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Contexto para o desenvolvimento da Servitização

3. REVISÃO DA LITERATURA

3.1. Contexto para o desenvolvimento da Servitização

O aumento da participação do setor de serviços no produto interno bruto (PIB) e na geração de empregos, na maioria dos países, tem despertado a atenção de pesquisadores e gestores de empresas. Empresas que tradicionalmente atuavam no mercado com estratégias centradas em produtos começam a transformar seus modelos de negócios, passando a oferecer cada vez mais serviços aos seus clientes, muitas vezes sem transferir para estes últimos a propriedade do

produto (e.g. Baines et al., 2009; Chesbrough, 2011; Fisk, Brown, & Bitner, 1993; Gebauer, Bravo‐Sanchez, & Fleisch, 2008).

Pode haver motivações estratégicas, financeiras e mercadológicas para que as empresas aumentem a participação dos serviços nos seus negócios. Muitas dessas empresas têm procurado se aproveitar de serviços, antes vistos apenas como um “mal necessário”, para tentar se aproximar mais de seus clientes e, dessa forma, identificar novos nichos de negócio que possam diferenciá-las dos seus concorrentes, muitas vezes transformando a sua imagem de apenas fabricantes de produtos, em também fornecedoras de serviços.

Porém, antes de se aprofundar na literatura sobre servitização e PSS, convém abordar primeiramente a conceituação de serviços na literatura, e a diferenciação entre estes e os produtos. De acordo com Spring e Araujo (2009), durante muitos anos os serviços foram tratados como uma categoria “residual” – tudo aquilo que não se pudesse ser enquadrado em agricultura, mineração, construção, utilidades ou manufatura, tendo sido definidos na maioria das vezes pelo que eles “não são” – não armazenáveis, intangíveis, não transportáveis, etc., apesar de esta categoria “residual” representar a maior parte do PIB e dos empregos, pelo menos nos países desenvolvidos.

A partir de definições constitutivas, emerge uma visão de serviço usada consistentemente há décadas na literatura, conhecida por IHIP e caracterizada pelos atributos (i) intangibilidade; (ii) heterogeneidade; (iii) inseparabilidade (produção e consumo simultâneos) e (iv) perecibilidade (não armazenável e/ou não transportável) (Lovelock & Gummesson, 2004). No entanto, pelo fato de estar enraizada no pensamento dominante de produto, esta definição é criticada por ser limitada e obsoleta (Edvardsson, Gustafsson, & Roos, 2005). Apesar da sua ampla utilização, para Spring e Araujo (2009) a definição de serviço baseada nas características IHIP é incompleta e pode levar a equívocos. Os autores defendem a importância de se adotar uma definição mais abrangente, como aquela apresentada por Gadrey (2000):

Qualquer compra de serviços por um agente econômico B (seja indivíduo ou organização) significa, portanto, comprar da organização A o direito de uso, em geral por um período de tempo específico, de uma capacidade técnica e humana, de propriedade ou controlada por A, para produzir efeitos úteis no agente B, ou em bens C, de propriedade do agente B, ou pelo qual este seja responsável (pp. 382–383).

Para melhorar o entendimento desta definição de Gadrey (2000), Spring e Araujo (2009) ilustram sua interpretação com o que eles denominam “triângulo do serviço”, reproduzido na Figura 3-2.

Figura 3-2: Triângulo do serviço de Gadrey. Fonte: traduzido de Spring e Araujo (2009, p. 449).

Por outro lado, Meirelles (2006) defende que a questão fundamental para se analisar o conceito de serviço é compreender que este é essencialmente diferente de um bem ou produto. Para esta autora, “serviço é trabalho em processo, e não o resultado da ação do trabalho; por esta razão

elementar, não se produz um serviço, e sim se presta um serviço” (p. 134) (grifado aqui). Ela

defende que essa nova abordagem conceitual pode mudar significativamente a forma com que encaramos os serviços, tanto em termos de classificação e quantificação, quanto em relação ao seu papel na dinâmica da economia.

Spring e Araujo (2009) propõem em seu estudo uma nova abordagem para a estratégia de operações e suprimentos, analisando os papeis de produtos e serviços para, em conjunto, entregarem benefícios aos clientes. A adição de serviços aos produtos fornecidos, ou a oferta de um produto na forma de serviço, têm se mostrado estratégias empresariais bem interessantes, possibilitando margens geralmente mais atraentes e maior agregação de valor ao produto, podendo ser também utilizadas como uma forma de aumentar a fidelização dos clientes (Mathieu, 2001b; Parasuraman, Zeithaml, & Berry, 1985).

É notório que os serviços desempenham um papel fundamental nas economias desenvolvidas – setores que fornecem assistência, utilidade, experiências, informações ou outro conteúdo intelectual têm se expandido rapidamente nas últimas décadas, e representam atualmente mais

de 70% do valor agregado total no PIB (Produto Interno Bruto) dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (World Bank, 2012). O setor de serviços emergiu também como a principal fonte de criação de emprego nos países da OCDE, compensando, muitas vezes, a perda de empregos na indústria de transformação.

Na maioria dos países, serviços relacionados com computação, informação e P&D têm gerado mais da metade do crescimento do emprego nos últimos anos (Sheehan, 2006). Além disso, esses serviços ajudam a melhorar a competitividade das empresas em praticamente todos os setores das economias modernas. De acordo com Bessant e Tidd (2011), em economias mais avançadas como EUA e Reino Unido, o setor de serviços responde pela criação de mais de três quartos da riqueza e de 85% dos empregos.

Essa tendência é ilustrada pela evolução da distribuição dos empregos (Figura 3-3) e da produção (Figura 3-4) nos Estados Unidos, entre 1840 e 2010. Nos países emergentes também se observa o aumento da participação dos serviços no PIB e no emprego, principalmente a partir da década de 1990, embora em patamares menores do que ocorre nos países desenvolvidos, como destacam Pauli, Nakabashi e Sampaio (2012); León, Thomaz e Meirelles (2012) e Nassif (2008), para o caso do Brasil.

Figura 3-3: Distribuição da força de trabalho por setor nos EUA, 1840-2010. Fonte: adaptado de Johnston (2012).

Figura 3-4: Distribuição da produção por setor nos EUA, 1840-2010. Fonte: adaptado de Johnston (2012).

Diversos fatores contribuem para a expansão da economia de serviços. Em nível macroeconômico, a produtividade crescente dos processos de manufatura, e a concorrência também crescente dos países emergentes, limitam o crescimento do emprego na indústria de transformação nos países desenvolvidos, e motivam os seus esforços para concentração econômica em atividades de maior valor agregado (Sheehan, 2006). Ao nível da empresa, destacam-se o investimento crescente em bens intangíveis; a ênfase também crescente na gestão do conhecimento; o foco nas competências essenciais; e o avanço da terceirização. No setor de manufatura, particularmente, inúmeras atividades previamente realizadas pela própria empresa são agora obtidas por meio de terceirização. Além disso, em grande parte dos casos, a manufatura depende cada vez mais dos serviços de telecomunicação, informática e gestão do conhecimento, para alcançar maior produtividade.

Apesar de estratégias orientadas a serviços oferecerem um potencial significativo para as empresas de manufatura, muitas empresas não consideram isso tão relevante (Glueck, Koudal, & Vaessen, 2007). Os serviços existem e são necessários para o negócio, mas muitas vezes são negligenciados e não são vistos estrategicamente. Dessa forma, o desenvolvimento de serviços em empresas de manufatura só é feito ocasionalmente, em geral em resposta à insistência do

cliente (Tan & McAloone, 2010). Na maior parte dessas empresas, mesmo naquelas em que a parcela de serviços na receita total é significativa, o valor dos serviços não é reconhecido, permanecendo uma mentalidade orientada ao desenvolvimento de produtos.

Na literatura de negócios há vários exemplos relatados de empresas que obtiveram sucesso com a prestação de serviços integrados aos seus produtos, oferecendo aos seus clientes: o uso compartilhado de veículos (Mont, 2004a; Ornellas, 2012); turbinas de avião contratadas por “hora de voo” (Ng et al., 2012); infraestrutura de rede de telecomunicações paga por utilização (Davies, 2004; Davies, Brady, & Hobday, 2006); soluções integradas de diagnósticos ou tratamentos médicos (Mittermeyer, Njuguna, & Alcock, 2011; Philips Healthcare, 2013, 2014a, 2014b, 2015); serviços gerenciados de impressão pagos por página impressa (Alvarez, 2012; Chesbrough, 2011); infraestrutura de TI contratada por capacidade utilizada, em arquiteturas “na nuvem” (Boehm et al., 2011), e até mesmo software como serviço (SaaS, software as a

service) (Wortmann, Don, Hasselman, & Wilbrink, 2012).

O potencial econômico da transformação dos serviços para as empresas de manufatura tem sido apontado há anos por diversos pesquisadores (Canton, 1984; Potts, 1988; Vandermerwe & Rada, 1988). Como destacam Wise e Baumgartner (1999), em muitos casos o custo para compra do produto representa apenas uma pequena fração do dispêndio global, enquanto a prestação de serviços durante a vida útil do produto tem potencial para oferecer receitas e lucros maiores para os fabricantes (vide Figura 3-5). Esta mudança na direção de serviços é tipicamente uma resposta estratégica ao atingir a fase madura no ciclo de vida do produto e, assim, começar a enfrentar o crescimento limitado das receitas. Os serviços são uma forma de a empresa escapar da armadilha da comoditização – por exemplo, na indústria de elevadores, empresas como Otis e Kone desfrutam de margens de 25 a 35% nos serviços de manutenção, comparadas com uma margem de cerca de 10% para equipamentos novos (Kowalkowski, Gebauer, & Oliva, 2017).

Apesar destas evidências, o paradigma dominante ainda é orientado a produto. A literatura científica sobre desenvolvimento de novos produtos (NPD, new products development) é abundante e madura, tendo se concentrado majoritariamente em propor ferramentas, modelos e práticas para gestão da inovação em produtos, ou gestão de projetos de NPD, no intuito de estruturar a empresa para melhor aproveitar os seus esforços para inovar. Dentro desta vertente, destacam-se alguns trabalhos que caracterizam o processo de NPD, como os de Ulrich e Eppinger (2000) e Clark e Wheelright (1993) – neste último é proposto o consagrado “Funil da

Inovação”; além de outros que trazem abrangentes revisões sistemáticas da literatura, como os

de Brown e Eisenhardt (1995) e Krishnan e Ulrich (2001).

Figura 3-5: Onde está o dinheiro?

Fonte: traduzido de Wise e Baumgartner (1999).

Há também muitos estudos que abordam temas mais específicos de NPD, como seleção e gestão de portfólio de projetos de inovação (e.g. R. G. Cooper, Edgett, & Kleinschmidt, 2001; Nascimento, 2013; Wheelwright & Clark, 1992); arquiteturas e plataformas de produtos (e.g. Robertson & Ulrich, 1998; Yu, Figueiredo, & Nascimento, 2010); roadmapping tecnológico (e.g. Oliveira et al., 2012; Phaal, Farrukh, & Probert, 2004, 2009); fuzzy front end (e.g. J. Kim & Wilemon, 2002; Suarez, 2004; Utterback, 1994); e tratamento de incertezas (e.g. Loch, Solt, & Bailey, 2007; Lynn, Morone, & Paulson, 1996).

Por outro lado, apesar de apresentar uma literatura menos farta e um pouco mais recente, também podem ser encontrados vários estudos sobre desenvolvimento de novos serviços (NSD,

new services development). De uma recente compilação feita por Fredrick (2010), destacam-se

os trabalhos focados em NSD de Gallouj e Weinstein (1997), Stuart (1998), Edvardsson e Gustafsson (2005) e Nijssen et al. (2006), além das revisões bibliográficas sobre inovação de

serviços de Johne e Storey (1998), Menor e Roth (2007), Pilkington e Chai (2008) e Droege e Hildebrand (2009).

No entanto, o desenvolvimento de sistemas produto-serviço (PSS) pelas empresas ainda é um campo bem menos explorado na literatura. Embora as abordagens de PSS tenham se mostrado úteis para tornar os fabricantes mais competitivos, no atual mercado globalizado, a sua adoção extensiva pela indústria ainda não ocorreu (Baines et al., 2007). Várias pesquisas têm investigado os motivadores, as barreiras e oportunidades para adoção de abordagens de PSS, tanto no contexto B2B (business-to-business) quanto B2C (business-to-consumer) (Mont, 2004b); no entanto, ainda não é clara a compreensão de como essas empresas realizam esse movimento (Davies et al., 2006).

Oliva e Kallenberg (2003) estão entre os primeiros a investigar como as empresas de manufatura fazem essa transição, mas ainda faltam evidências das abordagens utilizadas para desenvolvimento de produtos orientados a serviços (Gebauer et al., 2008). Ainda é necessário desenvolver modelos, métodos e teorias para o design e desenvolvimento de PSS (Baines et al., 2007; Mont, 2004b).

Não obstante, esse importante fenômeno tem se manifestado vigorosamente nos últimos anos, em diversos setores da economia, como os de TI e de bens de capital, e tem sido usualmente tratado pela literatura como “servitização” (e.g. Baines et al., 2009; Barnett et al., 2013; Slack, 2005; Vandermerwe & Rada, 1988; Wise & Baumgartner, 1999), ou “sistema produto-serviço” (PSS) (e.g. Boehm & Thomas, 2013; Goedkoop et al., 1999; Manzini et al., 2001; Mont, 2000; Tukker, 2004; Vandermerwe & Rada, 1988).

De acordo com uma recente revisão sistemática da literatura, que avaliou 232 artigos selecionados (Baines et al., 2016), o interesse no papel dos serviços na manufatura continua crescente. Desde que Vandermerwe e Rada (1988) expuseram o fenômeno da servitização em um contexto de manufatura, e que Wise e Baumgartner (1999) destacaram a importância de as empresas caminharem à jusante na cadeia de valor (going downstream), as pesquisas têm progredido sistematicamente. Entre 1991 e 2000, 22 artigos foram publicados sobre este tópico, saltando para 101 entre 2001 e 2010 (Lightfoot et al., 2013). Estas publicações abordando servitização vieram de diferentes comunidades: pesquisadores de marketing de serviços, gerenciamento de serviços, gerenciamento de operações, sistemas produto-serviço (PSS) e

ciências de serviço estão contribuindo para estabelecer este campo de pesquisa. Nas seções seguintes serão apresentados os principais conceitos relacionados com o tema servitização, bem como as diversas correntes de literatura correlatas.