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CAPÍTULO II – PARTE PRÁTICA

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

3. Pontes e cruzamentos do VIH/SIDA e dependência de substâncias

3.4. Risco, perceção de risco e comportamentos de risco

O exercício de compreensão do comportamento humano, especificamente os comportamentos relacionados com a saúde ou a doença, recai invariavelmente sobre três constructos fundamentais – o risco, a perceção do risco e os comportamentos de risco. Apesar de estarem intrinsecamente relacionados obrigam a uma reflexão repartida, no sentido de melhor percebermos que a sua dimensão subjetiva os tornam tão difíceis de medir, e por isso com uma validade, também mais subjetiva que objetiva.

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Hayes (1992, como citado em Deslandes, Mendonça , Caiaffa , & Doneda , 2002) referia que “ o conceito de risco é um campo académico que não tem fronteiras definidas, sendo comuns as lacunas de coerência conceitual nas distintas produções sobre a temática” (p.142). Este facto está espelhado nas diferentes definições encontradas, que vão desde as mais latas como “perigo de dano futuro” (Douglas, 1994, como citado em Joffe, 2003, p. 56) às mais específicas como “ medidas quantitativas das consequências do perigo, expressas como a probabilidade condicional de sofrer dano” (Bostrom 1997, p. 102). Obviamente que esta multiplicidade de definições tem implicações práticas, principalmente no que respeita à medição ou avaliação do risco. Comummente, a avaliação do risco centra-se em duas dimensões: a probabilidade e a magnitude do dano. Contudo, a forma como estas dimensões se articulam, acaba também por ter um peso na diversidade de definições e, nesse sentido, na convergência de um consenso sobre o que é e como se avalia o risco. Se até agora abordamos a definição do risco em termos gerais, quando nos focamos no risco em saúde percebemos que as suas definições acabam por se sobrepor ao constructo da perceção do risco, onde sobressaem noções como o julgamento da incerteza, ou então, incluindo explicitamente a palavra perceção para definir o risco. Um desses exemplos está espelhado na definição proposta por Menon, Raghubir e Agrawal (2008) que definem o Risco de Saúde como “Perceção da probabilidade subjetiva da ocorrência de um evento negativo relacionado com a saúde, para uma pessoa ou grupo de pessoas, durante um período de tempo especifico” (p. 982). Na realidade, nas definições de risco relacionado com a saúde, encontramos frequentemente o risco descrito como perceção de risco, provocando alguma confusão na distinção dos conceitos.

Na prática, constatamos que a noção de risco é conceptualizada de acordo com a área que o avalia, o que vai ao encontro de Almeida Filho (2000, como citado em Deslandes, Mendonça, Caiaffa & Doneda, 2002), que explora a definição do risco de acordo com três perspetivas. A primeira refere-se ao senso comum, que segundo o autor apresenta o risco como uma experiência pessoal e socialmente construída. A segunda é a perspetiva da epidemiologia, cujo risco é situado para além do individuo, estando centrado em conjuntos de pessoas ou comunidades. A última é a definição de risco segundo a perspetiva clínica, que de acordo com Filho (2000, como citado em Deslandes et al., 2002) usa o conceito de risco como ferramenta para a tomada de decisões, minimizando, deste modo, a subjetividade do raciocínio clínico. Neste

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enquadramento, o risco é aplicado ao individual, e pertencer a um denominado grupo de risco constitui-se como um sinal clínico passível de ser objetivado e, dessa forma, alvo de prevenção.

Dos três construtos abordados (risco, perceção do risco e comportamentos de risco) parece ser a perceção do risco o que mais notoriedade tem, não só pela quantidade de estudos e teorias onde assume a centralidade, mas também porque para além de ser o mais subjetivo dos três, parece ser o denominador comum entre os outros dois.

A perceção do risco, por vezes denominada de probabilidade, suscetibilidade ou vulnerabilidade percebida (Brewer, Weinstein, Cuite, & Herrington, 2004), adquire um papel central em alguns modelos conceptuais sobre comportamentos de saúde e doença, tanto numa perspetiva mais geral, como é o caso do Modelo de Crenças na Saúde (Strecher & Rosenstock, 1997) ou da a Teoria da Motivação para a Proteção (Rogers, 1975), como numa perspetiva mais especifica relacionada com o VIH/SIDA, subjacente ao Modelo de Redução de Risco da Sida (Catania, Kegeles & Coates, 1990).

Segundo Sjöberg, Moen, Rundmo (2004), a perceção do risco consiste na “avaliação subjetiva da probabilidade de um determinado tipo de acidente acontecer e o quanto estamos preocupados com as suas consequências” (p.8). Apesar da subjetividade do constructo e de todas as dimensões que o influenciam, muitos estudos referem a sua importância na determinação dos comportamentos de risco (Napper, Fisher, & Reynolds, 2012; DiClemente, Brown, Beausoleil, & Lodico, 1993).

A sua multidimensionalidade transparece nas várias definições encontradas, demonstrando que a perceção do risco é mais sensível ao contexto do que as medidas formais de risco (Bostrom, 1997). Este facto está espelhado na definição de Ann Bostrom (2008) que refere que a perceção de risco são “crenças, atitudes, juizos e sentimentos de uma pessoa, assim como os valores e disposições sociais ou culturais mais amplas que as pessoas adotam, perante os perigos e os seus benefícios” (p. 102). O que retemos desta definição é que uma variedade de fatores, eles próprios carregados de subjetividade, pesam na determinação da perceção de risco, e que possivelmente por essa razão ela é tão difícil de medir. Ainda assim, a perceção de risco sustenta muitos modelos de compreensão dos comportamentos, que cimentam a sua teoria com base na concepção de que a perceção de risco aumentada deve encorajar as pessoas a tomar medidas para reduzir o seu risco (Brewer, Weinstein, Cuite, & Herrington, 2004). Esta conceptualização da perceção de risco motivou vários estudos e investigações na área da

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saúde em geral e especificamente na área do VIH/SIDA.

Num estudo com uma amostra nacional (N=1000), Amaro, Frazão, Pereira e Teles (2004) fazem a distinção entre a perceção de risco de infeção pelo VIH/SIDA em termos gerais e da perceção individual de risco, demonstrando que a perceção do risco geral era elevada, ou seja, que os participantes consideravam que havia grande risco de se infetarem em Portugal (68%). Contudo a perceção individual desse mesmo risco era mais baixa (37%), o que precipitou a conclusão de que algumas crenças poderiam estar na base desta perceção individual de risco diminuída.

Assumindo a perceção do risco como um constructo importante na compreensão dos comportamentos, que colocam as pessoas em risco de se infetarem com o VIH/SIDA, torna-se essencial entender que fatores pesam na sua determinação, ou quais os que têm maior peso. Para Sjöberg et al. (2004), a perceção de risco vai além do indivíduo, e é uma construção social e cultural que reflete valores, símbolos, história e ideologia. Schmälzle, Schupp, Barth e Renner (2011) afirmam que a perceção do risco representa um “fenómeno mundano e altamente contextualizado” (p.1) e que os processos implicitos, como por exemplo, as impressões sobre a segurança do parceiro, são uma parte importante da perceção do risco. Todavia assumem que a dificuldade em medir e quantificar os aspetos implicitos no processamento de informação não tem motivado a investigação neste sentido, e por isso, o suporte empirico ainda é escasso.

Apesar de parecer uma perspetiva inovadora de compreensão da perceção do risco, um estudo publicado por três dos autores anteriores (Renner, Schmälze & Schupp, 2012) sobre as impressões individuais sobre a segurança ou o risco dos outros, revela um constructo já menos recente – a perceção de controlo, traduzido na medida em que uma pessoa quando acredita que o seu/sua companheiro(a) é saudável (impressão de salubridade do companheiro) sem ter provas e dados objetivos para o fazer, apenas referências subjetivas que em nada estão correlacionadas com a salubridade, mas que estão claramente difundidas no senso comum, como por exemplo, o aspeto atrativo ou a responsabilidade, acredita que é capaz de controlar o risco. Ou seja, crê que a sua capacidade de detetar estes traços característicos subjetivos são suficientes para validar a sua perceção de segurança do parceiro (Renner et al., 2012).

Como já referimos, a perceção de controlo não é um constructo novo. Thompson, Kent, Thomas e Vrungos (1999) quando abordam as questões das estratégias de prevenção do VIH/SIDA como realistas e ilusórias, focam-se também no

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conceito de perceção de controlo ilusório como determinante dos comportamentos de risco.

Não há dúvidas que a perceção do risco foi alvo de várias análises e construções teóricas que sustentaram muita da investigação sobre comportamentos de risco. Alguns exemplos de modelos conceptuais sobre perceção de risco são o modelo das três hipóteses da perceção de risco e comportamentos de risco (Brewer, Weinstein, Cuite & Herrington, 2004) e o modelo dos antecedentes e consequentes da perceção do risco (Menon, Raghubir & Agrawal, 2008), modelos sobre os quais não nos iremos debruçar, mas que genericamente tentam sustentar a importância da ligação deste construto aos comportamentos de risco.

Constatamos assim, que tanto o risco como a perceção de risco assumem significados diferentes em diferentes contextos, e que adquirem reposicionamentos e recomposições a partir do desenvolvimento e das dinâmicas que estabelecem, e por isso, não podem ser compreendidos encerrados em si mesmos.

Seguindo esta linha de pensamento, pareceu-nos importante apresentar um modelo compreensivo que traduz a subjetividade e a complexidade da perceção do risco e que poderá ser útil para a melhor compreensão deste construto. O modelo é proposto por Rohrmann (2008), e dá conta da perspetiva multidisciplinar que a avaliação do risco deve ter, considerando, deste modo, as várias facetas que são necessárias contemplar para a compreensão deste constructo. Constructo este que é definido pelo autor (Rohrmann, 2008) como “a avaliação e o juízo que uma pessoa faz acerca dos perigos a que possa estar exposta” (p.2). A perceção do risco é para Rohrmann (2008) uma interpretação do mundo, baseada na experiência e em crenças, que estão enraizadas nas normas, sistema de valores e na cultura das sociedades. A sua importância reveste-se da sua capacidade em influenciar tanto as decisões sobre a aceitação do risco, como os comportamentos. No entanto, faz uma ressalva afirmando que nem a perceção do risco, nem os comportamentos perante o risco devem ser confundidos com o comportamento atual, referindo que a avaliação do risco é complexa e que depende das características do perigo e de filosofias pessoais. O modelo conceptual da perceção de risco de Rohrmann (2008), esquematiza, de forma bastante clara, estas múltiplas influências que interferem na resposta à exposição ao risco (figura 6).

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