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CAPÍTULO 4 – DISCURSANDO

4.2 CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO

O pensamento político é elaborado a partir da produção de significado gerada na interação, que envolve os modos de interação e a identidade dos participantes (CHARAUDEAU, 2013, p. 40). A elaboração do pensamento político, por meio da interação, pode ocorrer de três maneiras: 1) o discurso político como sistemas de pensamento; 2) o discurso político como ato de comunicação; 3) o discurso político como comentário.

Charaudeau (2013) discorre acerca das três formas de elaboração do pensamento político: 1) o discurso político como sistema de pensamento resulta de uma atividade discursiva, em que determinados princípios servem como referência na elaboração de opiniões e de posicionamentos, buscando fundar um ideal político; 2) o discurso político como ato de comunicação se constitui dos atores engajados na situação de comunicação, na cena de comunicação política, que objetiva a obtenção de adesões, rejeições ou consensos ao fazer com que ideais sejam apoiadas, refutadas ou aceitas; 3) o discurso político como comentário tem como propósito o conceito político, estando, por sua vez, inscrito em uma situação externa ao contexto da ação política – ―é um discurso a respeito do político, sem risco político‖ (2013, p. 40).

Interessa-nos abordar um pouco mais acerca do discurso político como ato de comunicação, uma vez que, de acordo com Charaudeau (2013, p. 40), é nessa forma de elaboração do pensamento que se constitui a cena de comunicação política, espaço em que os atores desse contexto desempenham papéis voltados à persuasão e à sedução, empregando diversas estratégias retóricas, a fim de obter o apoio da audiência.

Comícios, debates, apresentações de slogans, reuniões, declarações televisivas, – assim como os discursos de posse –, são exemplos de manifestações de cenas de comunicação política que gradativamente orientam a ação política e possibilitam a construção de representações de filiação comunitária (CHARAUDEAU, 2013). Nesses espaços em que o ato de comunicação ocorre, cabe ao político convencer a audiência acerca da relevância de seu projeto político e, ao mesmo tempo, conquistar o maior número de cidadãos para que esses compartilhem os mesmos valores24 (IBID., p. 79).

No Brasil, a tradição política apresentou, ao longo da história, três grandes tendências retóricas (BONFIM, 2014, p. 18): uma conservadora, uma libertária e uma conciliação entre ambas – o populismo. A tendência conservadora representava valores ligados à nobreza, ao clero e à burocracia. Padre Antônio Viera foi um dos representantes dessa tendência, seus discursos, direcionados aos nobres, comerciantes e bacharéis, eram altamente estilizados e rebuscados. A tendência libertária guiava-se pelos valores de igualdade de direito, liberdade, industrialização. Essa corrente ganhou ênfase a partir da década de 1920, com a efervescência das manifestações culturais e políticas ligadas ao nacionalismo, como o modernismo, o movimento operário urbano e o tenentismo. O populismo teve início com os discursos de Getúlio Vargas, que propunha a quebra do padrão de política dos governadores, ―senhores agrícolas encastelados nos comandos dos Estados‖, ao mesmo tempo que dava ―sucessivos golpes para se manter no poder‖, restringindo o funcionamento do Congresso e da oposição.

―É nessa matriz que frutifica o chamado ‗populismo‘ brasileiro. Por que não popular, simplesmente? Por que, de fato, não é uma prática de governo sempre ‗em favor‘ do povo; mas o exercício do poder ‗em nome‘ do povo‖ (BONFIM, 2004, p. 19). Nessa tendência retórica, é evidente a assimetria da relação entre o produtor

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O termo ―valores‖ é entendido pelo autor como as ideias defendidas no espaço de discussão (CHARAUDEAU, 2013, p. 20).

do discurso, o orador político, e a audiência, uma vez que é o político quem fala ―ao povo‖, em favor do povo, mas não é o povo quem fala.

Getúlio Vargas dirigia-se aos ―Brasileiros!‖ ou aos ―Trabalhadores do Brasil!‖, contrariando a tradição que se direcionava a ―Vossas Excelências!‖ ou aos ―Ilustríssimos Senhores e Senhoras!‖. José Sarney passou a incorporar em seus discursos ―Brasileiras e Brasileiros!‖, que além de incluir a mulher, dirigia-se primeiramente a elas. Segundo Bonfim (2004, p. 20), a tendência do populismo, de falar em nome do povo e a ele se dirigir, perdura até a atualidade.

Podemos associar a tendência ―populista‖ no Brasil ao que Charaudeau (2013, p. 163) denomina ―ethos de solidariedade‖. O ethos diz respeito ao cruzamento de olhares, do outro sobre quem fala e de quem fala sobre como ele pensa que o outro o vê. A solidariedade, nesse viés, caracteriza-se pela disposição de estar junto, de não se distinguir da audiência, de partilhar os mesmos anseios. É dessa forma que mais recentemente podemos observar a mudança retórica nas saudações em discursos políticos.

No discurso político, são construídas diversas figuras de si, que, além do tipo ―solidariedade‖, podem ser de ―sério‖, de ―virtude‖, de ―competência‖, de ―potência‖, de ―caráter‖, de ―inteligência‖, de ―humanidade‖ e de ‖chefe‖ (CHARAUDEAU, 2013). Sua construção parte da relação triangular: entre ―si‖, o ―outro‖ e um ―terceiro‖.

A imagem de ―si‖ é criada com base na imagem do ―terceiro‖, que está ausente e representa um ideal de referência. O ―outro‖ se sujeita a um comportamento de adesão à pessoa que a ele se dirige por intermédio dessa imagem ideal de referência (CHARAUDEAU, 2013, p. 137).

São vários os procedimentos discursivos que concorrem para a construção da imagem de si que se quer expressar pelo discurso. Procedimentos linguísticos intencionalmente combinados podem, por exemplo, construir uma imagem positiva do orador (o político) e negativa do adversário, ao mesmo tempo em que conquistam a empatia da audiência (CHARAUDEAU, 2013, p. 167). É preciso, para tanto, considerarem-se circunstâncias como os valores da época, a situação de comunicação e a personalidade do orador. A apresentação das ideias, nesse sentido, deve levar em consideração a pluralidade de valores e as condições de apresentação desses valores em termos de simplicidade e de argumentação (CHARAUDEAU, 2013).

Com relação à pluralidade de valores, o consenso de ideias, salvo exceções, não é homogêneo. ―A opinião majoritária que o constitui é na maior parte do tempo o resultado de um compromisso entre opiniões diversas em torno de valores circunstancialmente dominantes‖ (ibid, p. 95). Isso faz com que o político seja ―obrigado‖ a adequar-se aos valores – que ele imagina – serem compartilhados pela maioria.

Chilton (2004) complementa acerca das propriedades recursivas da linguagem, das quais o político lança mão para antecipar as ideias dos rivais ou, ainda, meta-representar os valores da audiência. Em acordo com Charaudeau (2013), Chilton (2004, p. 202) observa que os indivíduos – neste caso, os atores políticos – precisam dissociar a representação do mundo que eles assumem como ―verdade‖ ou ―real‖ daquelas que eles reconhecem que outras pessoas – neste caso, a audiência, os adversários, a mídia – têm.

Frente a essa diversidade de valores e de representações de mundo, no âmbito político, dois imaginários são constantes (CHARAUDEAU, 2013, p. 96): a Tradição e a Modernidade. A Tradição representa um recurso que serve à defesa dos princípios de soberania e também à justificativa de práticas de exclusão, de purificação étnica e de preservação feudal. A Modernidade consiste em um recurso de promoção de valores relativos à globalização ou à excessiva autonomia regional.

Outro fator a ser observado, além dos valores, das ideias e representações do mundo, é a forma como esses são apresentados no discurso, ou seja, suas condições de apresentação. Uma dessas formas diz respeito à simplicidade, outra, à argumentação.

A condição de simplicidade está relacionada à heterogeneidade da audiência do discurso. Em vista disso, o político ―deve‖ procurar o maior denominador comum das ideias do grupo para o qual se dirige, observando a melhor maneira de apresentá-las. Também Chilton (2004, p. 42) compreende, a partir de interpretações dos trabalhos de Habermas, que a comunicação tem um objetivo, e esse objetivo é uma forma de consenso com base no entendimento e na aceitação. ―[...] O processo de construção das opiniões é complexo: simplificar é, portanto, tentar reduzir essa complexidade a sua expressão mais simples‖ (CHARAUDEAU, 2013, p. 98).

A simplificação faz uso de outros dois procedimentos: a singularização e a essencialização. Segundo o autor (ibid, p. 99), essa dupla condição acarreta o efeito

de evidência ao discurso. A condição de argumentação é considerada a partir de sua perspectiva persuasiva, a qual

não se trata tanto de desenvolver um raciocínio lógico com abordagem explicativa ou demonstrativa, que tende a elucidar ou fazer existir uma verdade, mas o da veracidade: não é o que é verdade, mas o que eu creio ser verdadeiro e que você deve crer verdadeiro (CHARAUDEAU, 2013, p. 101).

Para atender a essa condição, é necessário que o político proponha um raciocínio causal simples, apoiado em crenças fortes partilhadas pela maioria do público, e reforçado por argumentos que produzam um efeito de prova, que validem o discurso.

O raciocínio causal simples opera um ―deslize lógico‖ que faz com que uma ―causalidade possível‖, torne-se uma ―causalidade fatal‖, por meio de dois procedimentos: o ―principista‖, que apresenta a finalidade como um princípio de ação (ex.: ―Porque querem uma França forte, vocês votarão por um projeto liberal‖); e o ―pragmático‖, que evidencia uma premissa que implica uma consequência mais ou menos certa ou que visa a um objetivo (ex.: ―Se baixarmos os impostos, aumentaremos o poder de compra‖, ―Domingo vote para salvar a República‖) (CHARAUDEAU, 2013, p. 102).

A construção dos raciocínios lógicos está sustentada na força da argumentação, entendida como uma atividade social e racional que visa justificar ou refutar uma alegação para persuadir o interlocutor (FAIRCLOUGH; FAIRCLOUGH, 2012, p. 36). Tradicionalmente, os argumentos são dedutivos ou indutivos.

Nos argumentos dedutivos, a conclusão decorre das premissas, sendo que sua validade dependerá da delas. É possível, contudo, que argumentos dedutivos válidos sejam construídos sobre premissas falsas. Nos argumentos indutivos, a conclusão não será válida ou falsa, mas sim forte ou fraca, certa ou provável. Esse tipo de argumento sustenta-se por generalizações empíricas. Um terceiro tipo de argumento, o ―condutivo‖, é defendido por Fairclough e Fairclough (2004). Nesse, o padrão de suporte é convergente, as premissas aparecem separadas no texto como independentemente relevantes. Cada premissa provê justificativa suficiente por si mesma, mas juntas tornam o argumento mais forte (IBID, p. 38).

Para abordar argumentos de validação, Chilton (2004, p. 43) recorre a Habermas e considera que qualquer uso da linguagem em uma enunciação realiza

quatro instâncias: a ―compreensibilidade‖ (falar a mesma língua, considerar o dialeto, o registro e os padrões de conhecimentos compartilhados); a ―verdade‖ (verdade objetiva das asserções, independentemente das crenças do enunciador); o ―falar a verdade‖ (relação entre o que o enunciador acredita e o que ele fala) e a ―correção‖ (ser normativamente certo para enunciar o que se pretende e reinvindicar a autoridade para realizar o ato de fala). Essa última instância, a ―correção‖, é particularmente relevante no discurso político, pois está relacionada à relativa distribuição de poder entre enunciador e audiência.

A força dos argumentos pode ser entendida como um conjunto de estratégias discursivas que, ao serem mobilizadas, podem contribuir para o convencimento e a adesão da audiência. Charaudeau (2013, p. 102-104) apresenta algumas categorias que, no nível semântico-discursivo, contribuem para a produção da força nos argumentos.

1) Força das crenças partilhadas – argumento usado pelo político que, na tentativa de convencimento, apela para um valor partilhado. No exemplo 76, está implicitamente construída a crença de que o povo brasileiro é alegre, forte e esperançoso.

76

Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o nosso medo.

D#3

2) Peso das circunstâncias – argumento que constrói uma carga de seriedade, dificuldade, responsabilidade, como condição existente a ser enfrentada. O exemplo 77 aponta o esforço necessário para fazer do Pré-sal o passaporte do Brasil para o futuro.

77

O pré-sal é nosso passaporte para o futuro, mas só o será plenamente se produzir uma síntese equilibrada de avanço tecnológico [...]

D#1

3) Vontade de agir – argumento que projeta a intenção de realização de ações. No exemplo 78, o argumento expressa o desejo de melhorar a oferta de empregos no país.

78 Tudo que o Governo puder fazer na área do emprego será feito. D#4

4) Risco – argumento que constrói a possibilidade de se ter decidido pela opção errada, produzindo um efeito de ameaça. Conforme mostra o exemplo 79 há um valor implícito de que o momento não é favorável para país crescer e se desenvolver, mas é um risco que se assume correr que deve ser superado.

79

A impressionante dinâmica das mudanças ora em curso no cenário internacional toma mais grave o risco de cairmos numa situação de confinamento e marginalização. [...] Temos, ao contrário, que demonstrar com fatos o potencial e a pujança do Brasil.

D#7

5) Autoridade de si – argumento que concede ao político a dimensão de legitimidade ou credibilidade. No exemplo 80 o sujeito da oração, alguém ao qual o poder de gerir foi atribuído, coloca-se como o conhecedor de um princípio – respeitar o povo, que é apresentado como lema aos demais adversários.

80

Eu digo sempre que se tem uma coisa que eu aprendi a respeitar, ao longo desses 30 anos de vida política, foi a relação com o povo.

D#1

6) Desqualificação – argumento em que são apontadas as falhas do adversário. O exemplo 81 traz o argumento em que são apresentadas atitudes desqualificadas de governos anteriores.

81

O povo brasileiro retoma o Estado em suas mãos depois de período turbulento, carregado de intranquilidade, indignação e constrangimentos.

D#6

7) Analogia – estratégia argumentativa em que se busca comparar ações, de modo que fique evidente a diferença de propostas ou de acontecimentos de governos. O exemplo 82 traz uma comparação em que é ressaltado o atendimento à classe necessitada, vantagem de um governo que detecta os problemas e apresenta soluções.

82

Antes, os serviços públicos estavam direcionados aos que mais possuíam. Agora, os serviços e os créditos do Governo estão dirigidos aos que mais precisam [...].

D#4

8) Humor – categoria argumentativa em que uma ―enunciação humorística diverte-se à custa do adversário (como no exemplo 83), obtém a cumplicidade do auditório, [e] constrói em favor de si um ethos de inteligência‖ (CHARAUDEAU, 2013, p. 104, ênfases do autor).

83

[...] e amanhã é dia de nós dizermos, em alto e bom som: deixa o homem trabalhar25, senão o País não cresce como precisa crescer.

D#2

Com base nas categorias de força dos argumentos, podemos entender o pragmatismo da linguagem articulada ao contexto, às práticas sociais pré- estabelecidas e aos valores que atravessam – e ao mesmo tempo constroem – os discursos de posse presidencial analisados. Além disso, a observação dessas estratégias possibilita-nos compreender que representações de filiação política são construídas, qual é o objetivo da construção dessas representações e como a audiência é delineada na situação comunicativa. Esses serão os tópicos que buscamos responder a partir das análises reportadas no Capítulo 6.

A seguir, no Capítulo 5, apresentamos um detalhamento histórico do período que compreende desde a ditadura militar,a abertura política, a retomada do regime democrático, perpassando pelos diferentes mandatos presidenciais que instauram os discursos de posse analisados. Esse recorte na história política brasileira provê subsídios para a interpretação da análise linguística, detalhada no Capítulo 6.

25 A expressão ―deixa o homem trabalhar‖ é uma alusão ao jingle da campanha presidencial de Lula. O termo corresponde a uma resposta às críticas da oposição que o queriam fora do governo. Ao recontextualizar o refrão do jingle no discurso que inaugura o novo mandato e que oficializa a vitória do presidente sobre os adversários, o discurso, não enuncia apenas humor, mas também ironia.