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2 RESISTÊNCIA QUE EXISTE, LUTA QUE PERSISTE: A CONQUISTA DOS

2.5 Estatuto Jurídico das Terras Indígenas à luz da Constituição de 1988

2.5.2 O direito originário indígena

O caráter originário de um direito significa a sua preexistência no mundo jurídico. O direito originário não permite confronto jurídico, pois sua formação é primária, o que impõe o status de aparência a qualquer outro direito que venha a lhe contestar. Portanto, presentes os elementos que caracterizem o direito originário indígena (ocupação tradicional), este prevalecerá, por mandamento constitucional, sobre os direitos aparentemente conflitantes. Daí se dizer que são “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras”130 indígenas, e que a constituição dos direitos dos índios sobre essas terras prescinde da realização de qualquer ato jurídico, tendo a demarcação oficial das terras indígenas efeito meramente declaratório. Aqui não se trata apenas dos atos realizados após a promulgação da Constituição, mas também dos

129 SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. op. cit., p. 50. 130 CF/88, Art. 231, § 6º.

atos concretizados preteritamente a ela, porquanto consiste numa preferência constitucional pelo direito coletivo à terra desses povos.

Em decorrência da primazia do direito territorial indígena e consequente nulidade e extinção dos títulos concernentes à área da terra tradicionalmente ocupada pelos índios, Lásaro da Silva afirma:

Os índios não precisam provar que ocupam a terra desde o ano de 1500. Eles precisam provar que habitam a terra atualmente ou que ocupavam a terra e foram espoliados de seu território em um passado vivo e palpitante que pode ser reconstituído pela história oral, modo de ocupação e vestígios de sua presença na área. Diante de uma ocupação tradicional atual ou pretérita, os títulos dominiais são nulos e extintos, não produzindo efeitos131.

O reconhecimento do direito originário a uma terra representa, portanto, a negação da existência de qualquer outro “direito”, mesmo se legitimamente concretizado à época, porquanto a primariedade do direito indígena encrava-lhe o status de direito aparente. Os efeitos do reconhecimento do direito originário atacam retroativamente quaisquer títulos, porventura, existentes, legítimos ou não, anulando-os e extinguindo-os do mundo jurídico. Assim, não existe direito adquirido contra o direito originário, nem se permite nenhum tipo de aquisição sobre ele132. Nesse sentido, Dalmo Dallari sustenta que:

Aplica-se aqui, com absoluta propriedade, a regra segundo a qual não há direitos adquiridos contra a Constituição. Ainda que se admita tenha sido regular a aquisição daquelas terras, no momento em que ocorreu, gerando, para os adquirentes, um direito de propriedade, esse direito não foi ressalvado pela Constituição e é contrário a ela. Assim, portanto, não pode prevalecer [...]. Em consequência desse dispositivo, se alguém obtém mediante compra, herança, doação, permuta ou qualquer outro título uma área ocupada por silvícolas, ficou sem esse direito, no momento em que

131 SILVA, Lásaro Moreira da. op.cit., p. 150.

132 Laranjeira encontra o fundamento da nulidade, em razão do contexto de opressão e injustiça social em que os

povos indígenas se encontram, como, por exemplo: “conluio entre advogados e peritos, envolvendo a boa fé da Justiça, para recebimento de indenização indireta, porque a União teria incluído como terras de reserva indígena terrenos devolutos estaduais e de domínio privado. - escândalos da Administração brasileira, com suas pressões e/ou falcatruas, em prejuízo dos índios, através dos seguintes expedientes, que já aconteceram: a) fornecimento de certidões da presença de índios, a fim de que pessoas da sociedade nacional pudessem reivindicar o apossamento de áreas - nas quais os índios ainda se mantinham ou delas tinham sido expulsos. b) atividades da política municipal e estadual, para formação de distritos, abertura de núcleos habitacionais com posseiros, ataques por disseminação de doenças entre os índios e/ou com o destacado escorraçamento dos mesmos. c) abertura de estradas e loteamentos em áreas de penetração, na Amazônia especialmente, a fim de fixar algum comércio local, em que um dos objetivos principais venha a ser a irradiação de focos de grilagem e intrusão nas terras indígenas. d) obtenção de alvarás de pesquisa, por parte de empresas mineradoras, a fim de respaldarem invasões das áreas indígenas [...]. Logo, é plenamente justificada a norma constitucional que desconstitui as situações jurídicas expostas no § 6º do art. 231 da C.F., ainda que revestida de boa fé”. (LARANJEIRA, Raymundo. A ocupação das terras indígenas pelos posseiros de boa fé e o direito a indenização por benfeitorias. In: SANTILLI, Juliana (coord.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 100).

entrou em vigor a presente Constituição. 133

Portanto, não há conflito entre o direito privado da terra e o direito territorial indígena, isso porque, segundo a Constituição, o direito à terra tradicionalmente ocupada representa um direito originário, sob o título dominial da União, que se sobrepõe a qualquer outro, negando-lhe juridicidade. Nesse sentido, a propriedade privada da terra sucumbe ao reconhecimento do direito indígena à terra e à diferença, e ao direito da humanidade à viver na diversidade sócio-cultural. Não obstante, a elite brasileira teima em aceitar a relativização da propriedade privada da terra firmada pela Constituição, fazendo de seu texto letra morta, buscando a sagração absoluta da propriedade privada da terra; em contrapartida, os movimentos sociais e populares insistem em reafirmar o acesso à terra como um direito humano à vida, à cultura e à dignidade.

Portanto, não há o que se falar em direito de propriedade privada em Terra Indígena porque onde há terra ocupada tradicionalmente pelos índios, a propriedade existente constitui bem da União, indisponível, inalienável e os direitos sobre ela imprescritíveis, afetados a uma destinação específica. Assim, por imperativo constitucional, cassa-se a juridicidade de quaisquer títulos eventualmente existentes e os expurga do mundo jurídico. Afora os ocupantes indígenas, o que resta são posseiros, que devem, ainda, ser distinguidos para efeito de se visualizar quem faz jus à indenização pelas benfeitorias realizadas na área demarcada.

Ao destacar a natureza originária, o Constituinte optou, assim, pela garantia do direito territorial indígena em detrimento de outras relações que possam existir na terra a ser demarcada, visto que se trata do habitat de um povo, que mantém “com esses ecossistemas relações de pertencimento, de subsistência, de atividades tradicionais”134, considerados constitucionalmente mais importante do que a relação utilitária produtivista.