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PARTE I – O PROBLEMA E OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1. O PROBLEMA EM SUAS PERSPECTIVAS EMPÍRICA E TEÓRICA

1.3 Contribuições Acadêmicas Sobre o Tema e Questões em Aberto

Um primeiro passo tomado a partir da constatação deste processo de mobilidade territorial foi o de averiguar como a produção acadêmica brasileira o interpretava. Realizamos uma consulta ao Banco de Teses da CAPES, disponível em seu site na internet. Utilizamos para a pesquisa os seguintes descritores: “celulose e papel”, “eucalipto” e “complexo florestal”6. Os resultados da pesquisa indicaram que, no campo das ciências sociais e aplicadas, a grande maioria das teses e dissertações foi produzida em programas de pós-graduação em Economia, Administração e ciências correlatas. Estes trabalhos tratam de temas como a evolução histórica do setor (LOPES, 1998, MOTEBELLO, 2006), as estratégias e o desempenho das empresas (DEVAI, 2001, VASQUES, 2006), e práticas de sustentabilidade e governança corporativa, visando a captação de recursos no mercado financeiro (OUCHI, 2006; SOARES, 2003; NOSSA, 2002). Há um número significativo de trabalhos produzidos pela Engenharia Florestal, como trabalhos que analisam aspectos econômicos e administrativos do setor, mas sobretudo os processos produtivos da atividade silvicultural voltada à produção de celulose, como manejo de solos, controle de pragas, espaçamentos dos cultivos, manipulação

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Após realizar a listagem dos trabalhos produzidos e selecionar aqueles mais coerentes com os objetivos da pesquisa, buscou-se obtê-los nas bibliotecas digitais das universidades. No caso dos trabalhos não disponíveis nas bibliotecas digitais, realizou-se pesquisa na plataforma de currículos Lattes do CNPQ e mesmo na ferramenta de busca google, com o intuito de estabelecer o contato direto com os autores. Foram enviadas mensagens por correio eletrônico aos autores solicitando os trabalhos, procedimento que obteve êxito em cerca de metade dos casos.

genética e exploração organizada dos blocos florestais e o transporte de toras de madeira, com base em modelos computacionais.

Já os trabalhos das ciências humanas concentram-se nos impactos das monoculturas de eucaliptos sobre populações locais, as estratégias de adaptação destas e o ativismo contra estes empreendimentos, sobretudo nas áreas onde estes se desenvolvem a mais tempo, como Minas Gerais, norte do Espírito Santo e sul da Bahia, (BRITO, 2006; MARTINS, 2005).

A contribuição da Geografia sobre o tema é escassa. Há poucos trabalhos a respeito, tanto por parte da geografia física, com estudos sobre mudanças no uso do solo e na paisagem (SANTOS, 1996; LIMA, 1998), quanto por parte da geografia humana, cujos trabalhos concentram-se na escala local dos impactos sociais e ambientais e dos conflitos entre empresas e comunidades locais, tendo como exemplo de trabalho obtido a dissertação de Joly (2007).

Esta breve revisão não tem o objetivo de ser exaustiva, mas de identificar os principais temas abordados pelas pesquisas. Uma listagem dos trabalhos encontra- se em anexo (Anexo A).

A busca por averiguar o conhecimento já produzido sobre o tema permitiu que chegássemos a conclusão da existência de uma lacuna nas abordagens construídas. Por um lado as ciências econômicas e correlatas abordam, sobretudo, as estratégias das empresas, sejam econômicas, tecnológicas, financeiras e de propaganda, mas negligenciam o papel do território. A geografia, por seu turno, tem privilegiado especialmente a escala local dos fenômenos, com destaque para os impactos dos empreendimentos e os conflitos entre territorialidades.

Percebe-se uma carência de estudos que busquem compreender a dinâmica espacial mais ampla deste setor produtivo, especialmente quais as motivações subjacentes aos processos de busca por novos territórios.

Mais do que fornecer uma resposta para um problema de ordem empírica, a pergunta levantada justifica-se por iluminar o que consideramos ser um problema de ordem teórica.

Primeiramente, é ponto crucial para a análise entender que as empresas de celulose e papel em atuação no Brasil tratam-se de agroindústrias, por apresentarem uma estrutura vertical que integra a produção desde o cultivo e manejo de florestas7 até as etapas finais da cadeia produtiva, diferentemente do que ocorre nos países da América do Norte e Europa, nos quais ocorre a exploração de reservas naturais. Trata-se, como já foi dito, de um modelo construído no Brasil a partir dos anos 1960, cujo papel do Estado foi crucial. Um exame mais minucioso desta trajetória está presente nos capítulos 4 e 5 deste texto.

Diferentemente do modelo extrativista norte-americano e europeu, baseado no uso de florestas boreais nativas, o caráter agroindustrial dos empreendimentos no Brasil faz com que cada nova planta instalada exija o cultivo prévio de uma base florestal que a abasteça, estabelecendo a necessidade de terras para sua reprodução econômica. Isto implica que cada ação em termos de estratégia econômica por parte destas empresas deve ser acompanhada de uma estratégia territorial.

A relação das agroindústrias de celulose e papel com o território pode ser definida, no nível da estratégia econômica, por fatores como os apresentados por Belik (1992): a) o custo de produção da matéria-prima, b) as características do

processo produtivo e c) o padrão de concorrência vigente no setor.

Em relação ao custo, este tende a ser elevado, considerando a necessidade de grandes extensões de terra. No início da década de 1990, Belik (1992) apontava que uma planta industrial com escala de 500 mil toneladas por ano necessitava de 50 mil hectares de base florestal. A escala das novas plantas em construção no Brasil ultrapassa a marca de um milhão de toneladas de celulose produzidas por ano, o que, apesar dos avanços em termos de produtividade, permite vislumbrar a necessidade de terras deste setor.

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A palavra “floresta” pode representar obstáculo à compreensão do complexo floresta-celulose-papel como uma atividade agroindustrial. Do ponto de vista biológico, nada mais distante de uma floresta do que um cultivo homogêneo de eucaliptos, que na verdade deve ser entendido como uma “lavoura de árvores”. Usaremos a expressão floresta, ou florestamento ao longo do texto no sentido de evitar confusão entre as citações e as várias referências à literatura do setor, que utilizam largamente a expressão floresta.

No que tange o processo produtivo, as indústrias necessitam de fontes de matéria-prima alimentando as máquinas sem descontinuidade (BELIK, 1992), exigindo uma coordenação bastante sofisticada entre a produção da matéria-prima e o processamento industrial, além de uma localização cuja distância entre base florestal e planta industrial torna-se fator de competitividade no setor, devido seu reflexo sobre os custos de produção.

Quanto ao padrão de concorrência, com tendência de concentração, as escalas elevadas atuam no objetivo de impor barreiras à entrada de novas empresas (BELIK, 1992) e também como mecanismo de redução de custos.

Tais fatores, especialmente os últimos dois, atuam no sentido de garantir suprimento cativo para as indústrias, por que eliminam concorrentes. Isto dá um peso estratégico para a madeira, afirma Belik (1992). Se a madeira é estratégica, a terra onde a mesma é produzida é igualmente importante.

Na medida em que necessitam da terra enquanto suporte para o cultivo vegetal e enquanto substrato no qual ocorrem os processos físicos e biológicos da produção, apesar do elevado patamar tecnológico em que se encontram tais empresas, por se tratarem de atividade agroindustrial precisam lidar com pelo menos dois obstáculos no seu processo de reprodução econômica:

a) O tempo ou o ritmo da natureza: este é expresso pelo ciclo reprodutivo das espécies vivas e mesmo por seu processo de decomposição depois de abatidas. A transformação da natureza em valor de troca através da agricultura passa por uma etapa, que sucede o cultivo/cria e antecede a colheita/abate e processamento, na qual nada mais pode ser feito além de aguardar o pleno desenvolvimento de determinada espécie, diferentemente da indústria que utiliza recursos inorgânicos, a qual pode produzir de forma ininterrupta, criando um tempo sem descontinuidades, ou um tempo artificial como posto por Pierre George (1968). Ao contrário, a indústria que se relaciona com a agricultura precisa lidar com este descompasso entre o tempo de trabalho e o tempo de produção, o que repercute sobre o processo de acumulação de capital.

b) A terra como meio fundamental de produção: a despeito do desenvolvimento tecnológico da atividade agrícola experimentado ao longo da segunda metade do século XX, a necessidade de um substrato material, a terra, com condições mínimas de suportar o desenvolvimento de organismos vegetais, trata-se de uma imperiosidade não contornável, pelo menos na escala dos empreendimentos analisados8. É necessário imobilizar parte do capital produtivo na compra ou arrendamento de terras, estabelecendo-se aí uma relação entre distintas classes sociais, especialmente capitalistas e proprietários fundiários (MARTINS, 1995), mas não somente estas, como será visto.

Como proposto por Cholley (1964), tem-se a convergência entre os processos físicos, biológicos e humanos, sendo esta convergência responsável pela configuração do espaço, segundo o autor. Trata-se de uma abordagem muito atual e importante, se pensarmos que a biotecnologia trata-se hoje de uma das fronteiras da ciência e dos processos produtivos no período contemporâneo.

Na constituição do que o autor conceitua como combinação, acentua-se o peso da variável humana sobre os fatores físicos e biológicos. O primeiro dos obstáculos (alínea a) tem sido, se não eliminado pelo menos minimizado, inicialmente através da mecanização e quimificação da agricultura. Mais recentemente, o aporte fornecido pela genética e biotecnologia atuou no sentido de permitir a seleção das espécies ou a produção de novos indivíduos somando potencialidades e subtraindo possíveis deficiências que se manifestariam em suas relações ecológicas, também acelerando seus ciclos naturais de reprodução e desenvolvimento. Sistemas de informação e logística também são fatores importantes para minimizar as disparidades da reprodução do capital no campo frente à cidade e representam parcela crescente dos custos da produção (SANTOS, 2005).

Por outro lado, o comportamento das firmas frente ao obstáculo da propriedade da terra num país marcado tanto pela modernização de diversos setores da agricultura e a consequente demanda por território, quanto pelo

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É preciso reconhecer os avanços da hidroponia, técnica que dispensa a necessidade de um solo para a produção agrícola. Entretanto, ainda é empregada apenas em pequenas escalas e não dispensa a necessidade de espaço para sua prática.

agravamento das reivindicações e dos conflitos em torno da questão agrária e a organização espacial decorrente desta interação de fatores emerge como uma questão crucial para o entendimento do problema.