• Nenhum resultado encontrado

Cuidar e cuidado: etimologia e apontamento histórico

Etimologicamente, a palavra cuidar advém do latim cogĭto, -as, -āvi, -ātum, -āre, cogitare, que significa remoer no pensamento, pensar, projetar; cogitar. Cabe aqui ressaltar que curar e cuidar possuem originalmente aceções semelhantes, no sentido de que ambos visam proteger o ser humano. Proteger sua dignidade, mesmo quando há uma perceção de finitude com a morte (Hennemann-Krause, 2012). De acordo com Noddings (2003, p. 21), o “cuidado é um estado de sofrimento mental ou de absorção: cuidar é estar em um estado mental sobrecarregado, um estado de ansiedade, medo ou preocupação em relação a alguma coisa ou alguém.”

Sua origem advém também da palavra cura (do latim coera), que, inicialmente, possuía dois significados conflitantes: cuidado como fardo (negativo) e como solicitude (positivo). No entanto, trata-se de um conceito complexo que muitas vezes nos leva a reflexões profundas em virtude de sua subjetividade. Como afirma Reich (1996, p. 319) “por um lado, o cuidado significava preocupações, problemas ou ansiedades, como quando se diz que uma pessoa está ‘carregada de cuidados’. Por outro lado, o cuidado significava proporcionar o bem-estar de outro.”

Dependendo da forma empregada, pode ser visto apenas como um encargo, uma responsabilidade, uma obrigação, uma função própria da profissão ou do trabalho; porém, mesmo com esta acepção, o cuidar pode ser carregado de amor, de esperança, de busca pelo bem-estar, de alegria, de compaixão, ou seja, de valores e atitudes próprias. Este conceito está marcado pela subjetividade: cada um o entende e concretiza a seu modo, mas deve ser ampliado, de modo a que não se seja fechado, que seja pautado na liberdade, na autonomia “de cada um” e “para cada um”.

Numa perspectiva histórica, as ações do homem primitivo sempre estiveram envolvidas pelo “cuidar”. Os primeiros agrupamentos humanos já sabiam cuidar de si e dos grupos, mesmo sem ter a noção explícita, o entendimento do que faziam, e, graças a essa noção implícita de cuidar, foi possível ao homem manter-se vivo, reproduzir, desenvolver, evoluir e povoar o planeta. O ato de buscar abrigo, de se alimentar e alimentar o grupo, de manter o fogo aceso, de buscar novos espaços para o grupo, associa-se ao conceito de cuidar, no sentido da assistência à sobrevivência.

No denominado primitivismo, o homem moldava-se através de suas interações com os outros membros de seu grupo social, vindo a transformar-se em um ser ético. Valorizava tanto a cooperação quanto a dependência de seus semelhantes e depreciava a agressividade e a autossuficiência, gerando uma estabilidade social. Na verdade, esses valores determinavam a sobrevivência e o conforto do indivíduo, além de uma estabilidade de caráter, dependente da satisfação moral, que juntas mantinham as relações, entre os companheiros, vantajosas para todos.

As fragilidades individuais expostas ao ambiente hostil, juntamente com a precariedade estrutural dos objetos para sua defesa, fizeram com que houvesse um despertar na socialização do homem, transformando suas necessidades individuais em coletivas. (Vaghetti, Padilha, Carraro, Pires, & Santos, 2007, pp. 268-269).

No mundo clássico, a palavra cuidar (no latim cura) era utilizada para contextualizar situações diferentes: uma negativa, denotando uma forma de obrigação, dever, preocupação, angústia ou ansiedade; outra positiva, gerada pela forma de preocupação para com o outro, a atitude de dedicar-se. (Vilella, 2005). Os romanos a relacionavam

tanto com o corpo como com o espírito, o que foi resumido na frase “mente sã em corpo são”.

Na mitologia grega, um exemplo de explicação e personificação do “cuidado” encontra- se na fábula-mito “elaborada por Gayus Julyus Hyginus (ou, simplesmente, Higino), um escravo egípcio, libertado pelo imperador César Augustos, que se tornou o diretor da Biblioteca Apollinis e, posteriormente, da Biblioteca Palatina de Roma,4 e cujo conteúdo mostra que o cuidado acompanha o homem desde sua criação até seu encontro consigo e mesmo ao retornar (ou seja, sua morte)” (Boff, 2014, p. 66). Para Boff, esta fábula-mito personifica o cuidado como um “modo de ser fundamental”, ao buscar demonstrar a sua importância para a permanência em vida do homem. Tanto Júpiter quanto Tellus e Cuidado mostraram ter uma importante influência no ser criado — o homem — e, neste caso, Saturno (o tempo) mostrou a finitude (do nascimento à morte). Boff os considera como metáforas que utilizámos para expressar nossas dimensões mais profundas. Tellus (terra) somos nós porque viemos da terra e a ela voltaremos. Conhecer a terra significa conhecermos a nós mesmos. Para este autor, a Terra representa a dimensão material e terrena de nossa existência. Quanto a Júpiter (que representa o céu), Boff (2014) o caracteriza como a dimensão espiritual e celestial da existência humana, ou seja, “o céu dentro de nós. (...) que representa sua capacidade de ir além da terra” (p. 92). Diante do céu e da terra, surge a figura de Saturno como uma síntese, uma utopia. Utopia por representar uma condição de convívio entre os homens pautada na integração, justiça, benquerença e paz. No entanto, Boff (2014) afirma que precisámos dessa utopia para vivermos. Os sonhos que almejámos se sobrepõem a interesses menores (p. 94), e, para

4 Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil (Hyginus 1976. Fabularum liber. New York: Garland.).

tanto, o tempo através da história se torna preponderante para que ocorra a síntese entre céu/terra, história/utopia.

Segundo Boff (2014),

o ser humano é simultaneamente utópico, e histórico-temporal. Ele carrega em si a dimensão Saturno junto com o impulso para o céu, para a transcendência, para o vôo da águia (Júpiter). Nele também se revela o peso da terra, da imanência (...) (Tellus). É pelo cuidado que ele mantém essas polaridades unidas e faz delas material da construção de sua existência no mundo e na história. Por isso o cuidado é cuidado essencial. (pp.76-77).

Nesse sentido, a fábula-mito nos mostra que o cuidado acompanha o homem ao longo de sua história, ou seja, um ser-de-cuidado. “Por isso é o ethos fundamental, a chave decifradora do humano e de suas virtualidades” (Boff, 2014, p. 95). Somos seres de cuidados, conclui Boff: o cuidado possui uma dimensão ontológica, tornando-se um modo de ser próprio do ser humano.

Um marco importante para a compreensão do Cuidado é a Idade Média (550-1500 d.C.) que foi marcada pelo desfacelamento do urbano e as aglomerações rurais feudais que, em termos de doenças e sofrimento, teve nas epidemias e pestes seus principais legados. O mundo cristão afirmava que, doença e pecado possuíam relação direta e, portanto, as pestes representavam um castigo divino para a purificação da alma. (Batistella, 2007). A cura passa então das mãos dos “médicos” para os religiosos e curandeiros/barbeiros que desprezavam tudo que a ciência romana havia desenvolvido em termos de “cura”. Não mais eram indicados chás, ervas, banhos, cirurgias, e sim rezas, exorcismos, unções e penitências. (Gordon, 2013). A cura passa a ter uma conotação espiritual, de reparação de um mal, na qual a salvação torna-se o foco e, portanto, cuidar do corpo e da alma é visto como o princípio para a salvação. O cuidar estava envolto da busca pela salvação e, portanto, não se preocupava com o bem-estar, as necessidades do homem no mundo, a autonomia. O ocidente estava envolto em um cristianismo que questionava a própria existência de Deus, tornando-se amargo e inquisidor. Nesse período, somente árabes e judeus mantiveram a medicina como ferramenta para a cura. (Gordon, 2013).

O termo “cura” passa a ter uma conotação espiritual, tendo em vista que a existência das doenças justificava a necessidade de se crer em um Deus que purifica e salva as almas. (Batistella, 2007). Nesse período, também surgem os hospitais, considerados locais de assistência aos pobres, diga-se, aqueles que necessitavam de assistência (cuidados e ao mesmo tempo de separação dos não doentes). É interessante notar que até o século XVII os hospitais não tinham uma conotação médica. Eles eram vistos como o espaço do assistencialismo, no qual o pobre e o doente eram acolhidos (ou recolhidos), para serem cuidados pelas religiosas. Então, observámos que o papel do cuidar estava relegado à figura feminina religiosa, mas não com a conotação de curar, mas sim de salvar a alma, pois o hospital era um espaço que acolhia todos que eram considerados “fora da ordem”. (Rossi, 1991).

No mundo moderno, observámos que os filósofos buscam não associar o conceito de cuidar à obrigação, ao dever. Kierkegaard (1813-1855) introduziu o conceito em seus estudos, colocando-o como um elemento central, para se compreender a vida humana, como foi originalmente proposto por Higino em sua fábula-mito. Kierkegaard utiliza-o como sinónimo de preocupação, correlacionado ao sentido da existência humana, mas apresenta uma nova forma de ver o cuidado: nem sempre seria uma forma de amor para com o outro.

A partir do século XVIII tem-se uma ruptura do conceito de cuidar empregado nos espaços dos hospitais, dominados pelas religiosas. Uma mudança do paradigma religioso para o científico (Rossi, 1991). Surge a necessidade de curar e, também, cuidar, em função das guerras. Os hospitais passam a ser o espaço medicalizado, ou seja, aquele a ser ocupado por quem precisava ser “curado” de uma condição de doente (ferido ou com doença), mas, também, de cuidado (vigiados). Nessa mudança, os médicos passam a ser os especialistas, os organizadores e administradores do espaço, cabendo-lhes a responsabilidade “pela organização das relações de coexistência interna e, depois social, dos homens entre si, dos homens com as coisas e dos homens com os animais, não ficando esquecidos os aspectos ligados à moradia e aos deslocamentos”. (Rossi, 1991, p. 18). Ao médico foi dado o poder sobre o espaço (ambiente terapêutico) e sobre as pessoas que dele se utilizavam, criando normas e regras que deveriam ser seguidas sem

questionamentos. Esse novo paradigma trouxe consigo o estabelecimento de condições hierarquizadas “em nome da ciência do saber médico que representava a ordem”. (Rossi, 1991, p. 20).

Outro marco importante para a reflexão do cuidado é a obra que Carol Gilligan publicou no início da década de 1980: “In a Different Voice: Psychological Theory and Women's Development”. (Gilligan, 1982). Escrita em reação à teoria do desenvolvimento moral de L. Kohlberg, a obra propunha um conjunto de estudos empíricos que evidenciavam que a teoria do desenvolvimento moral não tinha o carácter universal que o seu autor lhe atribuía. Embora se possa apontar-lhe alguma incoerência (confunde ética, de natureza filosófica, com teoria do desenvolvimento moral, em si mesma, psicológica), é inegável que Gilligan lançou luz sobre a complexidade do processo de deliberação e justificação moral, e mostrou a sua relação com outras dimensões da pessoa, nomeadamente as relações Sociais e políticas.

Nel Noddings (1984) retoma os estudos de Gilligan para fundamentar, filosoficamente, uma ética do cuidado que conserva a orientação feminista e consequencialista.

Outros autores modernos, nomeadamente a partir da problemática da saúde e da vulnerabilidade, mas também da ecologia e do respeito pelas gerações futuras, também desenvolveram análises do cuidado como fundamento para uma ética mais centrada na compaixão, na solidariedade, na solicitude e menos nos direitos e deveres.