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Contextualizando Sant‟Ana do Livramento

No documento LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS (páginas 116-124)

2 COEXISTÊNCIA ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE: UMA LEITURA

5.1 Contextualizando Sant‟Ana do Livramento

Para melhor compreender a dinâmica entre a tradição e a modernidade no Município de Sant‟Ana do Livramento, é prudente “abrir as porteiras” do conhecimento e adentrar em meio ao cultivo da produção econômica (setores primário, secundário e terciário) e da produção social (empregos, educação, saneamento, saúde, etc.) desse município.

Com vistas a ampliar alguns caminhos preteritamente traçados, inicia-se

“cavalgando” pelo horizonte da pesquisa, observando e interpretando a trama dos

“tentos”100 legados pela tradição e intercalados pelo colorido da modernidade.

Da fixidez da tradição, exemplificada na envelhecida porteira no espaço rural e natural (Fotografia 7), o santanense está absorvendo novas formas de trabalho,

100 Finas tiras recortadas do couro animal (bovino) para fazer as tranças do laço, do relho e para revestir ferramentas e demais utensílios do trabalho na pecuária.

exemplificada culturalmente pelo simbólico artesanato, representando a nova porteira, comercializada em meio ao espaço urbano (Fotografia 8). É uma maneira de reproduzir um dos ícones campesinos que, por fazer parte do imaginário coletivo, são materializados e vendidos aos turistas. É, portanto, típica da modernidade a mercantilização da cultura local.

Fotografia 7 - Porteira de entrada ao campo, em Sant‟Ana do Livramento-RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Fotografia 8 - Artesanato feito em madeira.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Por isso, compuseram-se, sumariamente, as bases, sobre as quais o município se constituiu, evidenciando delineamentos de ordem econômica que ecoaram, substancialmente, na vida social dos santanenses.

Sant‟Ana do Livramento está situada no bioma Pampa (IBGE, 2011), apresenta um clima que se modifica em função da latitude, do relevo, da vegetação, destacando um verão de calor intenso e um inverno rigoroso com presença de geadas. As estações apresentam excedentes hídricos por mais de três meses consecutivos. Embora sofra com períodos de estiagem, o município contempla, no subsolo, significativa reserva do Aquífero Guarani.

Fotografias 9 e 10 - Pampa Gaúcho e Campanha Gaúcha: açúde e criação de gado, em Sant‟Ana do Livramento–RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Além da tradicional produção pecuária, ressalta-se, também, que, por abranger o "Paralelo 31", suas terras e clima são propícios à agricultura, em especial à produção de citros, favorecendo, o cultivo de uva destinado ao fabrico de vinhos finos.

Quanto ao âmbito histórico, o município está ligado às lutas cisplatinas e à condição de fronteira (ASEFF, 2011). Tanto em Sant‟Ana do Livramento como em Rivera, foram destinadas a poucos proprietários grandes extensões de terra.

Em Sant‟Ana do Livramento, durante o período Colonial brasileiro, as relações sociais eram pautadas em disputas de poder, na hierarquia, na subserviência e no domínio, atributos típicos do “coronelismo”101 e do “clientelismo”102. Os valores relacionados ao “caudilhismo”103 se referiam a Rivera (MÉLO, 2004) – que desenvolveram, predominantemente, atividades econômicas caracterizadas pela pecuária de corte extensiva e, mais recentemente, pela ovinocultura (Fotografia 11) e pecuária de leite.

101 Para Mélo (2004), "coronelismo" remete à dominação, à dependência e à obrigação de lealdade. É uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o Presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos.

102 “Clientelismo”, segundo Mélo (2004, p.126), está relacionado ao favor como “elemento-motor do clientelismo e também das modernas práticas clientelísticas: transfere-se para a esfera política, coletiva, uma prática estabelecida na esfera privada das relações interpessoais. Opera como importante elemento nos processos eleitorais, sobretudo em situações de extremas desigualdades sociais, de escassa participação cidadã e de desapossamento de recursos mínimos, em diferentes esferas do meio social”.

103 “Caudilhismo”: processo pelo qual é exercido o poder e a chefia política caracterizada pelo agrupamento de “fiéis” em torno do caudilho. Liderança carismática, popular e/ou autocrática ligada aos militares, aos grandes fazendeiros e/ou ditadores da Espanha e da América Latina (HOUAISS, 2001, p.657).

Fotografia 11 - Criação de ovelhas, em Sant‟Ana do Livramento-RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Segundo Machado; Vela (2011, p.1), as atividades comerciais104 ligadas à criação de gado e à comercialização da carne geraram riqueza aos estancieiros do local formando as bases do latifúndio. Nesse sentido, é prudente lembrar que o município foi considerado arcaico105, uma vez que era alicerçado no conhecimento empírico e rudimentar do trabalho no campo.

Do início do século XX, até duas décadas antes de iniciar o século XXI, o desenvolvimento econômico de Sant‟Ana do Livramento apoiou-se no setor industrial, modificando a paisagem urbana e a vida dos santanenses. Nos bairros do entorno do antigo Frigorífico Armour, ainda se conservam “casas de latas106”, como mostram as fotografias 12 e 13, construídas por operários do frigorífico (ALBORNOZ, 2000).

104 De maneira geral, à criação das cidades-gêmeas soma-se uma função de entreposto comercial com Montevidéu. “Hoje, em um contexto bem diferente do século XIX, é conferida a essas cidades uma função estratégica evidenciada por constituírem importantes nós da rede de circulação de bens no contexto de integração de países da América do Sul” (ADIALA, 2006, p.21-2).

105 Segundo Rostow (1963, apud VAZQUEZ, 2008), uma sociedade tradicional remete a uma ideia de aspectos arcaicos em sua tecnologia e economia, bem como de escassa ou limitada produtividade e produção per capita. A estrutura econômica está baseada nas produções agrárias e na propriedade de terras, dedicando grande parte dos recursos à agricultura.

106 O local de moradia dos operários do Frigorífico Armour era o local "do outro lado da cerca"

(ALBORNOZ, 2000, p, 150), onde foram construídas as “casas de latas”, no entorno do frigorífico.

Eram casas de madeira forradas com refugos de latas da fábrica do frigorífico e vendidas aos operários. As casas de madeira forradas de latas ficavam mais protegidas das baixas temperaturas no inverno da fronteira.

Fotografias 12 e 13 - Casas de madeira revestidas com placas de latas, em Sant‟Ana do Livramento-RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Segundo a acepção da autora, os antigos moradores assistiram à dotação logística de forma a auxiliar a cadeia produtiva, destacando-se as máquinas e equipamentos importados, a instalação da malha ferroviária (a partir de 1910), que liga a fronteira com as cidades centrais e capitais (Porto Alegre, Montevidéu, Rio Grande), investimento nas estradas de acesso (asfaltamento) e demais infraestrutura urbana/rural107.

Embora em plena ditadura militar (1964–1984), quando as indústrias brasileiras se diversificaram e expandiram sua produção, numa fase desenvolvimentista do país - o chamado “Milagre Brasileiro” - Sant‟Ana do Livramento obteve melhorias na infraestrutura (SCHÄFFER, 1993).

O irregular crescimento urbano (Fotografia 14) contou com a migração de trabalhadores oriundos de outras cidades, inclusive de famílias camponesas que se evadiram do espaço rural à procura de trabalho e renda. Esse fenômeno contribuiu para a expansão de outros setores, como o comércio e os serviços.

Desse modo, residindo na cidade, os novos habitantes formaram bairros e vilas, aprofundando os problemas de um espaço urbano sem planejamento, entre eles o aparecimento das favelas no entorno da cidade (SCHÄFFER, 1993).

107 Certamente, as lutas não pararam por aí, pois era gritante a diferenciação social mesmo dentro da empresa, quanto mais fora dela. No Frigorífico Armour, por exemplo, os americanos e os empregados com cargos de chefia obtinham diversos privilégios entre os quais moradia, água e luz a valores irrisórios, enquanto os trabalhadores sazonais, que costumavam trabalhar em média de 6 a 8 meses sob o regime de contratação temporária, no máximo conseguiam um terreno sem instalação de água, luz ou qualquer outro benefício (ALBORNOZ, 2000).

Fotografia 14 - Vilas entorno do antigo Frigorífico Armour em Sant‟Ana do Livramento-RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

Nas décadas de 60 e 70, a cidade ganhou prédios de até dez andares, contando, nos anos 80, com mais de 170 prédios108. Em entrevista com Schäffer (2011), a autora enfatizou que “no período da década de 70, as primeiras verticalizações de redes urbanas estão ali. O primeiro prédio com elevador, na fronteira, foi construído na Associação Comercial e Industrial de Livramento, a ACIL”. A autora relata que tais transformações estão associadas à “ruptura” entre a tradição e a modernidade.

Todavia, a cidade de Sant‟Ana do Livramento cresceu, passou por profundas transformações e, junto com ela, a vizinha cidade de Rivera109. Ambas prosperaram entre as décadas de 40110 e 70, quando despontavam as grandes indústrais, a exemplo dos lanifícios, frigoríficos, cooperativas, assim como da oferta de espaços para lazer e diversão. Havia uma pluralidade institucional, que proporcionava intensa

108 De acordo com Albornoz (2000), as construções foram facilitadas pelos financiamentos do Banco Nacional de Habitação (BNH).

109 Marquetto; Riedl (2010).

110 Entre as décadas de 40 e 50, o município ocupava o 5º lugar entre o ranking dos principais centros industriais do RS, quando acolhia números superiores a 40 indústrias e 6 mil trabalhadores diretos (SANT‟ANNA, 2009).

vivência de sociabilidade111, a exemplo dos clubes esportivos (futebol112, golfe) e sociais como os cinemas, os teatros e as cafeterias (Fotografias 15, 16, 17 e 18).

Fotografias 15, 16, 17 e 18 - Sede do Clube Armour, espaços esportivos de equitação, tênis e golfe,

respectivamente, em Sant‟Ana do Livramento-RS.

Fonte: Arquivo da autora, 2009.

No entanto, nas décadas de 70 e 80113, o contexto econômico do município já apresentava sinais de declínio devido ao encerramento das atividades de algumas indústrias de propriedade internacional, gerando significativo contingente de desempregados cujo desamparo mostrou-se penoso e de difícil resolução.

Além disso, sublinha-se que a história de Sant‟Ana do Livramento conta com altos e baixos resultantes de abertura e fechamento de vários empreendimentos do setor produtivo, com escalada cambial flutuante, incidindo diretamente no comércio

111 Sociabilidade é a forma lúdica da sociação, deriva da mera forma da reunião. É impessoal e não tem propósitos objetivos, nem conteúdos, nem resultados exteriores, depende das personalidades entre as quais ocorre. Seu caráter é determinado por qualidades pessoais tais como amabilidade, refinamento, cordialidade e outras fontes de atração. Riqueza, posição social, cultura, fama, méritos e capacidades excepcionais não representam papel na sociabilidade, podendo apenas desempenhar o papel de meras nuances de caráter imaterial. Também são eliminados, como fatores de sociabilidade, elementos que circundam a personalidade como o caráter, a disposição e o destino (SIMMEL, 1983).

112 Os torcedores do time de futebol Armour são apelidados de “tripeiros” (BLOG FILHOS DE SANTANA, 2011).

113 O contexto econômico brasileiro estava mergulhando em um alto processo inflacionário.

da fronteira e, como se não bastasse, com as contrastantes decisões advindas das esferas governamentais, tanto nacional como supranacional. Esta última diz respeito às diretrizes que impactaram sobremaneira a produção das culturas do setor primário, afetando, em cadeia, todas as atividades econômicas do município.

É mister fazer breves incursões às acepções de Moura Filho (2010) ao se referir aos conflituosos planejamentos urbanos binacionais entre as cidades-gêmeas meridionais. Segundo o autor,

[...] Estudos conjuntos, realizados antes mesmo de o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF), brasileiro, assim o prever, como o Plano de Desenvolvimento Urbano Conjunto Sant‟Ana do Livramento/Rivera, apontam para a necessidade de se encaminhar às Chancelarias dos dois países a sugestão de elaboração de estudos de propostas alternativas para a definição de uma nova categoria de “corredor internacional de caráter urbano”, que atenda exclusivamente às necessidades do desenvolvimento urbano das cidades gêmeas de fronteira seca, ao longo da linha fronteiriça, constituída por uma faixa com dimensões mais adequadas para abrigar ruas, avenidas, terminais de transporte coletivo, e que possa receber uma legislação de uso e ocupação do solo, específica e comum às duas cidades, com vistas à qualificação, em termos de uso do espaço urbano correspondente (MOURA FILHO, 2010, p.21).

Contudo, faz-se, novamente, referência a Moura Filho (2010) por mencionar, em sua tese, que expressivas cidades vizinhas na fronteira são convertidas em

“centros de consumo, de estabelecimentos comerciais do tipo free shop agravando a relação custo/benefício atribuída à urbanização”. No entanto, o autor afirma que

“novos marcos regulatórios, como a Lei Federal 10.257/01, o Estatuto da Cidade, pretendem melhor distribuir entre os seus moradores” (2010, p.22). Assim, os brasileiros, ao se deslocarem continuamente ao lado uruguaio, não deixam, no lado brasileiro, recursos financeiros suficientes para a manutenção da infraestrutura urbana utilizada, determinando assimetrias no espaço contíguo.

Também configura uma das assimetrias entre as fronteiras meridionais o momento em que um dos integrantes do MERCOSUL age em desacordo com os regulamentos firmados. É o caso da operação “zero kilo”, realizada pelos fiscais uruguaios ao restringirem o acesso da parcela dos compradores do Uruguai ao mercado existente no lado brasileiro.

No documento LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS (páginas 116-124)