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Constituição Federal de 1988: o reconhecimento da diversidade étnica e cultural no

2 RESISTÊNCIA QUE EXISTE, LUTA QUE PERSISTE: A CONQUISTA DOS

2.2 Constituição Federal de 1988: o reconhecimento da diversidade étnica e cultural no

Durante muito tempo, os indígenas foram vistos como seres primitivos, componentes de uma sociedade em estado embrionário. Abordava-se o desenvolvimento da organização social humana de forma linear e universal, isto é, pensava-se que todas as sociedades passariam necessariamente por várias etapas, fases, até se chegar ao estado que corresponderia à civilização, local ocupado pela sociedade ocidental.

Acreditava-se, assim, que os povos indígenas estavam numa fase inicial, primitiva, da História (única) do ser humano. A assimilação e a integração dessas sociedades à comunhão nacional apresentavam-se como fatos, o que se discutia era se elas deveriam decorrer do seu processo natural ou da intervenção humana, em que caberia a sociedade mais evoluída mostrar o melhor caminho para se alcançar o estágio de civilização. No caso dessa última, divergiam as opiniões: uns defendiam a utilização de meios extremados, extermínio e integração forçada (os fins justificariam os meios); outros sustentavam uma forma de intervenção “branda”, tratando-se, pois, de uma missão ética e humanitária – ao menos, assim se afirmava. Seja qual for o caminho, ao alcançar o estado de “civilizado”, o sujeito deixaria sua condição indígena, momento em que se dispensaria a aplicação dos direitos específicos destinados àquela categoria. Assim, via-se a indianidade como algo transitório, por conseguinte, seus direitos também o seriam.

Na legislação brasileira, a mudança de paradigma ocorreu com o advento da Constituição de 1988, que, devido a fortes pressões das organizações indígenas e indigenistas, reconheceu aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”86, impondo ainda ao Estado o dever de garantir o pleno exercício dos direitos culturais, consubstanciados não apenas no respeito às culturas indígenas (ação negativa estatal), mas também em proporcionar os

elementos indispensáveis para o seu desenvolvimento87 étnico e cultural (ação positiva)88. A Lei Fundamental de 1988 reconheceu, portanto, a diversidade de práticas sócio- culturais e de visões de mundo existentes na sociedade brasileira. Além disso, a nova Constituição reconheceu os membros das nações e comunidades “portadoras” dessas identidades culturais como sujeitos de seu próprio destino e de suas histórias. Agora não se visa mais à homogeneização cultural, mas ao fortalecimento e à construção de uma sociedade pluriétnica, respeitando-se ademais a diversidade cultural existente, o que contrasta diametralmente com orientação assimilacionista presente nos dispositivos legais anteriores.

Assim como a Constituição Federal de 1988, a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – expressa, de forma contundente, essa quebra de paradigma, na medida em que se propõe a “eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores”, reconhecendo, então, a diversidade cultural e sua importância para todas as sociedades, que, por conta disso, deve ser protegida.

Nesse sentido, Helder G. Barreto conceitua e explica essa nova orientação como “paradigma da interação”, segundo a qual:

as relações dos índios, suas comunidades e organizações com a comunidade nacional passaram a se dar no plano da horizontalidade, e não mais no plano da verticalidade, isto é, a nova mentalidade assegura espaço para uma interação entre esses povos e a sociedade envolvente em condições de igualdade, pois que se funda

87 O conceito de etnodesenvolvimento elaborado na Declaração de San José sobre direitos indígenas questionou

a mera permissão participativa e tomada de opinião aos indígenas, colocando como ponto central a autodeterminação, em que os próprios indígenas são os sujeitos principais de sua história: “Entendemos por etnodesenvolvimento a ampliação e consolidação dos âmbitos da própria cultura, mediante o fortalecimento da capacidade autônoma de decisão de uma sociedade culturalmente diferenciada para guiar seu próprio desenvolvimento e o exercício da autodeterminação, qualquer que seja o nível que considere, implicando uma organização eqüitativa e própria de poder. Isto significa que o grupo étnico é a unidade político-administrativa com autoridade sobre seu próprio território e capacidade de decisão nos âmbitos que constituem seu projeto de desenvolvimento dentro de um processo de crescente autonomia e autogestão”. Declaração de San José sobre direitos indígenas, UNESCO - FLACSO (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales), San José de Costa Rica (diciembre de 1981). Cf. ARNSDORFF HIDALGO, op. cit., p. 89.

88 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura

nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

[...]§ 3º (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005) - A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional.

Art. 216, § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

na garantia do direito à diferença89.

Portanto, a variedade de respostas concebidas por diferentes povos à sua existência representa a riqueza da humanidade. A proteção constitucional não deve, então, ser vista como o resguardo de um “objeto” histórico – um fóssil vivo. A Constituição visa à proteção da diversidade cultural, reconhecendo as instituições, as organizações sociais, os costumes e as crenças próprias de cada povo, enxergando nestes a natureza de sujeitos históricos formadores de uma coletividade com autonomia para viver e construir sua própria história, protagonizando, portanto, o seu desenvolvimento étnico e cultural90. Compete ao Estado brasileiro garantir-lhes os elementos indispensáveis para que isso ocorra, devendo observar as peculiaridades essenciais de cada cultura, como, por exemplo, nos casos de comunidades ou povos tradicionais: a autodeterminação, a terra tradicional, o controle sobre ela, a autonomia da comunidade ou povo, entre outros91.

2.3 A proteção da diversidade cultural dos povos tradicionais e indígenas – o território como