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1.2 Educação para a Saúde

1.2.2 O paradigma salutogénico e a promoção da saúde

1.2.2.2 Sentido Interno de Coerência

O conceito de Sentido Interno de Coerência (SOC, Sense of Coherence) integra-se na teoria salutogénica de Antonovsky (1987) e permite estabelecer uma relação entre a observação que ele fez sobre indivíduos de diferentes idades, contextos socioculturais e a educação, chegando assim ao que poderíamos chamar Educação em Saúde. Antonovsky expressa a relação entre a condição em que se encontra o indivíduo, a identificação de recursos e a sua capacidade de usá-los para viver melhor. (Azevedo, 2014, p. 876). O sentido de coerência começa a ser construído desde a infância, quando a criança se relaciona com sua família. Posteriormente, já na adolescência e na fase adulta, ao ampliar seus horizontes de relacionamento, interagindo com pessoas e grupos sociais dos mais diversos, ela poderá ou não continuar a expandir positivamente seu sentido de coerência.

Mas o que vem a ser o SOC? Para Antonovsky, o SOC nada mais é do que uma orientação global demonstrada pelo indivíduo a partir de um sentimento de confiança dominante, duradouro e dinâmico, que o impele a enfrentar uma dada situação de conflito:

It is a global orientation that expresses the extend to which on has a pervasive, enduring though dynamic feeling of confidence that (1) the stimuli deriving from one’s internal and external environments in the course of living are structured, predictable, and explicable; (2) the resources are available to one to meet the demands posed by these stimuli, and (3) the demands are challenges worthy of investment and engagement. (Antonovsky, 1987, p. 19).

De acordo com Eriksson & Lindström (2005), o conceito de SOC pode ser resumido na capacidade que o indivíduo possui de compreender toda a situação de stress a que está submetido e sua capacidade de utilizar os recursos disponíveis. Essa capacidade pode ser ou não influenciada por fatores externos. “Quanto maior for o sentido de coerência das pessoas, mais aptas se encontram para resistir aos fatores adversos e para intervir no sentido de os modificar, através do exercício da participação”. (Carrondo, 2006, p. 20).

Antonovsky identificou três componentes que permeiam o SOC: capacidades de compreensão, de gestão e de investimento. Esses três componentes foram descritos por

Carrondo (2006) da seguinte forma (Figura 5):

Figura 5: Descrição dos componentes do SOC. Adaptado de “Formação profissional de enfermeiros e desenvolvimento da criança: contributo para um perfil centrado no paradigma salutogênico”, por Carrondo, E. M., 2006, p.40.

Assim, como resumido na Figura 6, compreender a situação de stress e gerenciá-la de modo a manter o equilíbrio levam ao terceiro componente, que é a capacidade de investimento e, por conseguinte, a continuar sua vida com qualidade, sentido, coerência. Esses componentes culminam em um único ponto: o equilíbrio expressado pelo sentido de coerência.

Figura 6: Componentes do Sentido Interno de Coerência proposto por Antonovsky. Adaptado de “Unraveling the Mystery of healt: How people manage stress and stay well”, Antonovsky, A., 1987, p.16.

Podemos entender que o sentido de coerência nos mantém equilibrados quando estamos lidando com uma situação estressora, que na maioria das vezes é visualizada como algo negativo. De uma forma mais global, podemos entender o SOC como uma orientação global da vida, uma forma de ver a vida por outros ângulos, ou como um caleidoscópio com o qual mudámos o enfoque e ela se torna mais coerente, estruturada, gerenciável e significativa. De posse desse sentido, o indivíduo sente-se mais confiante e consegue identificar recursos (internos ou externos), reconhecendo como estes podem ser utilizados na promoção de sua saúde. Oliveira corrobora afirmando que

ao longo da história de vida de cada um de nós vamos seleccionando e ajustando o que surge de novo nas nossas vidas aos padrões de significação que fomos construindo para aquele tipo de acontecimentos ao longo da nossa existência até então. (Oliveira, 2008, p. 6).

compreender os estímulos que lhe são dados, recursos adequados e uma capacidade de avaliar os acontecimentos da sua vida como dotados de uma razão de ser, os quais devem ser encarados de frente, independentemente de sua origem (positiva ou negativa). Desse modo, confia que os acontecimentos são claros e objetivos, embora não sejam controláveis. O indivíduo com elevado SOC não detém o poder, mas reconhece onde este pode ser encontrado (no próprio indivíduo ou em outros). Acredita, mas sem fantasiar, e apenas pensa no que razoavelmente pode acontecer. (Palacios-Espinosa & Restrepo- Espinosa, 2008).

Eriksson & Lindström (2005) caraterizam essa capacidade como uma habilidade que o indivíduo desenvolve para avaliar, entender e encontrar uma solução (gerenciar), um significado em direção à promoção da saúde.

This capacity was a combination of peoples’ ability to assess and understand the situation they were in, to find a meaning to move in a health promoting direction, also having the capacity to do so — that is, comprehensibility, meaningfulness, and the manageability, to use Antonovsky’s own terms. Antonovsky also distinctly stated the salutogenesis was not limited by the disciplinary borders of one profession but rather an interdisciplinar approach and a question of bringing coherence between disciplines and realise what connects them. Furthermore, it is not only a question of the person but an interaction between people and the structures of society — that is, the human resources and the conditions of the living context. (Eriksson & Lindström, 2005, p. 440).

Em consequência, os mesmos autores em outra publicação, consideram que:

… the stronger the SOC the fewer the symptoms of mental illnesses;

… protects against anxiety, depression, burnout and hopelessness;

… is strongly and positively related to health resources such as optimism, hardiness, control, and coping;

... SOC predicts good health and Qo. (Eriksson & Lindström, 2008, p. 55)

Antonovsky (1996) compreendeu que o SOC não poderia ser formado em um único período da vida de um indivíduo, mas de várias etapas que estivessem ligadas à sua formação. A partir dessa análise, estabeleceu períodos específicos da vida para a formação do SOC, ou seja, durante a infância, a adolescência, juventude e alcançando a idade adulta entre 25 e 30 anos, este sentido se completa. Durante a fase de formação do SOC, que pode ser alterada ou não, o indivíduo pode sofrer influências endógenas e exógenas (ambiente, grupos sociais, e outros fatores).

No entanto, a partir da idade adulta, observa-se que há uma estabilidade que sedimenta o que foi formado anteriormente. Nesse sentido, considerando que as etapas estão marcadas pela presença (ou não) da família e de outros grupos sociais que estão ao derredor, podemos dizer que influência destes grupos, é um grande impulsionador da formação de um SOC forte, ou mesmo de sua não formação.

O que observámos é que o meio em que o indivíduo vive e convive possui fortes influências sobre a formação de seu SOC. A família, os amigos, o ambiente escolar, o trabalho, dentre outros, compõe um conjunto de fatores que exercem influência sobre o indivíduo. No entanto, a base de formação no seio familiar e seu suporte ao longo da vida, pode mantê-lo firme, alheio a influências negativas, dando-lhe um suporte consistente que será relevante em uma situação de stress. Assim, uma mudança de ambiente pode ser um fator extremamente influenciador na formação do SOC de um indivíduo, principalmente em fases nas quais há mudanças hormonais, psicológicas, emocionais, como é o caso da adolescência. Desse modo, podemos aferir que, mesmo na idade adulta, o SOC pode sofrer interferências em razão de fatores externos que ocasionem um grande stress no indivíduo. Essas modificações podem ser no sentido de elevar ou diminuir o Sentido de Coerência, visto a forma como o stress pode ser entendido e gerenciado pelo indivíduo.

Tais influências podem ser também associadas à cultura, à sociedade, através das quais a educação tem um papel fundamental no aprender, que por sua vez está a todo instante sendo influenciado pelas realidades vivenciadas por cada indivíduo.

Ressaltámos, entretanto, que não podemos resumir a Salutogénese apenas à medida do SOC de um indivíduo. Temos, atualmente, uma gama de conceitos (Figura 7) relacionados à abordagem salutogénica que é vista como um grande guarda-chuva por Lindstöm & Eriksson (2010), por envolver atitudes, capacidades, emoções, recursos, valores, dentre outros que promovem a saúde:

Figura 7: Asset and resource concepts under the salutogenic umbrella. Adaptado de “Salutogenesis - an introduction”, por Lindstöm & Eriksson, 2010, figura 5.

Em um contexto amplo, a Salutogénese busca promover a vida (ou a vida de qualidade), em todos os sentidos, e não apenas comportamentos saudáveis ou a remissão da doença. Para Oliveira & Costa (2012, p. 700), “esse autor [Antonovsky] não negava a doença, nem a sua importância para a área da saúde humana. Ele considerava, no entanto, que ela não se opõe à saúde; ambas se articulam num continuum, que é a própria vida”. Assim, para Seidl e Zannon,

os determinantes e condicionantes do processo saúde-doença são multifatoriais e complexos. Assim, saúde e doença configuram processos compreendidos como um continuum, relacionados aos aspectos económicos, socioculturais, à experiência pessoal

e estilos de vida. Consoante essa mudança de paradigma, a melhoria da QV passou a ser um dos resultados esperados, tanto das práticas assistenciais quanto das políticas públicas para o setor nos campos da promoção da saúde e da prevenção de doenças. (Seidl & Zannon, 2004, p. 580).

Essa ideia passou a ser compreendida e defendida aos poucos (mesmo que posterior a Antonovsky), na medida em que o conceito de “qualidade de vida” foi sendo moldado nas últimas décadas em função dos novos paradigmas que foram sendo discutidos, ao longo das inúmeras conferências sobre Promoção da Saúde.2 No entanto, desde a criação da OMS, quando se estabelece a definição de Saúde, o termo “qualidade de vida” passa a ser utilizado como sendo uma das premissas da saúde. Porém, é a partir da década de 1960, que esta se torna uma expressão largamente utilizada, incluindo as vertentes psicológica e social.

Mais recentemente, a OMS definiu a qualidade de vida (QV) como “the individual's perception of his or her position in life, in the context of the culture and value systems in which he lives, and in relation to his goals, expectations, standards and concerns” (WHO,1997, p. 1), ou seja, como o indivíduo percebe e reconhece o que considera como importante para sua vida. Hoje esse conceito (de qualidade de vida) é visto com subjetividade e multidimensionalidade, ampliando-se para o coletivo, indo além do bem- estar físico e envolvendo outras dimensões, como preconizado pela Salutogénese. Para Morins (2009), os conceitos atuais de qualidade de vida envolvem alguns aspetos importantes, como:

Ser ampla e abranger todas as áreas da vida;

2 I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, Ottawa, 1986; II Conferência Internacional sobre

Promoção da Saúde, Adelaide, 1988; III Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Sundsvall, 1991; Declaração de Bogotá, 1992; Declaração de Jacarta, 1997.

Ser específica do sujeito, ou seja, o que é importante para um indivíduo poderá não o ser para outro;

Propiciar e sugerir meios pelos quais possa ser melhorada a qualidade de vida, realçando a importância do crescimento e desenvolvimento do indivíduo. (Morins, 2009, p. 38)

Para Eriksson & Lindström (2005), a promoção da saúde e a qualidade de vida são eficazes se seguirmos o caminho da salutogénese. No entanto, não podemos entender a promoção da saúde como a solução de todos os problemas, considerando a saúde como sinónimo de felicidade, como se esta fosse o único aspeto da existência humana. A promoção da saúde, em seus aspetos práticos e teóricos, envolve sim uma diminuição do sofrimento, pois o indivíduo estaria em uma condição de bem-estar. Para alguns, envolve uma relação não somente com o social, o psíquico, o ambiental, mas também com o económico, visto que promover a saúde implica diminuir gastos com as doenças, aumentar a produtividade do indivíduo (por estar desvencilhado daquilo que o impede de trabalhar: a doença), aumentar ganhos fiscais, aumentar a esperança de vida, dentre outros aspetos. No entanto, nem todos concordam que essa relação [económica] seja positiva, pois, vivendo mais, aumentámos também nossa dependência económica. Para Cestari e Zago (2005),

a mercantilização da saúde, com a comercialização em larga escala de informações e produtos dirigidos à preservação da vida saudável, do viver com saúde, na perspetiva do consumo individualizado de produtos e serviços, não significará necessariamente uma racionalização da vida no sentido da incorporação exclusiva de um saber científico, instrumental. Pelo contrário, a julgar pelas características e multiplicidade de informações, o cuidado à saúde no plano individual não deixará de manter o apelo ao simbólico, ao mágico, ao sobrenatural, ao místico, e mesmo ao metafísico. (p. 220).

Temos, pois, que estar atentos ao caráter complexo das formas de promoção da saúde e suas consequências no mundo moderno.