pelas organizações para o funcionamento das Seções Nacionais e Regionais é a constante mudança dos representantes que delas participam. Conforme avalia Facco, da Contag

Há altos e baixos nas Seções Nacionais e na Regional. É processo de construção. A participação mais incisiva das organizações e do governo vai de acordo com tema em pauta. Aumenta incidência, diálogo, elaboração, em função também das mudanças de governo, dos representantes do quadro funcional dos governos e das organizações. Paraguai e Bolívia tiveram alternância maior, nos seis anos, em seu quadro de funcionários. Pode-se ver isso nas atas, que são subscritas por diferentes coordenadores regionais. Isso gerou quebras de funcionamento, quem chega tem outra visão, quer tomar pé. Houve mudança nas organizações também, no Uruguai, no Paraguai, Chile, na Bolívia. O ritmo muda. (entrevista em 18/06/2010)

Em cada país, há um coordenador da Seção Nacional, função ocupada, em geral, por um ministro ou vice-ministro da pasta de agricultura que é responsável pela agricultura familiar. Cada Seção Nacional conta também com um coordenador alterno, em geral um funcionário do ministério, responsável pelo dia-a-dia da SN. O Brasil era, até 2010, o único país que possuía uma equipe de trabalho para atuar somente com a Reaf. No Paraguai, a coordenadora alterna, Doria Baranda, assessora do vice-ministro de Agricultura e Pecuária, disse que no último ano conseguiu concentrar seu trabalho na Reaf, mas ainda é chamada esporadicamente para outros assuntos de assessoria ao ministério.

A Reaf recebe, desde 2003, apoio financeiro do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida). A doação é destinada a três componentes: 1) financiamento de diálogos sobre políticas públicas de agricultura familiar, que inclui o apoio à participação de organizações da sociedade civil na Reaf; 2) financiamento da Secretaria Técnica da Reaf, apoiando gastos com pessoal e com a manutenção do escritório, localizado na sede do Mercosul, em Montevidéu, Uruguai; e 3) contratação de consultorias específicas, para estudos que gerem informações estratégicas para os debates da Reaf31.

O primeiro componente permite que a Reaf ajude financeiramente os países para garantir a presença de organizações da sociedade civil nas reuniões das Seções Nacionais e Regional. Não há, segundo Lautaro Viscay, assistente técnico da Secretaria Técnica da Reaf (entrevista em 16/11/2010), definição de valores do apoio destinados a cada país. A decisão sobre a aplicação desses recursos é, em geral, tomada em conjunto pelos coordenadores nacionais. Esporadicamente, são financiadas viagens de membros dos governos. O Brasil não costuma solicitar aportes para o funcionamento de sua Seção Nacional ou para a participação das organizações em reuniões regionais.

O Fida realizou duas doações à Reaf, no montante de U$1,8 milhões cada. O financiamento termina em 2011. Para conseguir manter o apoio à participação das organizações, a Reaf vem trabalhando na criação de um fundo, denominado Fundo da Agricultura Familiar, que teria também recursos para investir em projetos concretos de trabalho conjunto entre os países do Mercosul. O fundo, aprovado pelo GMC, já foi internalizado pela Argentina e pelo Uruguai,

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por meio de Resolução e Decreto Presidencial, respectivamente. Falta a internalização no Brasil, onde o Projeto de Lei tramita no Congresso Nacional, e no Paraguai, onde também é necessária aprovação pelo parlamento. Lá, ele já foi aprovado em duas das quatro comissões pelas quais tramita.

4 CAMINHOS PARA A TRANSNACIONALIDADE E A PRESENÇA DE

ORGANIZAÇÕES DO BRASIL E DO PARAGUAI NA REAF

Este capítulo tem três objetivos: apresentar as organizações da sociedade civil que participam da Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (Reaf), registrar como elas relatam sua opção por acompanhar este espaço institucional do Mercosul e, a partir desses relatos, compreender as diferentes trajetórias traçadas pelas organizações em sua chegada à Reaf, tendo como base a ideia de caminhos para a transnacionalidade (VON BÜLOW, 2010, p.25). Tais caminhos serão observados a partir dos dois eixos propostos por esta autora: um relacionado ao tempo e outro à escala. No eixo do tempo, observa-se quão duradoura é a inserção internacional das organizações e, no eixo da escala, busca-se entender como elas organizam sua ação e suas demandas nos âmbitos nacionais e internacionais.

O entendimento desses caminhos contribui para a pesquisa na medida em que faz transparecer a multiplicidade de percepções das organizações sobre o que podem obter, ou construir, no espaço transnacional. “A tipologia dos caminhos [para a transnacionalidade] é útil para dar visibilidade aos contrastes e similaridades entre atores que frequentemente são etiquetados simplesmente como 'anti-globalização', ou como parte da 'sociedade civil global'”(VON BÜLOW, 2010, p.27).

Ao mesmo tempo, as falas das lideranças deixam entrever percepções sobre como cada organização entende que pode contribuir com a integração regional, seja para a construção de políticas comuns aos países do Mercosul, seja para o desenvolvimento de outros movimentos. Isso é relevante para a análise, pois, como já citado anteriormente, o mero cálculo de custos e benefícios pode não ser suficiente para o entendimento do que leva lideranças e organizações a decidir empenhar seu tempo e sua energia na participação na Reaf. Paralelamente, permeia este capítulo a percepção de que a presença das organizações é uma opção feita por elas, isto é, os caminhos não estão dados, mas são construídos pelas escolhas realizadas pelas organizações e lideranças ao longo do tempo.