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Mal-entendido e cultura: compreendendo e problematizando essa relação

Conforme observamos no item anterior, o fenômeno dos mal-entendidos está associado a diferenças culturais e linguísticas em estudos no contexto de comunicação intercultural. Frequentemente, tais diferenças se baseiam em perspectivas essencialistas de cultura como um atributo compartilhado de um grupo. Nessa discussão, pudemos perceber, também, que o conceito de cultura está frequentemente restrito à dimensão de cultura nacional. No entanto, afirmamos que, nesta tese, essa relação entre cultura e mal-entendidos será explorada a partir dos sentidos sobre cultura como produzidos no diálogo dos interagentes em teletandem. Trataremos os mal-entendidos a partir dos posicionamentos que esses interagentes tendem a assumir como representantes de suas culturas, conforme exemplos apresentados no capítulo de análise de dados.

Diversos estudos têm se dedicado a definir e explorar as diferentes dimensões e definições dos conceitos de cultura e a relação entre língua e cultura (PILLER, 2007; KRAMSCH, 1993, 2011; BYRAM & FENG, 2004, para citar alguns). Nesta seção, buscamos refletir sobre a relação entre mal-entendidos e cultura, a partir da perspectiva de Piller (2007), em diálogo com Welsch (1994), com o intuito de delimitar a relação entre mal- entendidos e cultura neste trabalho.

Piller (2007), baseada em Scollon e Scollon (2000, 2001), ao tratar da noção de cultura no campo de estudos da comunicação intercultural, faz uma distinção entre três tradições nesse campo: comunicação cross-cultural16 (cross-cultural communication), comunicação intercultural (intercultural communication) e comunicação interdiscurso

(interdiscourse communication). Para delimitação e caracterização do foco desta pesquisa, detemo-nos à discussão das duas primeiras tradições.17

Segundo a autora, vários estudos em comunicação cross-cultural consideram a existência de grupos culturais distintos e buscam as diferenças em suas práticas comunicativas por meio da comparação com outros grupos. Publicações como ‘Gerenciamento de conflitos em organizações tailandesas’18(ROJJANAPRAPAYON et al., 2004), ‘Qual a base da cultura

americana’19(ALDRIDGE, 2004), ‘Comunicação com egípcios’20

(BEGLEY, 2003), citadas em Piller (2007), são comuns nesse campo de estudo e evidenciam uma ênfase no conceito de nação, nacionalidade e etnicidade. Essa abordagem, comum em estudos sobre as relações políticas, econômicas e diplomáticas entre diferentes países, busca compreender e construir uma unidade que delimita e caracteriza um grupo. Para Welsch (1999), conforme discutimos na introdução, essa perspectiva de cultura se baseia em abstrações e generalizações que têm uma função normativa e limitada, na medida em que as fronteiras geográficas e simbólicas entre os países, principalmente os ocidentais, se tornam cada vez mais fluidas e instáveis.

Para Piller (2007), estudos em comunicação intercultural, por sua vez, partem do reconhecimento de diferenças dentro de grupos culturais diversos, mas exploram suas práticas comunicativas em encontros um com o outro. A autora também faz uma distinção entre comunicação intercultural como um campo de pesquisa (marcada por ela com letras maiúsculas) e discursos sobre cultura e comunicação intercultural. Essas duas últimas estão frequentemente sustentadas por uma visão essencialista, conforme descrito por Welsch (1994), caracterizada pela distinção entre culturas A ou B, ou seja, como grupos fechados e diferenciados por questões culturais e linguísticas.

Nesse sentido, esta pesquisa insere-se no campo dos estudos sobre Comunicação Intercultural (com letra maiúscula), na medida em que considera que as diferenças culturais pertencem ao nível do discurso e são construídas a partir das negociações de sentidos no diálogo entre os interagentes. Estes, por sua vez, se colocam nas interações como

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A tradição da comunicação interdiscursiva (interdiscourse communication) contempla o papel do discurso na emergência e negociação do conceito de cultura nos diálogos interculturais. No entanto, essa perspectiva é contemplada nesta tese por meio da abordagem da análise crítica do discurso e, portanto, não é desenvolvida para os propósitos desta pesquisa.

18No original: “Conflict management in Thai organizations” 19No original: “What is the basis of American culture” 20No original: “Communication with Egyptians”

representantes de suas culturas e trazem para a interação diferentes conhecimentos e experiências individualmente e socialmente compartilhadas, porém não delimitadas por barreiras nacionais definitivas. Embora essa abordagem ainda pressuponha a distinção cultural entre grupos – como bolhas, segundo Welsch (1999) –, neste trabalho essas diferenças não são percebidas de modo determinístico, mas como constituintes de um processo de reprodução discursiva de sentidos compartilhados e negociados sobre cultura nacional. Além disso, a localização do contexto teletandem no campo dos estudos sobre comunicação intercultural se justifica porque os estudos sobre teletandem revelam que o estabelecimento de diferenças culturais é uma constante nas interações (TELLES, 2011; TELLES, 2015; ZAKIR, 2015, 2016; SALOMÃO, 2015; COSTA, 2015; FUNO, 2015; FREITAS, 2015).

Para superar as limitações apresentadas em cada abordagem (baseadas em suposições de que as pessoas têm ou pertencem a uma cultura), Piller (2007) propõe que o escopo das pesquisas em comunicação intercultural baseiem-se em abordagens sócio-construcionistas. Isso porque essas abordagens consideram o papel das práticas linguísticas e sociais na constituição de percepções sobre cultura e identidade. Um ponto importante levantado pela autora em relação à percepção de unidade conferida a grupos, por meio de características como nação, religião, etnicidade, gênero etc. é a de que essas características os constituem como “comunidades imaginárias” (ANDERSON, 1991) e são construídas e mantidas por meio do discurso. Este trabalho, portanto, alinha-se à proposta da abordagem sócio- construcionista (ou sócio-interacionista) apresentada por Piller (2007). Isso porque tal proposta aborda as negociações de sentido sobre cultura, a partir da caracterização da interação oral e da emergência de mal-entendidos nas relações colaborativas de aprendizagem analisadas.

Ainda, segundo Piller (2007), cultura não existe no isolamento. Para a autora, a filiação de pessoas a diferentes comunidades discursivas é fruto de processos de hibridização (BHABHA, 1994), causados por movimentos de migração e pela globalização. Sob essa perspectiva, a autora conclui que toda comunicação é intercultural por natureza,

mas que nação e etnicidade21 continuam sendo traços predominantes para constituição de abordagens tradicionais de pesquisa no campo da comunicação intercultural.

No âmbito da discussão sobre mal-entendidos, Piller (2007) os insere como um dos enfoques em comunicação intercultural sendo, com frequência, apoiados e justificados em construções discursivas sobre diferenças culturais. Segundo a autora, a obsessão (e pressuposição) por “diferenças culturais” e por “cultura como um grupo homogêneo” coloca em segundo plano outros aspectos que podem desencadear mal-entendidos, tais como diferenças linguísticas, proficiência, competência comunicativa, desigualdades etc. Assim, a autora afirma que cultura não deve ser vista como uma variante chave na compreensão de mal-entendidos. Dessa mesma forma, diferenças linguísticas não devem ser tomadas de forma descontextualizada na análise de mal-entendidos. Ao citar Bourdieu (1991), Piller afirma que muitos estudos em comunicação intercultural baseiam-se em uma definição oficial de língua como uma unidade política, estruturada, sem considerar os diferentes usos e contextos de interação, bem como os papéis assumidos pelos interagentes em diferentes relações sociais.

Concluindo, conforme observamos nesta seção, a relação entre cultura e mal- entendidos é um pressuposto no campo de estudos da Comunicação Intercultural. Tais estudos são explorados a partir de diferenças culturais, podendo partir de uma visão tradicional de cultura como um grupo homogêneo. No entanto, adotando a proposta de Piller (2007), baseamo-nos, nesta tese, em uma perspectiva de cultura como uma construção discursiva. Cultura pode se relacionar com mal-entendidos, mas a partir das negociações de sentido, dadas pelo engajamento dos interagentes com a parceria em teletandem. Nesta mesma linha, consideramos, também, as diferentes variantes constituintes das parcerias, como as relações de poder, usos linguísticos e papéis dos interagentes.

21 Holliday (1999) considera nação e/ou etnicidade como “grande cultura” (big culture) e propõe uma mudança

do foco para o que ele denomina de “pequena cultura” (small culture). Para o autor, esta última é caracterizada a partir de uma série de comportamentos coesos no desenvolvimento de atividades dentro de qualquer grupo social, como a família, a escola, etc. Esse conceito relaciona-se ao conceito de comunidade de prática, definido por Lave e Wenger (1991), Eckert e McConnell-Ginet (1992) como grupos de pessoas que têm um envolvimento em uma causa comum e que compartilham os modos de fazer, de se expressar, crenças, valores e relações de poder dentro do grupo. Segundo os autores, o que diferencia uma comunidade de prática de uma comunidade tradicional, é o sentido de pentencimento e a prática que este pertencimento engendra nas relações.