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2 RESISTÊNCIA QUE EXISTE, LUTA QUE PERSISTE: A CONQUISTA DOS

2.6 Surge um novo instituto?

A Constituição de 1988 transfigurou o fundamento do direito territorial indígena, antes pautado na idéia de que este direito deveria ser resguardado aos índios em razão de serem os habitantes primários e naturais do território, hoje, chamado Brasil. O direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas fundamenta-se agora em diversos princípios e valores que envolvem a proteção da biodiversidade, da sociodiversidade, dos conhecimentos locais e da dignidade da pessoa humana em se identificar e viver como membro de uma sociedade culturalmente diferenciada. Assim, sob o viés do direito à diferença, assegurou-se constitucionalmente aos índios alguns direitos fundamentais para o exercício pleno de sua cultura, concentrando-se boa parte deles no capítulo “Dos Índios” (art. 231 e 232) da Constituição146.

No tocante ao direito originário sobre a terra tradicionalmente ocupada (art. 231), percebe-se que a tradicionalidade da ocupação mostra-se como o requisito para configurar uma área como terra indígena. A ocupação indígena, então, não mais se legitima na posse

144 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. 10º vol. Rio de Janeiro: Ed. Borsoi, 1965, p. 380.

145 Conforme se observa na pauta reivindicatória do movimento indígena, um dos pontos sustentados para a

positivação constitucional na ANC consistia no “reassentamento, em condições dignas e justas, dos posseiros pobres que se encontram em terras indígenas”. Vide p. 37 deste trabalho monográfico.

146 Há outros direitos relativos aos indígenas dispersos na CF/88, como direito à educação diferenciada (art. 210,

imemorial ou no fato de determinado povo manter certos referenciais de ascendência com povos pré-colombianos. A legitimidade da ocupação dos índios consiste numa preferência constitucional pela dignidade da pessoa humana e pela proteção à diversidade étnica e cultural. Não é a ocupação que é originária, mas sim sua legitimidade constitucional, que se antepõe a qualquer outra, eivando de nulidade todos os outros títulos. Eis então o título constitucional de caracterização e legitimação da terra indígena – a tradicionalidade da ocupação.

Embora não haja destinado, igualmente, um capítulo às demais populações tradicionais147, a abordagem trazida pela CF/88 representou um grande avanço em relação à visão jurídica então preponderante. Assim, em consonância com o novo paradigma protetivo da sociodiversidade, deve-se compreender que os direitos previstos aos índios, na medida do possível, aplicam-se também aos demais grupos que se identificam como culturalmente diferenciados; sendo que os direitos territoriais somente devem se estender às comunidades tradicionais, em razão do vínculo peculiar delas com a terra. Nesse sentido, Deborah D. Pereira consigna:

É importante assinalar que, ao assumir o caráter pluriétnico da nação brasileira, que não se esgota nas diferentes etnias indígenas, como evidencia o parágrafo 1º do art. 215, a Constituição de 1988 tornou impositiva a aplicação analógica do tratamento dado à questão indígena aos demais grupos étnicos. Assim, diante desse novo padrão de respeito à heterogeneidade da regulamentação ritual da vida, impõe-se a exata compreensão das pautas de conduta que agora orientam os diversos atores sociais, em particular os agentes públicos e políticos148.

Quanto à extensão desse direito originário às demais populações tradicionais, entende-se, por razoável, que se considere a preferência do direito territorial dessas coletividades ao direito de propriedade privada; entretanto, tendo em vista que não se previu expressamente a primariedade do direito dessas populações, a titulação dar-se-á por meio da desapropriação e, posterior, afetação para o usufruto exclusivo das comunidades tradicionais. Com isso, embora não haja a imediata anulação e extinção dos títulos relativos à área ocupada, o restante dos efeitos decorrentes do caráter originário do direito deve ser observado (afastar os pedidos de reintegração ou imissão na posse, despejo, ou qualquer outro ato que possa intervenha na cultura desses povos), competindo à União garantir a proteção e

147 Um dos motivos de o restante das populações tradicionais não terem garantido um capítulo especificamente

destinado a elas pode ter sido a falta de força política para pressionar os congressistas na Assembléia Nacional Constituinte e de conquistar o apoio e o carisma de parte da sociedade civil.

permanência dessas comunidades no território tradicionalmente ocupado, realizando as medidas necessárias para a demarcação dessas áreas.

Nesse sentido, traçam-se duas situações distintas: a ocupação indígena e a ocupação das demais populações tradicionais. No primeiro caso, o direito territorial tem caráter originário, tratando-se de uma preferência constitucional que o antepõe (coloca como primário) aos demais lhes negando existência; não há, assim, qualquer confronto jurídico, pois se desconhece a propriedade privada em terra indígena. No segundo caso, o direito territorial tem os efeitos de direito originário, mas não o é. A preferência constitucional o sobrepõe aos demais direitos, porventura, existentes, aceitando-se, assim, eventuais confrontos jurídicos, sendo que, no entanto, sempre prevalecerá o direito coletivo das terras tradicionalmente ocupadas. A diferença está, então, no reconhecimento ou não da propriedade privada, existindo propriedade, haverá desapropriação.

Percebe-se, portanto, que, por uma escolha constitucional, pôs-se em relevo a função social e coletiva da terra, expressa na proteção da diversidade cultural, em detrimento do direito de propriedade. A tendência observada nas discussões e normatizações hodiernas apresentavam-se no sentido de expandir os direitos relativos à questão indígena às demais populações tradicionais. Assim, verifica-se na positivação dos direitos territoriais das comunidades tradicionais por meio de outros dispositivos, como, por exemplo, na Convenção n. 169 da OIT e na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Essas normas guardam uma semelhança imensa com os direitos territoriais indígenas, inclusive quanto ao conceito de terra tradicionalmente ocupada. Ressalte-se ainda que, até mesmo, já se questionava sobre a abrangência dessas comunidades tradicionais pelos direitos originários contidos no art. 231 da Constituição.

Não obstante, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, o ministro Menezes Direito proferiu seu voto, no qual continha um entendimento restringindo o reconhecimento do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. De acordo com essa teoria, o direito originário se limitaria às ocupações indígenas verificadas na data de promulgação da Constituição de 1988 (5/10/1988), por conseguinte, todos os elementos para a definição da extensão do território indígena se baseariam nesse marco temporal, buscando-se recuperar a imagem fundiária de um fato (ocupação em 5 de outubro de 1988): o fato indígena.

3 UMA NOVA INTERPRETAÇÃO PARA A (IN)APLICAÇÃO DO