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CAPÍTULO II – PARTE PRÁTICA

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

3. Pontes e cruzamentos do VIH/SIDA e dependência de substâncias

3.3. O consumo de substâncias e o VIH/SIDA

A emergência da epidemia da SIDA desde muito cedo que centrou parte dos esforços da comunidade científica no aumento do saber na prevenção da transmissão da infeção. Desta forma, os comportamentos sexuais e consumo de substâncias assumiram alguma centralidade nas investigações de modo a conseguir-se implementar estratégias de intervenção e práticas preventivas eficazes para a contenção da disseminação do VIH/SIDA.

A produção de conhecimento científico na área social sobre a sexualidade não é tão extensa quanto seria oportuno. Os primeiros trabalhos nesta área surgiram nos anos quarenta com os relatórios de Alfred Kinsey e colaboradores que, apesar dos seus erros e falhas, revolucionaram a forma das pessoas pensarem uma realidade que era de todos. Desde as primeiras publicações de Kinsey que a investigação sobre o sexo e a sexualidade tem aumentado em termos de quantidade e qualidade, nomeadamente quanto à investigação dos comportamentos associados ao aumento do VIH/SIDA (Turner, Miller, & Moses, 1989).

Não há dúvidas que a emergência do VIH/SIDA alavancou a investigação comportamental na área da sexualidade. O que hoje se sabe acerca das relações homossexuais, muito se deve ao aumento exponencial dos casos de infeção nas décadas de oitenta e noventa. Por outro lado, o estudo desta população permitiu enriquecer e consolidar o conhecimento sobre os padrões de transmissão do VIH/SIDA e comportamentos sexuais. Desde os primeiros estudos com homossexuais que se

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estabeleceu o VIH/SIDA como uma doença sexualmente transmissível e se identificou a importância dos fatores de risco, como a existência de múltiplos parceiros e das relações sexuais desprotegidas (sem preservativo), na disseminação da infeção (Turner, Miller, & Moses, 1989).

Os estudos sobre comportamentos sexuais inseguros, como é o caso da falha do uso do preservativo, sustentam que vários fatores interferem na sua ocorrência. A falta de informação/conhecimento sobre a doença (VIH/SIDA) foi apontada, durante algum tempo, como um dos fatores preponderantes na prática de comportamentos de risco (Barden-O'Fallon, Graft-Johnson, Bisika, Sulzbach, Benson, & Tsui, 2004). Atualmente, é quase de senso comum que a informação por si só não é suficiente para mudar comportamentos (Ferreira, 2008), e a investigação relativa ao nível de conhecimentos sobre o VIH/SIDA e à prática de comportamentos sexuais seguros, tem demonstrado isso mesmo. O nível de conhecimento ou informação não está associado à prática de sexo protegido, ou seja, um bom nível de conhecimento não se traduz obrigatoriamente em práticas sexuais protegidas (Bruce, Bauai, Sapuri, Kaldor, Fairley, & Keogh, 2011; Ferreira, 2008; Barden-O'Fallon, Graft-Johnson, Bisika, Sulzbach, Benson, & Tsui, 2004). Embora o conhecimento/ informação por si só não potencie a mudança comportamental, também não há dúvidas que a falta deste se configura como fator de risco, na medida em que é determinante para a perceção do risco. Um estudo português (Almeida, Silva, & Cunha, 2005) com uma amostra de 826 adolescentes, apresenta resultados que vão nesse sentido. Mostrou que os adolescentes têm conhecimentos modestos sobre o VIH/SIDA e que têm, ao mesmo tempo, muitas “atitudes” de risco, concluindo que era urgente proporcionar informação adequada e persistente relativa ao VIH/SIDA aos adolescentes, de forma a permitir que eles optassem por estilos de vida mais saudáveis. Um outro estudo, realizado em 2002 com 312 estudantes universitários portugueses (Freitas, 2003), revelou que os estudantes de cursos da área da saúde tinham um nível de conhecimento sobre o VIH/SIDA superior aos estudantes de outras áreas, e que estes tinham menos dificuldades que os estudantes de outras áreas (não saúde), em impor práticas de proteção, como o uso do preservativo. Neste sentido, parece-nos pertinente afirmar que a transmissão de conhecimento e informação sobre o VIH/SIDA como estratégia única de prevenção da infeção não se reveste de grande eficácia ao nível da mudança comportamental. Contudo, a prevenção

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e a intervenção devem, sem dúvida, contemplar o aumento desse conhecimento e informação, pois sem ela a probabilidade de mudança está diminuída.

Analogamente, a produção de conhecimento sobre a sexualidade e o consumo de substâncias ressalta a sua forte associação, indicando o consumo como um fator de risco para o sexo desprotegido (Boyer, Tschann, & Shafer, 1999; Shafer & Boyer, 1991).

Devido à natureza social da maioria dos consumos, o álcool e as drogas ilícitas são frequentemente associados aos comportamentos sexuais (Leigh & Stall, 1993). Segundo Plant e Plant (1992) existem duas razões para a associação do consumo de substâncias com a sexualidade. A primeira, são as ligações culturais e sociais entre o consumo e os encontros sexuais, na medida em que o beber, por exemplo, pode ser simplesmente um acompanhante ou percursor dos encontros e da atividade sexual. A segunda razão prende-se com a crença de que o álcool e as drogas ilícitas têm efeitos positivos na performance e desinibição sexual. Aliás, Pechansky, Diemen e Genro (2001) referem, relativamente a este assunto, o aumento de comportamentos sexuais promíscuos quando as pessoas estão sob o efeito de substâncias, facto que faz aumentar o risco de infeção pelo VIH/SIDA.

Se o risco de infeção pelo VIH/SIDA associado ao consumo de substâncias pela via injetada está bem documentado e reúne consenso dentro da comunidade científica (Wodak & Mcleod, 2008; Negreiros, 2006; Aceijas, Stimson, Hickman, & Rhodes, 2004), o mesmo já não acontece em relação ao consumo de substância pela via não injetada, como é o caso do álcool.

Contudo, várias teorias sobre os efeitos do álcool nos comportamentos têm sido publicadas, e sustentam que as alterações provocadas pelos efeitos da substância álcool interferem na capacidade de tomada de decisões, levando muitas vezes a que as pessoas intoxicadas tenham comportamentos cujas consequências não mediram. Um dos modelos mais difundidos é o da miopia alcoólica (Alcohol Myopia) (Steele & Josephs, 1990). Este modelo sustenta que os prejuízos do álcool ocorrem ao nível da perceção e do pensamento (miopia) e não na capacidade farmacológica do álcool para provocar reações específicas ou diretamente nas expectativas associados ao uso de álcool (Steele & Josephs, 1990). A miopia alcoólica tem sido usada para mostrar o aumento dos comportamentos de risco, sustentando que as pessoas com miopia alcoólica desconhecem as consequências do seu comportamento, assim como a sua natureza arriscada.

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Apesar da associação entre consumo de álcool e o risco de infeção pelo VIH/SIDA ser referida em variada literatura (Baliunas, Rehm, Irving, & Shuper, 2010; Cardoso, Malbergier, & Figueiredo, 2008; Weinhardt, Carey, Carey, Maisto, & Gordon, 2001), a relação de causalidade direta entre o consumo de álcool e o sexo desprotegido é contestada (Shuper et al., 2010; Leigh & Stall, 1993; Weatherburn, et al., 1993), devido à multiplicidade de fatores interferentes, como as crenças, os contextos e a personalidade (Parry, Rehm, Poznyar & Room, 2009).

Na literatura podemos encontrar varias associações entre consumo de álcool e o risco de infeção pelo VIH/SIDA. Alguns estudos (Santos, et al., 2013; Patrick, O’Malley, Johnston, Terry-McElrath, & Schulenberg, 2012), comprovam esta associação de acordo com as quantidades de álcool ingeridas, ou seja, referem que o consumo nocivo aumenta o risco de infeção pelo VIH/SIDA. Outros usam a variável tempo para determinar esta associação, referindo que o consumo de álcool antes ou durante o ato sexual, aumenta a probabilidade de falha no uso do preservativo e nesse sentido, aumenta o risco de infeção pelo VIH/SIDA (Fisher, Cook & Kapiga, 2010). Encontramos, ainda, estudos mais generalistas que concluem que o consumo de álcool está associado a uma maior probabilidade de ocorrência de múltiplos parceiros, de falha no uso do preservativo e no uso dos serviços sexuais das(os) trabalhadoras(es) do sexo (Fritz, Morojele & Kalichman, 2010; Cardoso, Malbergier, Figueiredo, 2008).

É possível que os obstáculos ao consenso sobre a influencia do álcool nos comportamentos de risco tenham limitado a ação, tanto ao nível da prevenção, como da intervenção com a população consumidora de álcool, e especificamente com as pessoas com PLA. No entanto, a relação existe por mais complexa e indireta que possa ser, e parece-nos que não deve ficar esquecida.