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CAPÍTULO II – PARTE PRÁTICA

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. Sida – Uma síndrome na idade adulta

1.2. O início de uma epidemia

A história da descoberta do VIH tem contornos de grande controvérsia: enquanto alguns cientistas trabalhavam no sentido de descobrir que doença era esta, a nível social aconteciam algumas mudanças pautadas pela discriminação e preconceito, e que ainda hoje se mantêm.

Em 1981, surgiram vários casos de um cancro raro, o Sarcoma de Kaposi (mais comum em pessoas idosas) em jovens homossexuais do sexo masculino. Simultaneamente, o número de casos de uma infeção pulmonar (Pneumocystis carinii pneumonia ou PCP) igualmente rara, aumentava também, provocando um alerta no seio da comunidade médica e científica (Avert, s/d; Hymes, et al., 1981).

Nos meses que se seguiram, o número de casos identificados cresceu, e várias denominações foram atribuídas a uma nova doença que seria responsável pelo surgimento de cancros e infeções raras. Como pouco ou nada se sabia acerca desta suposta nova entidade nosológica, e uma vez que o número de casos detetados aumentava significativamente a cada dia, as preocupações centravam-se na

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contaminação, ou seja, em perceber de que forma ela podia ser transmitida por uma pessoas sem sinais e sintomas (Avert, s/d).

Nesta altura, ainda não era evidente que a etiologia da nova doença derivava de um único agente. Alguns factos e circunstâncias provocavam confusão na determinação da causa. Pela deteção de uma maior incidência de casos em homens homossexuais, acreditava-se que esta era uma doença relacionada com o estilo de vida e as práticas sexuais desta população, chegando mesmo a elaborar-se várias teorias que sustentavam este facto. Uma das mais difundidas foi a que postulava que o esperma penetrava nas células do sangue iniciando um processo autoimune; outra defendia que o sistema imunitário colapsava devido à sobrecarga de infeções recorrentes (Kallings, 2008). Apesar de, nos finais de 1981 e início de 1982, ter ficado claro que esta doença afetava outros grupos de pessoas, quando os primeiros casos de PCP2 detetados em consumidores de drogas injetáveis foram reportados, revistas e jornais médicos continuavam a enfatizar a relação desta doença com os homossexuais, publicando denominações como "gay compromise syndrome" (Brennan & Durack, 1981), GRID - gay-related immune deficiency (Altman, 1982) ou “gay cancer” (Dawson, 1999). Ainda no mesmo ano, são notificados casos com a doença entre haitianos e hemofílicos (Avert, s/d).

A ocorrência da doença em pessoas que não eram homossexuais tornou as designações associadas à orientação sexual redundantes. Em setembro de 1982, após se concluir que o que provocava as doenças oportunistas era o sistema imunitário, o CDC (Center for Diseases Control and Prevention) define a designação de SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida)3.

A descoberta de novos casos em pessoas não homossexuais alargou o estigma e a discriminação deste grupo específico para o que ficou, na altura, conhecido como o “4-H Club” ou “Doença dos quatro H”, estipulando que o risco de SIDA estava circunscrito a homossexuais, heroinómanos, hemofílicos e haitianos. O facto de os hemofílicos adquirirem a doença através de transfusões sanguíneas provocou alarme global, começando a surgir nos meios de comunicação referências à doença como “Killer Blood” (Jenkins, 2009).

2 Pneumocystis Carinii Pneumonia

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Os primeiros indícios que a SIDA poderia ser provocada por um retrovírus surgiram em 1983, quando uma equipa do Instituto Pasteur identificou um vírus com atividade de transcrição reversa num nódulo linfóide de um paciente com Linfoadenopatia Persistente Generalizada (LPG). As características do retrovírus descritas por esta equipa do Instituto Pasteur coincidiam com as de um vírus já identificado, o da leucemia humana de células T (HTLV), o que levou os investigadores a pensar que o vírus isolado do gânglio do paciente pertencia a esta família de retrovírus já conhecido (Levy, 2008).

No entanto, a probabilidade do HTLV ser o agente etiológico da SIDA era pequena, pois o seu baixo nível de replicação nas células e a sua relação próxima da membrana celular não coincidiam com o vírus encontrado. Além do mais, o HTLV não mata linfócitos, muito pelo contrário aumenta o seu crescimento, pelo que foi descartada a possibilidade da SIDA ser provocada pelo HTLV (Levy, 2008).

Ao mesmo tempo que se tentava descobrir o agente etiológico da SIDA, foram reportados casos de mulheres com SIDA, sem os fatores de risco até então descritos, começando a levantar-se a hipóteses de que a transmissão poderia ocorrer entre heterossexuais.

Entretanto, a investigação continuava, e posteriormente Luc Montagnier e os seus colaboradores ao estudarem a associação entre a LPG e o agente causal da SIDA, chegaram à conclusão que o retrovírus humano possuía características muito particulares. Ele crescia e alcançava níveis muito elevados nas células CD4 até matá-las (ação exatamente oposta à do HTLV). Mais tarde denominam o vírus encontrado de VAL (Vírus Associado à Linfoadenopatia) (Levy, 2008).

Na mesma época (1983/84) mas do outro lado do oceano (EUA) Robert Gallo e os seus associados reportaram a caracterização de outro retrovírus diferente do HTLV, que isolaram a partir de células de pacientes adultos e pediátricos com SIDA e que chamaram de HTLV-III. Este novo vírus produzia uma reação cruzada com algumas proteínas do HTLV-I e II particularmente com a p24, por isso decidiram incluí-lo no grupo HTLV (Levy, 2008).

A causa da SIDA tinha, finalmente, sido descoberta pelas equipas de Luc Montagnier em França e de Robert Gallo nos EUA, ficando acordado que os franceses

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foram os primeiros a relatar a descoberta do vírus, e os americanos os primeiros a mostrar de forma convincente que o vírus era a causa da SIDA (Kallings, 2008).

Apesar do progresso que estava a ser conseguido pelos cientistas, havia uma preocupação crescente sobre a transmissão, e não apenas em relação ao fornecimento de sangue. A possibilidade de uma transmissão denominada, na altura, de doméstica poderia estar a ocorrer e a infetar crianças, sustentando que a relação sexual, o consumo de drogas ou o contacto com produtos derivados do sangue não seria necessário para que ocorresse transmissão (Oleske, et al., 1983), facto que foi corrigido pelo CDC que abordou, pela primeira vez nesse ano, a possibilidade da transmissão vertical (MMWR Weekly, 1983).

A classificação e designação científica do fenómeno ocorreram em 1984, pelo comité de nomenclatura do National Institute of Health (NIH) que concordou em atribuir o nome de VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana). Iniciava-se também a corrida pela descoberta de uma cura.

No ano seguinte, em 1985, a equipa do Instituto Pasteur com a colaboração de investigadores portugueses, detetam o segundo vírus da SIDA, o VIH-2, em doentes oriundos da Guiné-Bissau, sendo esta estirpe do vírus menos mortal e também a menos disseminada.

Só nesse ano é que se conhece a totalidade das formas de transmissão do vírus, com a confirmação da existência de transmissão vertical, relatada em vários pontos do mundo, ao mesmo tempo que múltiplos países começam a considerar a SIDA como um problema de saúde pública. No entanto, a demora em se concluir que todas as pessoas podiam estar em risco, provocou um ambiente social pautado pelo medo, que à custa da desinformação recebida pelos meios de comunicação social, era profundamente discriminador e preconceituoso, e que se mantém, de certa forma, até aos dias de hoje.