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CAPÍTULO III: A PARTICIPAÇÃO SOCIAL

2. Uma pedagogia da participação

2.1. Contexto da experiência

Partindo da hipótese de que a PARTICIPAÇÃO DOS HABITANTES EM DECISÕES DE URBANISMO em determinada área pode CONSTITUIR-SE EM UM APRENDIZADO DE CIDADANIA” (Nunes, 2002, p. 11) a autora, após explicitar os conceitos-chave como participação, decisões de urbanismo, aprendizagem e cidadania, expõe alguns pressupostos teóricos, a exemplo de que:

- O urbanismo, com visão de conjunto, pode incitar os moradores a se reconhecerem como grupo de interesses em torno de sua realidade;

- A larga duração do processo participativo de discussão e de negociação das decisões de urbanismo, além de favorecer a assimilação de dados, pode tornar compreensíveis aos habitantes os desafios do urbanismo;

- O diálogo no momento do processo participativo pode reduzir, com técnicas adequadas, o afastamento lingüístico, simbólico e cultural existente entre os habitantes, os técnicos e administradores públicos.

- A democratização das decisões urbanísticas permite a entrada de novos protagonistas onde o habitante participante passa de um estado de espectador ao de ator da sua comunidade;

- A participação consiste em um aprendizado dos mecanismos democráticos e das regras, geralmente pouco conhecidas das populações excluídas, que lhe são implícitas e que tem conseqüências diretas no exercício da cidadania;

- A cidadania é traduzida em urbanidade e engajamento pois entende-se que o ato de se engajar em discussões implica exercício e/ou aprendizagem da cidadania;

Além disto, “há a idéia geral de que as discussões sobre urbanismo podem constituir-se, para os moradores de uma comunidade, em um meio efetivo de tomar conhecimento dos atores e dos processos da dinâmica social...” (Nunes, 2002, p. 13).

Nas influências teóricas, a autora cita o urbanismo participativo com novos tipos de representação do cidadão para dar voz aos habitantes através de associações, comitês e conselhos, constituindo uma lógica mais próxima do cidadão, onde participação e cidadania aparecem sempre juntas. “Logo, levar os moradores de uma comunidade a uma participação nas decisões de urbanismo significa, implicitamente, dar-lhes poder de decidir onde e como gastar o dinheiro público. A participação é assim portadora de uma esperança de mudança das prioridades dos investimentos e da ação do Estado para o atendimento das carências da população desfavorecida” (Nunes, 2002, p. 14).

Em seguida, e sempre nas influências teóricas, a autora cita o intelectual orgânico Gramsciano, que preconiza a necessidade de uma intervenção exterior para a transformação de uma dada situação e da existência de uma ligação estreita entre os intelectuais e os oprimidos. Para Gramsci, intelectual e militante comunista italiano do início do século XX, o intelectual orgânico é um catalisador de mudanças e não a vanguarda “iluminada” que chega com um projeto pronto a ser aplicado sem contestação.

Realizar transformações na sociedade e como estabelecer relações em seu seio passava, para Gramsci, pela negociação e compromisso, por isso criou os conceitos de “consentimento ativo” que “seria a atitude de aprovação consciente e de participação em um projeto baseado em compromissos da parte de cada uma das pessoas envolvidas” (Nunes, 2002, p. 15 – 16) e de “vontade coletiva” que “seria o objetivo atingido após um processo de negociação de interesses entre os sujeitos do projeto hegemônico” (Nunes, 2002, p. 16).

Terceira influência teórica citada pela autora trata da comunicação de intercompreensão de Habermas. As relações entre habitantes, animadores, técnicos e autoridades públicas, segundo a abordagem habermaniana, podem ser classificados em dois tipos: a comunicação que visa a um acordo partilhado entre os interlocutores (intercompreensão) e a orientada pela obtenção da aceitação da idéia pelo interlocutor (estratégia). “Essa diferenciação remete aos participantes da comunicação: no primeiro caso, trata-se de uma relação SUJEITO-SUJEITO e, no segundo, uma relação SUJEITO-OBJETO”. (Nunes, 2002, p.

17). Para ultrapassar a ambivalência, que na prática existe entre as duas comunicações, a autora cita Jeanneret: “Considerar o outro como um sujeito e não como um objeto é o que distingue a comunicação de intercompreensão de uma simples manipulação” (Jeanneret, 1992, in Nunes, 2002, p. 17). Entre as condições necessárias para que exista uma relação de intercompreensão entre os parceiros do processo participativo, a autora cita a “exigência recíproca de validade em três campos, conforme estabelecido por Habermas: verdade, justiça, sinceridade” (Nunes, 2002, p. 17).

A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire é a quarta influência teórica citada pela autora, fundamentando-se no diálogo, na qual “a aprendizagem deveria ser efetuada conjuntamente pelo educador e pelo educando” (Nunes, 2002, p. 18). Freire propõe uma “educação de problematização” contrapondo-se á “educação bancária” e no seu método de alfabetização, as bases são a vida cotidiana do aluno, através das “palavras geradoras”, o diálogo incitando a fala dos participantes no grupo e a passagem à consciência crítica, ultrapassando assim a consciência ingênua, levando à “conscientização”. “Quando o oprimido dá espaço à própria voz, reconhece o valor de sua ação no mundo e se dá conta que ele transforma este mundo, ainda que modestamente, dia após dia. À medida que se apercebe de sua condição de oprimido e do seu valor como homem, passa a ter vontade de mudar este estado de coisas. Esta transformação é chamada de conscientização” (Nunes, 2002, p. 20).

2.1.2. Contexto material

Na descrição do contexto material da experiência, a autora começa descrevendo o Brasil, mostrando a sua sociedade dual “onde a opulência e a alta tecnologia convivem lado a lado com a pobreza e o atraso sócio-econômico” (Nunes, 2002, p. 23), trazendo em seu bojo a vivência do autoritarismo e do paternalismo fazendo com que “a cidadania é uma construção não concluída no Brasil” (Nunes, 2002, p. 24). Mesmo permanecendo um dos países mais desiguais do mundo, e após o retorno à via democrática e a contestação dos anos 90, passa a existir uma sensibilização crescente para os problemas sociais através da

busca de uma “cidadania para todos”, onde agentes sociais como movimentos, algumas prefeituras, ONGs e universidades contribuem para mudar o quadro do país.

Salvador, hoje terceira municipalidade brasileira em população, “onde as classes desfavorecidas estão relegadas à periferia e às ilhas de pobreza ao lado doa bairros ricos” (Nunes, 2002, p. 25), é confrontada com o problema específico dos desabamentos de terra nas encostas e de grandes inundações, provocadas pelas chuvas fortes e pela ocupação inadequada das colinas escarpadas. As tragédias resultantes deste estado de coisas exigia da Prefeitura, que ignorou a situação durante muito tempo, intervenções de grande porte, onerosas e demoradas que, nos últimos anos, em face do clamor da sociedade” (Nunes, 2002, p. 26) começaram a ser realizadas.

O bairro onde se desenrolou a experiência, Vila Verde, foi construído pela Prefeitura para atender uma população desabrigada depois dos graves desabamentos de terra e de residências ocorridos durante as chuvas de 1995.

O aglomerado urbano, situado numa colina de aparência quase rural na região de Mussurunga, onde se concentra grande parte das favelas e das invasões da cidade, é

formado por cerca de 500 lotes de 84 m2, numa superfície total de mais ou menos 15 ha,

com duas vias de acesso e cerca de 20 caminhos que descem a encosta em direção aos vales alagados. Os primeiros habitantes chegaram em dezembro de 1995 e pouco a pouco, até o final de 1996, se formou o contingente atual.

Para enriquecer a pesquisa e ajudar a redefinir as estratégias e o método do projeto participativo em Vila Verde, a autora aplicou vários questionários e utilizou a observação pessoal, analisando o perfil econômico e social dos habitantes, as suas mentalidades e comportamentos e fez um reflexão sobre a chamada ‘estigamatização dos pobres” a partir da literatura, mas também da experiência de campo. A escravidão, a dependência decorrente de um estado patrimonialista, as idéias religiosas são dados históricos que ajudam a compreender a estigmatização dos pobres na sociedade brasileira. Se a estigmatização começa pelo visual como a cor da pele e os cabelos cacheados, as roupas, a

saúde, outros sinais podem ser perceptíveis como o lugar onde as pessoas se encontram, o modo de falar ou o desconhecimento de coisas simples.

Mas, além de tudo, “a estigmatização é uma relação social” (Nunes, 2002, p. 53) com o desejo da elite de não se confundir com os pobres, consolidando a diferença de classe, chegando a estabelecer estratégias para evitá-los, ignorá-los ou afastando-se deles.

Diante disto, existe a reação conformista ao modelo social ou uma reação mais crítica, de resistência ou de revolta. Surge a atitude de “aceitação” tendo como tendências decorrentes a “vitimização” com a mendicância e a “compensação por ganhos secundários” (Nunes, 2002, p. 55). Uma “correção de maneira indireta” ou a crença em uma “benção secreta” – Cristianismo, Igrejas pentecostais – pode ser encontrada no esforço para se sair da dificuldade material e do estigma. Existe, segundo a autora, um “limiar de resignação” que define um limite de miséria que as pessoas podem suportar, todavia, os problemas situados antes desse limite, provocam normalmente a revolta. “Assim, quando houve uma interrupção no fornecimento de água, por exemplo, um motim se produziu no bairro” (Nunes, 2002, p. 56).

“É a partir dessa percepção dos pobres do seu estatuto na sociedade que pode nascer uma consciência dos fatores estruturais que produzem sua condição de oprimidos (ou de explorados)” diz Nunes, citanto isto como ponto de partida da formação de uma consciência de classe de que fala Thompson e da conscientização de Paulo Freire. Mas, para que isso possa acontecer, diz o mesmo Freire, seria necessário ultrapassar todas as consequências sociais da interiorização do estigma, definidas por Nunes como sendo a auto-imagem negativa do grupo, o apoio a líderes fortes, a inveja despontada pelos líderes que se distinguem, a inexperiência em ações coletivas” (Nunes, 2002, pp. 56 – 64).

2.2. A descrição do método

2.2.1. As atividades pedagógicas

As atividades pedagógicas foram concebidas e organizadas sem a participação dos habitantes e tinham como objetivo iniciar as pessoas nas palavras e lógicas do urbanismo, assim como nos rituais da democracia direta” (Nunes, 2002, p. 65).

Permitir aos participantes experimentarem o fato de ser parte integrante de um coletivo maior, compartilhar preocupações comuns ao longo do tempo, inspirar neles a vontade de agir coletivamente, sugerir sua organização e permitir que, juntos, dessem os primeiros passos neste sentido foram também objetivos das chamadas “atividades pedagógicas”. Quatro atividades pedagógicas foram desenvolvidas e as sessões eram sempre uma experiência de ação, de início física e em seguida intelectual: discutir um objetivo e votar. Atrair todos os habitantes e não só aqueles que já tinham alguma experiência coletiva, fazer o grupo vivenciar experiências agradáveis e bem sucedidas, oferecendo assim a possibilidade de um reforço da autoconfiança para superar os efeitos da estigmatização que sofrem os pobres, fazia parte dos objetivos de todas as atividades.

Partindo sempre diretamente de questões gerais, do bairro e do coletivo dos habitantes, mas tendo o cuidado de escutar com atenção o relato pessoal de cada um, as atividades seguiam uma hierarquia que ia da mais simples à mais complexa e da mais lúdica à mais engajada e “deveriam ter sempre um aspecto de novidade, de jogo, mas se prestando, também, à aprendizagem e à experiência de autonomia” (Nunes, 2002, p. 67).

As atividades pedagógicas foram a confecção da maquete do bairro, a localização do lote de cada um na grande planta do bairro, a discussão das prioridades de intervenção da Prefeitura e a discussão das regras do mutirão dos passeios.

2.2.2. As ações coletivas

Depois das atividades pedagógicas, seguiram as ações coletivas, também em número de quatro: a criação da associação de moradores, a eleição para escolha do nome do bairro, a organização da escola comunitária e da creche comunitária.

Todas basearam-se nas iniciativas dos habitantes e foram impulsionadas pelos animadores de fora “visando trazer melhorias concretas em suas condições de vida” (Nunes, 2002, p. 65), motivando as pessoas para trabalharem juntas e encontrando objetivos mobilizadores e líderes para impulsionar e organizar as ações.

O “trabalho comunitário”, etapa superior da Pedagogia da Participação, pois este prescinde da animação externa e tem caráter duradouro, seria então a sobrevivência das ações coletivas realizando o objetivo que era de alcançar o engajamento e a independência, o que “significaria que os habitantes teriam passado por um processo pessoal e coletivo de conscientização e superação das condições adversas à participação” (Nunes, 2002, p. 65). “É possível verificar” diz Nunes “que elas (as ações coletivas) se desenvolveram no sentido de uma maior autonomia dos habitantes envolvidos, que tomaram a direção dos acontecimentos de forma gradativa, mesmo reconhecendo-se idas e vindas neste processo” (Nunes, 2002, p. 83).