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Contrato de árbitro e múnus público

No documento Autoridade do árbitro na arbitragem comercial (páginas 111-118)

3. ASPECTOS GERAIS DA JURISDIÇÃO DO ÁRBITRO

3.5. Contrato de árbitro e múnus público

de São Paulo ter reconhecido que, “No procedimento de jurisdição voluntária cabe ao juiz realizar controle de relevância do pedido, mas não proceder ao exame de mérito do direito alegado” voltado a terceiros

271

.

No âmbito da jurisdição contenciosa, nos parece evidente a autoridade relacionada

à jurisdição declaratória daquela fundamentada no mero imperium. Tal separação se torna mais

difícil, no entanto, no âmbito da jurisdição graciosa, o que impede, ao menos no atual panorama

da arbitragem no Brasil, a atuação dos árbitros nesse contexto, ao menos na maioria de suas

previsões legais.

Conforme esclarece Luis Fernando Guerrero

273

:

A doutrina é uníssona ao afirmar que a principal obrigação do árbitro é proferir a sentença arbitral no prazo estipulado pelas partes, sentença esta que deve ser válida e resistir a uma eventual demanda de nulidade. Há discussão ampla, contudo, quanto à natureza da relação entre os árbitros e as partes, isto é, o tipo de negócio jurídico celebrado para que os primeiros solucionem o conflito trazido pelos últimos. Existem teorias para enquadrar tal negócio jurídico como mandato, prestação de serviços, agência ou tipo de contrato especial. A característica comum a estas teorias é a pessoalidade, fundamental na arbitragem quanto à condição do árbitro.

Ensina Luiz Olavo Baptista que a arbitragem envolve um contrato sui generis, "um modelo especial de contrato de prestação de serviços cujo objeto é institucional"

274

. Nada impede, contudo, que à “natureza híbrida do contrato para arbitrar [...] sejam aplicadas as regras relativas aos negócios jurídicos previstos na legislação civil brasileira.”

275

.

Ainda que o árbitro não esteja vinculado a quem o indica (muito pelo contrário), o contrato de arbitragem corresponde a um contrato segundo o qual o terceiro eleito presta serviços de caráter intelectual e se compromete a uma série de deveres e obrigações, em especial aquela de proferir a sentença arbitral.

Sobre a qualificação do contrato do árbitro, explica Judith Martins-Costa

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tratar-se este de contrato de investidura:

Primeiramente, a doutrina qualificava-o como espécie de contrato de mandato, ou de agência, ou, ainda, como locação de serviços. Posteriormente, em atenção às especificidades que envolvem o tipo de negócio havido entre os árbitros e as partes, bem como o conteúdo do contrato, alcançou-se diversa qualificação, chegando se a ideia de «contrato de investidura» ou «convenção de investidura arbitral». Haveria, de fato, incompatibilidade funcional e axiológica entre os deveres e a função de um mandatário e a função jurisdicional dos árbitros. A sentença proferida pelo árbitro é em seu nome próprio e não em cumprimento de um mandato outorgado pelas partes.

Como observa Selma Lemes, «a função judicial inerente ao árbitro dá-lhe uma posição de independência que não reflete a representação das partes». Porém, conquanto a complexidade das relações jurídicas entretecidas entre árbitros e partes de uma arbitragem, é possível definir que o dever primário de prestação (obrigação principal) consiste, para o árbitro, no desempenho do poder-dever de decidir o conflito que opõe

273 GUERRERO. Luis Fernando. Reflexão sobre a Relação entre Árbitros e Partes: Natureza Jurídica e Necessário Afastamento de Propostas de Regulamentação no Direito Brasileiro, Revista Brasileira de Arbitragem, (© Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB; Comitê Brasileiro de Arbitragem CBAr & IOB 2007, Volume IV Issue 15), p. 43.

274 BAPTISTA. op. cit., p. 172.

275 GUERRERO, op. cit., p. 53.

276 MARTINS-COSTA. Judith. A boa-fé no direito privado. Critérios para sua aplicação. 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2018, p. 361-362.

as Partes, caracterizando-se uma obrigação personalíssima e de resultado: o árbitro obriga-se a julgar e não apenas a diligenciar para que haja julgamento. Dotado de poder jurisdicional - assegurado na Lei 9.037/1996, ao equiparar, em seu art. 18, o árbitro ao juiz e a decisão arbitral à sentença judicial -, o árbitro, pessoa física designada pelas Partes para resolver definitivamente as litígio que as opõe torna-se parte de um contrato quando, «ao ser consultado pelas Partes ou pelas demais árbitros, [...] decide se quer/pode/deve aceitar a obrigação de julgar ». Ocorrendo tal situação, verifica-se, pela aceitação à proposta a atuar como árbitro, a configuração do contrato de investidura, contrato complexo, pois a missão do árbitro «é um aspersa da sua investidura, a qual não se constitui individualmente Os dois momentos contratuais não são justapostos, mas profundamente vinculados entre si. A investidura do árbitro está relacionada com a operação complexa de contratos produzidos e vinculados como elos de uma corrente, que se traduz na conclusão de uma convenção de arbitragem, designação de árbitros e aceitação por eles da missão. Esta sucessão de obrigações poderia ser resumida em duas obrigações de fazer para as partes, designar os árbitros;

para os árbitros, concluir sua missão».

Esclareça-se, porém, que não se trata ele de um contrato de trabalho e nem de uma relação de emprego. Não há subordinação entre o árbitro e as partes, e muito menos continuidade na relação estabelecida

277

.

Também não se deve cogitar a possibilidade de pessoa jurídica figurar como árbitro, tendo em vista sua função personalíssima já indicada acima, apesar de, atualmente, a questão não se encontrar pacificada na doutrina

278

.

277 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O dever de revelação do árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 75.

278 Em sentido favorável à possibilidade de pessoa jurídica figurar como árbitro: “A doutrina não admite e costuma sustentar que o árbitro deve, obrigatoriamente, ser pessoa natural.2 Não é o que pensamos e daremos, agora, os motivos da nossa ilação. O art. 13 da Lei de Arbitragem, ao tratar do árbitro, apenas e tão somente exige que seja

“pessoa capaz e que tenha a confiança das partes”. Ora, é cediço que as pessoas podem ser naturais ou jurídicas.

Logo, é evidente que pessoa jurídica também é pessoa, dotada, igualmente, de personalidade jurídica que, aliás, é distinta daquela atribuída aos seus membros. Nos termos do art. 45, caput, do CC, começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com o registro dos seus atos constitutivos (estatutos ou contratos sociais) no registro que lhes é peculiar. A partir de então, passam a ter personalidade jurídica e, portanto, a capacidade de serem titulares de direitos e obrigações. Nessa medida a pessoa jurídica produzirá a sentença arbitral devidamente representada, posto que “obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo” (art. 47 do CC). Assim, não encontramos qualquer óbice para que a pessoa jurídica seja árbitra desde que devidamente representada e de acordo com os seus atos constitutivos. Pode ser da confiança das partes uma pessoa jurídica especializada em determinada matéria. Portanto, será a pessoa jurídica, em razão de sua especialidade, a eleita pelas partes para produzir um laudo arbitral. É o caso, por exemplo, de institutos especializados em engenharia, que podem muito bem, respeitada sua organização e representação, produzir a sentença arbitral. Logo, a sentença será firmada pela pessoa jurídica devidamente representada pela pessoa natural designada nos seus atos constitutivos. Não nos convence, portanto, a afirmação segundo a qual, em razão de a atividade jurisdicional ser personalíssima, o julgamento somente poderia ser feito por pessoa natural.

Não se pode olvidar que a qualidade de personalíssima da atividade arbitral, como se costuma sustentar para impedir o desempenho da função por pessoa jurídica, decorre do superlativo de “pessoal”, que encontra sua origem no latim personale, ou seja, relativo ou pertencente à pessoa ou relativo a uma só pessoa e, até, o significado de individual ou particular, que são características que não se divorciam da existência ou da personalidade jurídica da pessoa jurídica. Ora, se esta pode ser titular, inclusive, de direitos da personalidade (art. 52 do CC), inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, pode, evidentemente, desempenhar atividades reputadas como personalíssimas.”

Esse denominado contrato de investidura raramente será posto por escrito, porque terá sido formado por uma série de comunicações trocadas e ações praticadas pelas partes com base na legislação e no regulamento aplicável, surgindo na convenção de arbitragem como contrapartida de uma remuneração expressa nos honorários dos árbitros. Com efeito

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:

A atipicidade do contrato investidura arbitral decorre da natureza mista da arbitragem – contratual na origem e jurisdicional no objeto –, isto é, não há uma prestação de serviços comum, mas um contrato que define uma forma de investidura para a solução de um conflito com a proibição de atuação no interesse dos contratantes, como seria comum na prestação de serviços, mas sim apenas em última instância, com o proferimento da sentença arbitral, pois os árbitros não podem representar os interesses das partes ainda que tenham sido indicados por elas, devendo ter uma atuação imparcial. Isto não significa dizer que o seu conteúdo jurídico é indeterminado, apenas não se enquadra nos limites de conteúdos jurídicos dos contratos típicos e, como se disse, existe um claro complexo de direitos e obrigações das partes e dos árbitros neste contrato. Assim, o árbitro julga, mas não julga em nome de ninguém, mas, curiosamente, há uma “compenetração” entre o contrato e o processo, pois as cláusulas contratuais produzirão efeitos na maneira pela qual o árbitro executará sua função. Existe uma hibridização cada vez maior das figuras jurídicas, necessárias em função da maior complexidade das relações sociais. Há ainda um forte conteúdo de colaboração no contrato entre as partes e os árbitros. Essa conclusão não geraria uma oposição de interesses, pois deveria estar presente na arbitragem, já que todos, partes e árbitros, devem realizar seus melhores esforços para que seja produzida uma sentença arbitral.

Ressalta-se, novamente, que o fato de que a figura do árbitro advém de um contrato não significa que não há jurisdicionalidade na atividade do árbitro, considerando também os deveres e obrigações do árbitro perante a sociedade, como reconhecido diversas vezes pelos tribunais brasileiros, no sentido de que "[a] atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional."

280

.

À semelhança dos juízes togados, os árbitros: i) são provocados por partes que buscam uma solução concreta para um determinado conflito de direito material (patrimonial e disponível, no caso da arbitragem); ii) efetivamente decidem a causa submetida a seu crivo, com cognição plena, observando os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, bem como assegurando às partes o direito à produção de provas; iii) ao dirimir o conflito de direito material, redigem sentença arbitral que será definitiva e substitutiva da vontade das partes, podendo ser executada no juízo estatal com força de título executivo, na forma da

(SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio. Arbitragem - Mediação, Conciliação e Negociação. São Paulo: Grupo GEN, 2020, p. 88).

279 GUERRERO, op. cit., p. 47.

280 Superior Tribunal de Justiça, Conflito de Competência 111.230/DE, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, 08 de maio de 2013.

legislação processual civil; iv) proferem sentenças arbitrais sujeitas aos mesmos requisitos das sentenças judiciais, além de serem alcançadas pela coisa julgada material, tornando-se imutáveis e indiscutíveis, sendo vedado ao juízo estatal examinar o mérito do que os árbitros decidirem, a não ser que se trate de error in procedendo; e v) atuam de maneira imparcial e independente, cabendo-lhes o dever de revelação.

Para Thomas Clay, inclusive, a validade da convenção arbitral não tem relação alguma com a investidura do árbitro. A investidura de um árbitro, assim como em outras áreas do direito, "se define como a atribuição da competência arbitral a uma pessoa precisa"

281

, ou seja, ela eleva à qualidade de árbitro uma pessoa específica. Assim:

A investidura é ligada ao árbitro, enquanto a competência é ligada ao litígio. A repartição dos litígios no seio das jurisdições - intrajudiciária ou entre jurisdições estatais e arbitrais - é atrelada à natureza do litígio, e é por conseguinte unicamente uma questão de competência. Ao contrário, saber se tal pessoa é dotada do poder jurisdicional para colocar fim a um litígio dado, releva da própria pessoa, isto é, de sua investidura.282

Se "a competência é a vocação de um litígio determinado a ser arbitrado, e a investidura é a verificação que uma pessoa possa ser árbitro”

283

, observa-se que contestações relativas à existência, à validade e ao âmbito de aplicação da convenção de arbitragem em nada afetariam a investidura do árbitro. O árbitro poderia, portanto, livremente decidir sobre essas questões visto que sua qualidade de juiz não estaria em questão.

Na mesma linha dessa distinção, Mathieu de Boisséson escreveu que "a competência não é investidura. [...] Enquanto a investidura é o ato fundador do poder jurisdicional conferido à uma jurisdição", "a competência é o poder que possui o árbitro como toda outra jurisdição, de conhecer o litígio"

284

.

281 CLAY, Thomas. L'arbitre. Dalloz, 2001, n. 118, p. 140.

282 Idem.

283 Idem, p. 141.

284 DE BOISSÉSON, Matthieu. Le Droit Français de l’Arbitrage Interne et International, Ed. Joly, Paris, 1990, n. 113, p. 93.

Em razão do interesse público do árbitro ao atuar no procedimento arbitral visando a distribuição de justiça, esclarece Ricardo Dalmaso Marques

285

que o contrato de investidura resulta também em uma função pública a ser exercida pelos árbitros:

[...] a arbitragem surge de um contrato, mas tem como fim a atividade jurisdicional, porquanto a lei confere ao árbitro o poder de dizer o direito e a lei - de jurisdição - em verdadeira paridade com a atuação do juiz togado”. E daí advém o caráter sui generis que a doutrina atribui a essa contratação, uma vez que o árbitro não corresponde a um mandatário, delegatário, representante e muito menos um empregado; o árbitro é um julgador, sem vínculos com a parte que o indica e com poderes de jurisdictio. A lei confere ao árbitro esse caráter especial e também uma função pública – a função que outrora era por alguns reconhecida somente aos juízes togados [...].

Destarte, há deveres e obrigações dos árbitros também com relação aos escopos da jurisdição (jurídico, social e político)

286

. Não podem eles ser interpretados como se produzindo efeitos apenas entre as partes. Tratando-se de processo e jurisdição, estão presentes efeitos extra partes que devem ser considerados e sopesados

287

.

Em síntese, embora nomeado por meio de um contrato, o árbitro também desenvolve um múnus público, por meio da jurisdição, o que significa dizer que os escopos jurisdicionais também lhe atingem e lhe são imprescindíveis. Segundo José Miguel Júdice

288

:

A função arbitral é expressão de um sistema alternativo ao judicial para a resolução de litígios. Por isso tem uma ontologia diversa da função judicial. Mas possui idêntica dignidade e poder, pois desempenha um papel social equivalente em dignidade e racionalidade.

285 MARQUES, Ricardo Dalmaso. O dever de revelação do árbitro. São Paulo: Almedina, 2018, p. 75.

286 “[...] a arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e

pública no seu resultado" (CORTEZ, Francisco, A arbitragem voluntária em Portugal - Dos ricos homens aos tribunais privados. In O Direito, ano 124°, 1992, III e IV, pág. 555 apud LUCAS, 2018).

287 “De todo modo, ao se analisar a extensão e as consequências dos deveres e obrigações dos árbitros, repise-se que se deve necessariamente analisá-los também sob o ponto de vista contratual, em complemento ao jurisdicional.

Especificamente no tocante aos deveres listados pela Lei 9.307/96 "imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição", previstos no artigo 13, parágrafo 6°, complementados pelo artigo 14, os princípios advindos do princípio do devido processo legal, conforme o artigo 21, parágrafo 2°, e também ao dever de revelação, referenciado no artigo 14, parágrafo 1° - verifica-se que são eles de natureza tanto processual como contratual, uma vez que o "contrato de árbitro" também os compreende. Não se pode interpretá-los como limitados ao campo processual e ético.”. (MARQUES, op. cit., p. 95).

288 JÚDICE, José Miguel. Árbitros: Características, perfis, poderes e deveres. Revista de Arbitragem e Mediação n. 22. São Paulo, jul. 2009, p. 06.

Há, assim, na função do árbitro, deveres e obrigações assumidos perante as partes, e, ainda, aqueles deveres advindos do poder jurisdicional, alguns dos quais comuns aos do juiz togado, relacionados principalmente aos escopos da jurisdição que o árbitro exerce.

De tal modo, temos que a qualidade de um procedimento arbitral é reflexo natural da qualidade do árbitro

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289 CLAY, op. cit., p. 11.

No documento Autoridade do árbitro na arbitragem comercial (páginas 111-118)