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CAPÍTULO VIII: OPÇÃO PELO SERTÃO E LUTA PELA CIDADANIA

1. Apresentação de Leôncio Manoel de Andrade

4.1. A dificuldade da vida no sertão nordestino e o êxodo para São Paulo

“... e as coisas muito difíceis, logo a coisa aqui eram difíceis, era difícil, a gente trabalhar e comia muito feijão puro, era difícil a vida né, e meus irmãos foram indo, foram indo...” (HV, 01). Leôncio não esconde, ao longo de sua narração de vida, as dificuldades de sobreviver no clima semi-árido nordestino. Em vários trechos da narração, o locutor vai enfatizar esta dificuldade com palavras fortes: “... passamos uma vida meia amarga porque as coisas antigamente não eram fáceis, eu quando nasci, meu irmão mais velho acho que logo já foi para são Paulo...” (HV, 01) e relacionar a dureza da vida com as condições climáticas do semi-árido “... a gente vive, né, uma vida também que não é fácil, nossa região é uma região carente de chuva, muito seca...” (HV, 03), insistindo sobre o caráter cíclico das secas: “... mas, se tem um ano bom de chuva tem dois anos que a gente passa dificuldade né, dificuldade financeira...” (HV, 03). Além das dificuldades decorrentes do clima, o narrador toca no assunto das famílias numerosas que durante séculos caracterizou o meio rural, o que rendia a vida mais árdua ainda: “... meu pai teve 10 filhos...” (HV, 01) e “a coisa não é fácil para quem é pai de família, cuidar de sua família direitinho, fazer tudo pelo filho pra ver se não falta nada...” (HV, 03).

Uma das conseqüências mais generalizadas de todas as dificuldades descritas por Leôncio e relacionadas à vida no sertão é, sem dúvida, o êxodo rural em grandes proporções que se traduz através de um fluxo migratório que leva a São Paulo parte considerável da população nordestina. Não foi diferente na família de Leôncio: “... eu, o último dos homens, que nós éramos 6 mulheres e 4 homens, e só tinha 3 meninas mais novas do que eu e acabaram todos indo pra lá...” (HV, 01) e nem nas famílias do seu povoado: “... também andava na casa dos meus amigos (em São Paulo), né, as pessoas do Salgado, ...” (HV, 25). O fato é que as dificuldades inerentes à vida no semi-árido nordestino somados ao êxodo dos irmãos e de muitos amigos movidos por “aquela coisa de sair para a cidade grande né, aquela ambição, todo mundo, a gente só ouvia: ‘não, vou ter 18 anos, vou direto para São Paulo...” (HV, 01) fizeram com que Leôncio acabou sucumbindo: “... e eu fiquei nessa também, né, não tinha muita vontade, não, mas tinha um pouco de ambição...” (HV,01). Já demonstra naquele tempo o pouco entusiasmo por São Paulo que

acabará contribuindo mais tarde pela opção de voltar e fazer sua vida por aí mesmo no rincão natal.

Mas, se o fato de decidir pela ida a São Paulo constituir já uma ação que surge da iniciativa de Leôncio, outra segue imediatamente que o faz voltar “eu fui com 18 anos, mas fui lá só pra passear e voltei...” (HV, 01) e como se a primeira experiência não foi suficiente para tomar rumo na vida, ele vai repetir a dose o ano seguinte “... e com 19 anos eu acabei indo também, mas nunca gostei, acabei voltando, já tinha um envolvimento com a Igreja e com alguns movimentos na época” (HV, 01).

Esta época da vida de Leôncio que definimos na bioscopia como a fase II “Juventude e descobertas” será muito importante porque além de ter rompido com o isolamento cultural e físico da fase de infância e da adolescência na roça através de suas primeiras viagens a São Paulo, surge a descoberta de uma Igreja diferente e dos movimentos sociais que passaremos a analisar no item 3 deste ponto. Esta busca de rumo e de afirmação na vida faz objetos de comentários um tanto desabusados que comprovam uma certa instabilidade e hesitação em relação a decisões que envolvem o futuro de Leôncio: “ É com minhas idas e voltas né, que com 18 anos já comecei assim, pra São Paulo, ia e voltava, mas eu acho que, e aí também descalqueia um pouco a vida da gente neste sentido, né este caminho, você indo e voltando, você perde um pouco do sentido né” (HV, 08).

Esta fase será, portanto, estruturante para a formação de Leôncio que ainda não se apropriou plenamente do poder sobre a mesma. Precisar-se-á de um certo tempo para que se operem as transações que possibilitem a passagem da hetero e da ecoformação para a autoformação.

Este vai e vem a são Paulo ainda não vai acabar, mas depois destas duas primeiras viagens podemos dizer “relâmpago” à capital paulista, Leôncio toma uma decisão baseada “Dentro da questão financeira... porque pedra que se mexe não se cria limo, né, é como na vida da gente eu cheguei à conclusão que eu tinha que morar ou lá ou tinha que morar aqui” (HV, 22) e “trabalhei duas vezes em São Paulo, trabalhei de 83 a 85 e de 87 a 90” (HV, 22). A intenção era clara, a

plano de morar lá (em São Paulo) (HV, 22). Aí sim já aparece, a nosso ver, uma manifestação clara da transformação do acontecimento em ação, uma ação planejada, com objetivo de preparar a volta definitiva e de poder dizer: “E São Paulo, né, além de ter me ajudado muito financeiramente aqui, né... então foi isto que acabou me ajudando, se eu tinha criação não vendia, se eu tinha roça eu não vendia, eu ia e voltava sempre, vinha trazendo um dinheirinho e as muitas coisas, então quando as coisas estavam aqui em pé acabava ajudando na questão financeira...” (HV, 22).

Entre os dois períodos de trabalho em São Paulo, Leôncio fica dois anos inteiros na Bahia “... e passei dois anos aqui, até dois anos de grandeza, mas pra dizer que só o outro, só tinha feijão e farinha, tinha muito...” (HV, 23), como se fosse para matar a saudade e testar a si próprio para ver se já estava pronto para ficar, mas tem de admitir “... agora outra coisa não tinha, não tinha como ganhar dinheiro, e eu optei por ir em São Paulo de novo...” (HV, 23).

Finalmente Leôncio confirma o que vinha se desenhando há tempos e que demonstra que realmente vem seguindo uma estratégia que visa o objetivo fixado, ou seja, já volta definitivamente à vida no sertão: “... mas trabalhei lá três anos, Thierry, a questão financeira me ajudou muito, acabei comprando várias coisas aqui (em Salgado), lá não (São Paulo), terreno, roças, madeiras e coisas de casa e acabei quando foi em 90 eu optei por vir embora...” (HV, 23). O narrador ainda acrescenta para mostrar que a decisão não foi fruto de um sentimento passageiro: “... e só voltar (a São Paulo) por causa da precisão, mas não tinha mais plano de voltar, é de me afirmar aqui né...” (HV, 23). É interessante notar que a temporalidade é fator de peso no processo de tomada de consciência e finalmente de decisão na vida de Leôncio. Passaram-se vários anos entre a primeira ruptura com a infância e a adolescência na roça representada pela primeira viagem a São Paulo e a opção da volta definitiva para construir seu futuro.

Esta decisão vai ter um peso imenso na vida do narrador, tanto do ponto de vista familiar quanto profissional e social e ele arca com as conseqüências dela, dando prova de que houve autoformação e apropriação da mesma, transformando meros acontecimentos em ações

estruturantes para o resto da vida, gerindo estas mudanças: “... e aí vim e não me arrependi não, tou aqui até hoje...” (HV, 23).