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3 UMA NOVA INTERPRETAÇÃO PARA A (IN)APLICAÇÃO DO DIREITO

3.2 A (des)construção do Fato Indígena

3.2.2. Implicações jurídicas

Segundo a interpretação concernente à tese do fato indígena, a ocupação tradicional indígena, considerada em toda sua extensão186, presente e persistente em 5 de outubro de 1988, é um fato, marcado pela Constituição com o status de direito originário. Constatado esse fato, a Constituição excepciona a direito à propriedade privada da terra em favor do direito à terra indígena, tornando qualquer outro título ilegítimo ante o fato indígena; assim, considerar-se-ão “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham [ou tiveram] por objeto a ocupação, o domínio e a posse” dessas terras, “ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”187. Assim consigna o ministro Menezes Direito:

uma vez demonstrada a presença dos índios em determinada área na data da promulgação da Constituição (5/10/1998) e estabelecida a extensão geográfica dessa presença, constatado o fato indígena por detrás das demais expressões de ocupação tradicional da terra, nenhum direito de cunho privado poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. Com isso, pouco importa a situação fática anterior (posse, ocupações, etc.). O fato indígena a suplantará, como decidido pelo constituinte dos oitenta188.

Caso não seja verificado o fato indígena em 1988, ter-se-á duas situações distintas: a ocupação tradicional anterior que não persistiu ao marco temporal e a ocupação tradicional posterior.

Na primeira hipótese, as terras indígenas, para serem reconhecidas, deverão buscar amparo nas Constituições anteriores que as acolheram como direito dos índios189. Ressalte-se que, para o ministro Menezes Direito, a tese do fato indígena substitui a teoria do indigenato, apresentando-se como novo fundamento do direito originário sobre as terras que os indígenas tradicionalmente ocupam; nessa linha, o indigenato continuaria sendo o instituto válido para legitimar a posse indígena com base nos regimes jurídicos precedentes. Dessa

186 Consoante o art. 231, § 1º, da CF/88, são elementos configuradores de terra tradicionalmente ocupada pelos

indígenas: As terras habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

187 Art. 231, § 6º, da CF/88.

188 STF. Petição n. 3388/RR. 2009. Ministro Carlos Aberto Menezes Direito, voto-vista, p. 156.

189 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (16 jul. 1934), Constituição dos Estados Unidos do

Brasil (10 nov. 1937), Constituição dos Estados Unidos do Brasil (18 set. 1946), Constituição da República Federativa do Brasil (15 mar. 1967), Emenda Constitucional nº 1 (17 out. 1969).

forma, o ministro Menezes Direito afirma:

É claro que os regimes passados permanecem importando para o exame das situações que neles se acabaram e aperfeiçoaram, mas a investigação da conformação jurídica a esses regimes de terras referentes ao fato indígena verificado em 1988 é agora desnecessária190.

Há ainda o caso em que os índios não permaneceram em suas terras devido à espoliação de suas terras. Nesses casos, os índios expulsos poderiam reivindicar a terra, visto que a expulsão não descaracterizaria a tradicionalidade da ocupação indígena, que somente se faz ausente por motivos exteriores a sua vontade:

[...] onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não- índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas. Regras que se voltam para a proteção de uma posse indígena pretérita [...]191.

No concernente às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas depois de 1988, os ministros do Pretório Excelso silenciam-se, dando a entender a inexistência de direitos territoriais nesses casos192.

Assim, consoante o entendimento dos defensores da tese do fato indígena, o reconhecimento e a proteção da terra tradicionalmente ocupada estão condicionados à demonstração da presença indígena na área em 1988. Por conseguinte, a proteção à diversidade cultural, por meio da garantia do direito à terra, estaria restrita às manifestações tradicionais presentes na promulgação da atual Constituição, desconsiderando-se, dessa forma, a natureza dinâmica da cultura e o processo de etnogênese. Observa-se, portanto, que a aplicação da tese do fato indígena constrói uma barreira, não apenas à extensão e à quantidade de terras indígenas, mas também à própria proteção à diversidade cultural, limitada, agora, por uma imposição jurídico-interpretativa às diversidades étnicas e culturais existentes no início da vigência da CF/88.

As conseqüências da consolidação da tese do fato indígena vão além do inicial

190 STF. Petição n. 3388/RR. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, voto-vista, p. 156. 191 STF. Petição n. 3388/RR. Voto Carlos Ayres Britto.

192 Entretanto, como se demonstrou no capítulo anterior, o direito territorial indígena estág garantido em vários

dispositivos, tais como o art. 216 da Constituição, que prevê a desapropriação para fins de proteção aos direitos culturais, o art. 14, ponto 2, da Convenção n. 169 da OIT, o art. 26 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, entre outros.

reconhecimento constitucional da terra indígena. Diante da afirmação de a terra tradicionalmente ocupada ser um fato apurável objetivamente, infere-se a impossibilidade de ampliação de terra indígena já demarcada. Esse impedimento decorre da petrificação do conceito de terra tradicionalmente ocupada em um marco temporal estabelecido (5.10.1988). Assim, demonstrada a ocupação duradoura em 1988 e concluído o processo demarcatório, declarando uma área como terra indígena, cessa-se qualquer discussão sobre a extensão da terra indígena, visto que seus parâmetros formadores tratam-se de fatos definidos em 1988. Dessa forma, a possibilidade de ampliação se restringiria às demarcações realizadas antes da vigência da Constituição de 1988.