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3.3 Valores e atitudes do cuidar

3.3.1 Constructo ético da prática do cuidar

As pessoas podem esquecer o que você fez, o que você disse, mas nunca esquecerão o que você as fez sentir.

(Fernando Pessoa)

Na tentativa de construção de uma ética da prática do cuidar, a partir de uma vasta literatura consultada, identificámos e selecionámos cinco elementos da prática do cuidar que, como veremos, são eles próprios os valores que compõem, no seu conjunto, um constructo multifacetado. São eles: a compaixão, a competência, a confidencialidade, a confiança e a consciência. Tais elementos se constituem em importantes valores que moldam as atitudes do cuidar.

a) Compaixão

O primeiro elemento que caracteriza o cuidado é a Compaixão. Mas como entendê-la se ela tem sido tão desvalorizada no nosso contexto cultural? A palavra compaixão, de origem latina, significa etimologicamente, sofrer com, compadecer-se, voltar-se para o ato de compartilhar o sofrimento do outro. A compaixão envolve, por isso, a capacidade de ver o sofrimento do outro e a atitude de não ser indiferente a esse sentimento, de ter para com o sofredor não só um sentimento, mas gestos concretos de preocupação e solidariedade. No entanto, a compaixão é algo mais do que um simples sentimento. De acordo com Torralba i Roselló, é uma virtude:

La compasión es una virtud moral que no es exclusiva de ninguna religión y de ninguna filosofía moral, aunque está omnipresente en el pensamiento moral de todos los tiempos, ya sea en el Occidente griego, romano y cristiano o en el oriente budista o confucionista. La compasión como tal consiste fundamentalmente en percibir como propio el sufrimiento ajeno, es decir, en la capacidad de interiorizar el padecimiento del otro ser humano y vivirlo como si se tratara de una experiencia propia. (Torralba i Roselló, 2002, p. 86).

Para alguns autores, a compaixão está na “raiz do cuidar” e, desse modo, ela é um valor na medida em que o sujeito busca compartilhar a atribulação de alguém, demonstrando preocupação: a compaixão envolve mais do que um estado emocional de simpatia, empatia ou piedade. Nessa preocupação com o outro, porém, não há negligência em relação a si mesmo e também não é apenas bondade.

La compasión como tal consiste fundamentalmente en percibir como propio el sufrimiento ajeno, es decir, en la capacidad de interiorizar el padecimiento del otro ser humano y vivirlo como si se tratara de una experiencia propia. (Vilella, 2005, p. 23).

Podemos dizer que a compaixão se torna um valor constitutivo do cuidar, na medida em que esta proporciona a sensibilidade moral acerca dos anseios do outro (Estrada, 2006), isso sem perder a capacidade do seu conhecimento objetivo, ao mesmo tempo em que mobiliza a vontade para corresponder à sua vulnerabilidade.

b) Competência

Como reconhece Torralba i Roselló (2000), a competência é uma exigência básica da deontologia reconhecida em todas as profissões, correspondendo à capacidade para realizar uma tarefa corretamente, reconhecida em todas as profissões. Este autor afirma, por outro lado, a relação entre competência e cuidado: só é possível cuidar adecuadamente um ser humano a partir da competencia (Torralba i Roselló, 2000, p. 138). Mayeroff (1971) denomina conhecimento, ou seja, para entender o que o outro precisa, tenho que conhecer, me preparar.

Consideradas em si mesmas, competência e compaixão são independentes. Porém, ambas são igualmente exigidas pelo cuidado e reforçam-se mutuamente: a compaixão implica a identificação de novas dimensões a incluir na competência cuidadora, para além das “habilidades e procedimentos de ordem técnica” (Torralba i Roselló, 2000, p. 138), ao mesmo tempo em que a competência contribui para objetivar a compaixão.

c) Confidencialidade

Para Davis (n.d.), a confidencialidade é um dos valores que liga uma pessoa a outra. Uma forma de relação que se estabelece de forma profunda, íntima e de grande significado, denominada pelo filósofo Martín Buber (1970) de “relação eu-tu”, que se contrapõe à “relação eu-isso”. (Davis, n.d., p 4).

Para Torralba i Roselló (2000), a confidencialidade está associada à educação e ao respeito que culminam na atitude de escutar (atentar). Não é fácil ser um confidente, pois cada um deve reconhecer seus limites, saber que também precisa de um confidente para também expor seus problemas, suas angústias, seus anseios. O valor da confidencialidade, por estabelecer uma relação entre o eu e o tu, nos mostra que há fragilidades, em ambas as partes, e não somente no outro. Saber lidar com a confidencialidade nos remete não apenas à ideia de saber ser “quem escuta, absorve”, mas também à ideia de que temos nossos próprios limites e necessidades.

Na confidencialidade, o silêncio torna-se o foco central. Mas não o silêncio de ficar calado, simplesmente, mas aquele associado ao saber escutar o que o outro quer confidenciar. O cuidador é, portanto, aquele que sabe escutar, entender e guardar. Assim, preservámos a intimidade, os segredos do outro, que sente segurança para expor seus mais profundos (escondidos) sonhos, pensamentos, necessidades, fantasias, medos, anseios, certezas e incertezas.

A palavra confiança nos remete ao conceito de valor pois associa-se à “força interior, segurança, firmeza, esperança, familiaridade”. Confiar significa “ter fé” no comportamento do outro ou em algo.

A confiança está diretamente ligada a valores como a confidencialidade e a competência. Se alguém nos confidencia algo é porque sente confiança, acredita em nós, se sente seguro conosco, independentemente do que será dito (positivo ou negativo). Se alguém nos procura quando está vulnerável é porque nos vê com confiança:

Confiar en alguien es creer en él, es ponerse en sus manos, es ponerse a su disposición. Y sólo es posible ponerse en las manos de otro, si uno se fía del otro y le reconoce una autoridad no sólo profesional, sino también moral. (Torralba i Roselló, 2000, p. 139).

Um paciente coloca-se nas mãos de um médico, confiando em sua competência para tratar de sua enfermidade. Um cliente busca produtos confiáveis, ou seja, que lhe permitirão ter uma tranquilidade após sua aquisição. A confiança é a base dos relacionamentos, pois ela pode pressupor a retirada de dúvidas e incertezas, mesmo que temporariamente. Mayeroff (1971) apresenta a confiança como um dos pressupostos em que o cuidado se institui. Para ele, a falta de confiança não permite estabelecer o verdadeiro cuidado. E, além de confiar no outro, é necessário confiar em si e em sua capacidade de cuidar, isto é, a confiar em seus julgamentos e na capacidade de aprender com os próprios erros.

Para Torralba i Roselló (2000), não podemos entender a confiança como algo absoluto, que retira total e definitivamente as incertezas, as dúvidas, visto que não podemos projetar nossos anseios sobre alguém. Para ele, a ideia de que o ser humano também é falível pode não atender às nossas expectativas. A confiança deve partir da premissa de que o outro estará fazendo o possível, o melhor para aquele que necessita de algo. No entanto, uma relação de confiança, estabelecida entre duas pessoas, pode ruir se uma coloca outras intenções acima da relação. A desconfiança gerada por má conduta, interesses económicos, políticos, estratégicos, entre outros fatores, constitui-se em um dos grandes problemas de relacionamentos. Destituído esse valor, não se consegue reerguê-lo nos mesmos moldes em que foi constituído. É como uma xícara que se quebra e é colada: sempre haverá uma gota vazando.

Para muitos indivíduos, o excesso de confiança em outros os torna dependentes, de tal forma que os limita a emitir suas próprias opiniões sem depender do outro.

e) Consciência

Usamos aqui o termo Consciência como a capacidade do ser humano de decidir sobre suas ações, responsabilizando-se de suas consequências em consonância com a concepção do bem e do mal. Torralba i Roselló (2000) afirma que

la conciencia es una instancia fundamental del ser humano, pertenece a su dimensión interior y tiene un valor integrador. Ser consciente de algo, es asumirlo, es reflexionar en torno a sus consecuencias, es saber lo que se está llevando entre manos. La consciencia, entendida como virtud y no como atributo de la interioridad humana, significa reflexión, prudencia, cautela, conocimiento de la cosa. Cuando decimos que la conciencia es un constructo del cuidar, lo estamos diciendo en el sentido ético del término, pues la conciencia como tal pertenece a todo ser humano. (p. 141).

Duarte (2004), ao estudar Leontiev (1903-1970), para analisar a relação entre consciência humana, sentido e significado de suas ações, chama a atenção para o facto de que “o sentido da ação é dado por aquilo que liga, na consciência do sujeito, o objeto de sua ação (seu conteúdo) ao motivo dessa ação” (Duarte, 2004, p. 55). Desse modo, temos que ter consciência do que estámos fazendo em relação ao outro, sem desprezar sua condição temporal e espacial, respeitando sua identidade, vontade e dignidade. Para Torralba i Roselló (2000):

Quien no es consciente de estas dificultades puede llegar a pensar que su modo de obrar es excelente y puede inclusive llegar a banalizar la ardua tarea de cuidar como si se tratase de una actividad mecánica. (p. 141).

Para finalizar, de acordo com Waldow & Borges (2008, p.766), “O processo de cuidar abrange, além de procedimentos e atividades técnicas, ações e comportamentos que privilegiam não só o estar com, mas o ser com.” Assim, surgem atitudes do cuidar

tocar, o capacitar, o escutar, o sentido de humor, etc. Para esses autores, valores como a competência, a sensibilidade, o discernimento e a intuição são essenciais no processo. Entretanto, saber discernir cuidado de paternalismo é de relevância extrema. Por isso, a importância em tomar consciência desses valores sem os impor ao outro.