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Tradições

No documento LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS (páginas 52-59)

2 COEXISTÊNCIA ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE: UMA LEITURA

2.1 Tradições

Baseadas na ideia de um povo antigo, genuíno e original, bem como de símbolos que perpetuam a experiência das gerações, as tradições contribuem com a compreensão do mundo por estarem fundadas na superstição, na religião e nos costumes. Elas são remodeladas e reinventadas a cada geração, de forma a sedimentar a ordem social. Inexiste, portanto, um corte profundo, uma ruptura ou uma descontinuidade absoluta entre o ontem, o hoje e o amanhã.

Na perspectiva de intersecção entre tradição e modernidade, foi tomado como referência principal nesta tese o sociólogo Anthony Giddens, por encontrar eco nas discussões epistemológicas por ele explicitadas. Em consonância com o autor, ao estudar a constituição da sociedade moderna, considera-se ser primordial levar em conta as consequências que a globalização e os riscos sociais imprimem ao indivíduo e à coletividade. Contudo, ao longo dos capítulos, encontram-se outras

ressonâncias não menos importantes que contribuíram sobremaneira a entendimento dos conceitos aqui evidenciados.

Assim, inicia-se o tema com as assertivas de Giddens (1997) de que, ao longo do desenvolvimento social da humanidade, a modernidade e a tradição mantiveram certa coexistência (ou colaboração, nos termos do autor) até o surgimento do que cunhou de “alta modernidade”, quando, então, as características da tradição passaram a ser diferenciadas.

O autor enfatiza que, no atual estágio da alta modernidade, as tradições se encontram sob um processo dialógico em que, por um lado, os aspectos globais afetam a vida local; por outro, o local também se manifesta no global. Mesmo com o avanço da modernidade, as tradições não desapareceram, embora tenham sido esvaziadas de conteúdos e/ou alteradas por experiências cotidianas, deixando, por exemplo, de atuar como fornecedoras a uma acurada estrutura34 propiciadora de determinada ação. Essa transformação teria sido ocasionada, em alguns casos, pelo distanciamento tempo-espaço, binômio fundamental para a concepção de uma tradição mais ativa e coercitiva sobre os indivíduos.

Para Giddens (2002), a tradição era onipresente e inquestionada. Sua

“aparição” se deu com a modernidade de forma a estar sujeita a sucessivas transformações ao longo do tempo, ou seja, invenções e reinvenções. Giddens (1990) argumenta que as sociedades35 tradicionais veneram o passado e valorizam os símbolos por estes conterem perpetuarem experiência de gerações. Por essa razão, a principal diferença entre sociedade tradicional e moderna reside na constante, rápida e permanente mudança (HALL, 2007). Desta forma, segundo Giddens (1997), as “práticas sociais são, constantemente, examinadas e reformuladas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter” (1997, p. 37-8). Por isso, a tradição

34 Para Giddens (2002), há dois sentidos para estruturas: pode ser habilitadora ou coercitiva. A estrutura diz respeito às regras e aos recursos, ou conjunto de relações, de transformações, organizadas como propriedades de sistemas sociais.

35 Para Simmel (1983), a sociedade - vista globalmente - é possível de ser pensada como resultado das formas de sociação, ou seja, da rede de relações sociais recíprocas. A matéria das sociações são os “conteúdos”, ou seja, pulsões, interesses, finalidades, tendências, desejos, etc. que se expressam nos indivíduos. Em Simmel (1983), formas sociais são as interações sociais concretas que se constituem a partir de conteúdos determinados, seja na moda, na coqueteira, no costume do adorno, etc.

não é concebida como totalmente estática, pois a cada geração ela é reinventada, conforme sua herança cultural e assumida pelos seus precedentes.

Tal argumento corrobora os de Hobsbawm (1997) frente à constatação de que muitas das tradições tidas como seculares são, na verdade, invenções relativamente recentes.

Como refere Giddens (2002, p.105), a tradição “é a cola que une as ordens sociais pré-modernas” e está atrelada à organização do tempo-espaço, à memória36, a inventividade e, embora seja uma orientação para o passado, tem pesada influência no presente, uma vez que envolve o controle do tempo. Além disso, é também um ato do futuro, intrínseco e inseparável da comunidade (OLIVEN, 2007).

Sua restituição tem cunho político na medida em que vai filtrando o que pode e o que não pode vir à tona de acordo com os significados conferidos em um determinado tempo, das imagens convenientes, dos interesses vigentes, seja no âmbito individual seja no social.

Assim como Oliven (1995), também aqui se recorre a Durham para referendar a persistência dos padrões tradicionais e da valorização do passado:

[...] não constitui explicação de nenhum fenômeno social, mas são em si fenômenos que devem ser explicitados na análise do processo de transformação social. Há muitos anos que os antropólogos destruíram a ilusão do valor explicativo do conceito de sobrevivência cultural. Padrões culturais sobrevivem na mesma medida em que persistem as situações que lhe deram origem, ou alteram seu significado para expressar novos problemas (DURHAM apud OLIVEN, 1995, p. 201).

Ainda, na acepção de Oliven (2007), a tradição é entendida como um conjunto de orientações valorativas consagradas pelo passado e pode se manifestar em épocas de processos de mudança social, tais como a transição de um tipo para outro de sociedade, crises, perda de poder econômico e/ou político, entre outros.

Também pode ser inventada por caracterizar a referência a um passado, podendo ser real ou forjado, que impõe práticas geralmente formalizadas através da repetição.

36 A memória pode ser um modo de descrever a cognocitividade de agentes humanos. “[...] a consciência discursiva implica as formas da recordação que o ator é capaz de expressar verbalmente” (GIDDENS, 2003, p. 56).

[...] tradições inventadas é um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado [...]. São reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 9-10).

Embora passíveis de sofrer alterações, os costumes – vinculados às sociedades tradicionais - modificam a tradição e, ao mesmo tempo, diferenciam-se das tradições inventadas. Hobsbawm; Ranger (1984) diferencia o costume das tradições inventadas e o das convenções: as convenções – rotinas - não constituem

“tradições inventadas”, pois são de ordem técnica, não ideológica e podem ser modificadas ou abandonadas pela necessidade prática.

Muitas vezes, sob o efeito de algum estado de coisas, as tradições inventadas indicam necessidades sociais, a exemplo dos gostos, da moda, dos divertimentos populares que podem ser criados, explorados e modelados.

A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das

“tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos saberes, hábitos, experiências étnicas ou regionais (segundo o perfil estabelecido há séculos), não se isenta desse processo. Apesar disso, Canclini (2003, p.105) ressalta que “a transnacionalização das tecnologias e da comercialização de bens

culturais diminuem a importância dos referentes tradicionais de identidade”, sobretudo nas zonas rurais.

O patrimônio histórico, a produção artística e folclórica e, em algumas zonas, a cultura rural experimentam uma abertura econômica limitada, porque nelas o rendimento dos investimentos é menor e a inércia simbólica é mais prolongada (CANCLINI, 2003, p.174).

Mesmo assim, a presença dos intérpretes capazes de acessar a verdade e transmiti-la aos outros entes é condição sine qua non para garantir a perpetuação das tradições. Ademais, muitos valores das tradições são reproduzidos no âmbito da comunidade local e, mesmo com a expansão da modernidade, a continuação das tradições se dá pela sua reinvenção e reformulação (GIDDENS, 1997).

2.1.1 “Verdade formular”, guardiões

Cunhada por Giddens (1997), a “verdade formular” necessita do guardião37 da tradição (intérprete) que, diferentemente do especialista da ordem social moderna, reveste-se de mistério, funda-se na crença, no sentido místico e esotérico, inacessível ao leigo. Para o autor, o guardião monopoliza a interpretação, fortalecendo seu status e, portanto, diferenciando-se do “outro”.

Mas as verdades inerentes ao tradicional reforçam a experiência cotidiana através dos mecanismos fundadores de rituais38 contidos na memória coletiva39, refazendo, assim, a liga que une a comunidade e gerando o sentimento de pertencimento. É, também, a partir do discurso, que as comunidades constituem e constroem, ao longo do tempo, uma estereotipia vinculada à reinvenção e ao futuro de cada geração. A tradição envolve rituais como meio de preservação da memória coletiva reforçando as experiências do cotidiano e suas verdades.

37 O interprete pode ser o padre, o xamã, o político, o patrão do CTG, etc.

38 Com uma esfera e linguagem própria, o ritual detém uma verdade em si, ou seja, uma “verdade formular” que o funda e que não depende das “propriedades referenciais da linguagem”. Pelo contrário, “a linguagem ritual é performativa e, às vezes, pode conter palavras ou práticas que os falantes ou os ouvintes mal conseguem compreender (GIDDENS, 1997, p. 83). As narrativas contadas partilham experiências fundamentais à identidade nacional.

39 Memória coletiva (HALBWACHS, 1990).

À medida que o ritual é reinventado e reformulado, a modernidade rompe o referencial protetor da pequena comunidade (GIDDENS, 2002). O autor aponta para a necessidade da modernidade em criar tradições e servir como mecanismo de controle, uma vez que a tradição é propriedade de grupos, de coletividades ou comunidades.

Cabe referir-se ao filósofo Appiah (1997), na obra entitulada “Na casa do meu pai”. Ele aborda o passado da África Central, ao considerar a tradição como os

“aspectos do passado que persistem no presente por meio de uma transmissão inter-geracional. Por seu lado, em termos simples, pensamos que não poderemos afastar-nos de uma aproximação entre a modernidade e um dos seus veículos em Angola, o sistema colonial”, que transplantou uma tradição religiosa a outra (o cristianismo), bem como outras concretizações familiares e outras normas de conduta que contrastam com tradições de origem autóctone.

O autor conferiu relevo à sabedoria das sociedades tradicionais da África e defende que os filósofos precisam ter uma compreensão profunda dos “mundos conceituais”40 tradicionais (APPIAH, 1997, p. 153). Devem, portanto, buscar as raízes dispersas do pensamento, reatar seus fios, dando ênfase ao ensaio, ao gênero e às críticas, de forma a valorizar as tradições africanas. As assertivas do autor contribuem a que se tenha acuidade ao contrair uma pesquisa acerca da tradição de forma a abstrair, ao máximo, as “raízes dispersas do pensamento”

conferindo o devido valor e reconhecimento durante a pesquisa.

Na tentativa de fazer uma analogia entre as acepções de Appiah (1997) e as abordagens de Habermas (2008), principalmente no que diz respeito às ideias e às práticas que conduzem aos fatos sociais, confere-se relevo ao seguinte: “as ideias penetram, na realidade social, através de pressuposições práticas cotidianas e, imperceptivelmente, adquirem a qualidade de fatos sociais obstinados”

(HABERMAS, 2008, p.11). Contudo, vale lembrar que as ideias postas em prática também dizem respeito às invenções das tradições.

40 Para Appiah (1997), “mundos conceituais” se referem ao tradicional e ao moderno que são tomados não como opostos, mas como confluentes e complementares, aliando a herança e a aquisição.

Na visão de Hobsbawm; Ranger (1984), é difícil localizar o período temporal pelo qual surgiram as tradições genuínas cuja adaptabilidade não deve ser confundida com a “invenção de tradições”. As tradições são inventadas somente quando os velhos usos da tradição genuína se degeneram, embora, muitas vezes, as tradições fossem inventadas, não porque os velhos costumes estejam indisponíveis, mas por não serem mais usados, nem adaptados. Portanto, indicam sintomas de problemas sociais difíceis de serem detectados.

Entretanto, às tradições inventadas prevalece um conjunto de práticas que expressa valores e normas comportamentais através das quais é conferida uma continuidade em relação ao passado, ou seja, das “tradições genuínas41” modificadas.

O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p.09).

A referência ao passado histórico pelas tradições inventadas caracteriza artificialidade, uma vez que referenciam situações anteriores quase que por repetição obrigatória. É contrastante, pois, com as mudanças e inovações do mundo moderno que, através da “ideologia liberal da transformação social, no século passado [século XIX], deixou de fornecer os vínculos sociais e hierárquicos aceitos nas sociedades precedentes, gerando vácuos que puderam ser preenchidos com tradições inventadas” (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p.16).

Assim, o autor classifica três categorias superpostas elencadas desde a Revolução Industrial:

a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais;

b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade; e

41 Valores e práticas legados do passado longínquo e pré-moderno.

c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, de sistemas42 de valores e de padrões de comportamento.

Entre as categorias relacionadas, o autor sugere que as tradições dos tipos “b”

e “c” tenham sido inventadas, a exemplo da submissão à autoridade na Índia britânica. A do tipo “a” prevaleceu, “sendo as outras funções tomadas como implícitas ou derivadas de um sentido de identificação com uma „comunidade‟ e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais como a „nação”‟.

As características levantadas permitem identificar nas relações sociais os tipos de tradições que, por repetição, legitimam instituições e autoridades, como por exemplo, o sentimento nacional (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p.17).

A produção de representações pelas instituições sociais é realizada pela criação de símbolos e imagens pretéritas, todas as quais selecionadas de acordo com os valores, muitos deles ocultos, e que se pretende eternizar (HOBSBAWM, 1997). Infere-se, aqui, a questão de que os valores são o conteúdo derivado das interações sociais concretas que, por sua vez, resultam nas formas sociais (SIMMEL, 1983).

Assim, as formas e as funções (sociais e materiais) conferem significado à vida social, ainda que na modernidade, por ocuparem determinado espaço - mesmo que virtual.

No documento LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS (páginas 52-59)