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Contribuições da análise crítica do discurso para a compreensão dos processos de

Nesta seção, exploro as contribuições teóricas da análise crítica do discurso (ACD) para a compreensão dos processos de negociação de sentidos e dos mal-entendidos. Para tanto, busco justificar como essa relação pode contribuir para a análise das interações no contexto da comunicação intercultural em teletandem, tendo em vista a identificação desse fenômeno em nível discursivo. Primeiramente, apresento, brevemente, um panorama da ACD como uma abordagem de pesquisa.

A ACD caracteriza-se como uma abordagem de análise linguística que reconhece a ligação entre o uso linguístico e os processos sociais e culturais mais amplos, na constituição do discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Neste sentido, essa abordagem dialoga com diferentes campos das ciências sociais e ramos de estudos linguísticos. A abertura analítica para processos sociais, políticos e ideológicos no uso e constituição da linguagem molda a ACD como uma teoria transdisciplinar, que serve a diversos campos de pesquisa.

Fairclough (2001) orienta a compreensão da ACD que embasa este trabalho e define o conceito central nessa abordagem – discurso – como “[...] um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação.” (p. 91). Assim, esse conceito coloca-se dialeticamente tanto como uma condição como uma causa da estrutura social. Para fins de análise, os discursos na ACD, no modelo proposto por Fairclough (2001) e também neste trabalho são acessados na materialidade de “textos”, termo que abrange qualquer produto escrito ou falado e que, no caso deste trabalho, corresponde a transcrições de interações de teletandem.

Segundo Fairclough (2001), na ACD é possível empreender uma análise textual que considere os contextos sociais nos quais os textos são produzidos, tendo em vista a compreensão de como as práticas linguístico-discursivas estão atreladas a essas estruturas sociais e contextuais mais amplas. Desse modo, a ACD tem como objetivo depreender as intersecções e semioses entre a linguagem e outros elementos contextuais no processo de produção de sentidos e as relações de poder e ideológicas nas dimensões micro e macro das interações. Baseando-se em Fairclough (2001), Tilio (2010) considera que,

Toda prática social inclui atividade produtiva, meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais e semioses (formas de produção de significados; linguagem em seu sentido mais amplo, incluindo signos verbais e não verbais). Todos esses elementos estão inter- relacionados de maneira dialética (Harvey, 1992), ou seja, apesar de diferentes entre si, não são distintos, independentes um do outro; todos estão interligados de alguma forma, de maneira que um sempre internaliza e é internalizado pelos demais. (TILIO, 2010, p. 93)

Portanto, a ACD considera essas semioses como constituintes dos discursos e busca compreender como elas interagem na produção e negociação de sentidos, por meio das representações dos interagentes.

Sarangi (1994), em seu artigo “Intercultural ou não?, além da celebração de diferenças culturais na análise de mal-entendidos”, destaca as contribuições da ACD para a abordagem analítica desse tema. Segundo o autor, a ACD rompe com uma tradição comum em antropologia cultural, sociolinguística interacional e pragmática cross-cultural. Guardadas as devidas diferenças entre cada um, esses campos limitam-se na medida em que, na tentativa de explicar comportamentos e características de grupos, incorrem em um processo de “estereotipação analítica” e “tematização de diferenças culturais” que faz uso de mal-entendidos para ratificar diferenças culturais. Diante desse cenário, a abordagem teórica da ACD surge como uma alternativa para compreensão dos fenômenos dos mal-entendidos no contexto de comunicação intercultural.

A primeira implicação da ACD neste trabalho recai sobre a relação língua e cultura. Na ACD, o discurso, conforme definição apresentada, é considerado a materialização dessa relação. A compreensão de discurso como uma forma de ação, representação e significação do mundo, nos permite afirmar, conforme Piller (2007), que nós não temos uma cultura, mas que a construímos discursivamente. Essa compreensão discursiva de cultura relaciona-se à temática de mal-entendidos ou falhas na comunicação na medida em que estes não passam a

ser explicados apenas em termos de e a partir de causas relacionadas a diferenças culturais (de modo essencialista), mas pela mobilização dos conhecimentos dos interagentes e negociação por meio do diálogo e outras formas de interação social, nas quais os sentidos sobre cultura são construídos.

Segundo Sarangi (1994), a análise de mal-entendidos a partir da ACD se dá também pela centralidade que tal abordagem atribui à relação dialética entre estruturas sociais e práticas linguísticas. Implicada nesta relação está a necessidade de analisar como mal- entendidos e falhas discursivas refletem o que Bourdieu (1991 apud SARANGI, 1994) chama de “hábito”, ou seja, como a performance discursiva dos interagentes se dá, a partir de suas escolhas temáticas, linguísticas etc. para manter a interação. Segundo o autor, as interações e estratégias linguísticas são marcadas mais pelo interesse dos interagentes em serem ouvidos, acreditados, obedecidos, do que pela preocupação em empregar estratégias linguísticas para serem entendidos, de modo a evitar mal-entendidos. Nesse sentido, a análise de mal-entendidos também deve considerar as características da relação interpessoal entre os interagentes em teletandem, de modo a considerar os tipos de esforços empreendidos no engajamento dialógico para manter a parceria e conduzir a situação comunicativa.

Os aspectos da ACD até aqui analisados ajudam a delimitar a abordagem sobre a participação dos pares no diálogo para negociação de sentidos e os mal-entendidos no processo de comunicação intercultural. Primeiramente, porque a ACD considera o elemento cultural, visto, aqui, como uma construção discursiva, como um dos vários outros aspectos que interagem no processo de produção de sentidos em uma interação. Em segundo lugar, na ACD, a compreensão de cultura como discursivamente construída orienta a percepção dos modos como os interagentes em contextos institucionais diferentes e falando de lugares discursivos diversificados (como no teletandem) constroem significados sobre suas culturas e identidades por meio das representações que negociam no processo interativo.

Finalizando este capítulo, nele tratei dos componentes do arcabouço teórico desta tese. Esses componentes teóricos são apresentados conforme sequência a seguir: (a) os conceitos, caracterização das modalidades de teletandem e processos envolvidos na prática de teletandem e da mediação pedagógica nesse contexto, (b) as características da comunicação intercultural, da concepção de cultura nesse campo de estudo, os posicionamentos dos interagentes em situações interculturais de interação e a emergência de

mal-entendidos, (c) a relação entre mal-entendido e cultura, (d) a amplitude do conceito de mal-entendidos e conceitos que com ele dialogam e (e) a ACD como perspectiva teórica de compreensão dos processos de negociação de sentidos.

No capítulo a seguir, são apresentadas as orientações metodológicas para a análise dos dados. Ele é iniciado com uma localização desta pesquisa no paradigma qualitativo e com a apresentação da concepção tridimensional de discurso e aprofundamento das características da ACD que moldam a análise.