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Mal-entendidos: níveis, diferenças e possíveis implicações para a análise de dados

CAPÍTULO 2: METODOLOGIA DE PESQUISA

2.3 Mal-entendidos: níveis, diferenças e possíveis implicações para a análise de dados

teletandem analisadas, são utilizadas neste trabalho as categorias propostas por Linell (1995) e ampliadas por Hinnenkamp (2002, 2003). A perspectiva desses autores sustenta-se em um tripé processual que abrange: (a) a participação de ambos os interagentes no diálogo; (b) a identificação de mal-entendidos por parte deles ou por parte de um observador externo; e (c) a natureza intersubjetiva dos processos de “entender” e “mal-entender”.

Segundo Linell (1995), “entender” e “mal-entender” não são processos lineares de decodificação de um significado inerente ao sistema linguístico. Ambos, segundo o autor, são dependentes de aspectos contextuais, do diálogo com outros textos e do conhecimento das estruturas e premissas da comunicação. No processo de interpretação, portanto, os enunciados produzidos e os contextos envolvidos estabelecem uma relação paralela e são constituintes do processo comunicativo. Além disso, não-entendimento, entendimento parcial (senso comum) e mal-entendido também estão sujeitos à intersubjetividade dos interagentes no diálogo. Isso implica dizer que ambos contribuem para os processos de interpretação e condução do diálogo. Nesse sentido, o entendimento é uma meta tanto do falante quanto do ouvinte e se constrói a partir da representação (expressão de enunciados e produção de sentidos) e da interpretação do ouvinte (p. 180). O mal-entendido, o qual se associa à compreensão e interpretação do ouvinte, pode ser decorrente, portanto, também da má-representação (expressão enganosa ou incompleta) por parte do falante (p. 180-181).

Tendo em vista a natureza ambígua e incompleta da comunicação, Linell (1995) constata que não existe no diálogo um entendimento totalmente completo e absoluto. Nesse sentido, os interagentes têm apenas um controle parcial sobre os sentidos possíveis e, portanto, a não identificação de mal-entendidos nas interações não significa que eles não ocorreram. A busca por precisão e progressão do diálogo pode ser encaminhada por meio de rotinas e procedimentos de checagem de compreensão, pistas contextuais e confiança mútua (intersubjetividade). No entanto, para Linell (1995), a progressão da comunicação se dá na medida em que o entendimento alcançado possa ser considerado “suficiente” para que o diálogo prossiga. Isso porque, segundo o autor, muitas interferências reparadoras (diretas ou indiretas) podem interromper o fluxo da comunicação e, além disso, a interação oferece diferentes momentos para que o entendimento possa ser negociado e atualizado. Outro fator importante na construção do entendimento e negociação de mal-entendidos é que a demanda por precisão depende, além da relação interpessoal estabelecida, do tipo de situação social,

gêneros26, contextos etc. Assim, em linhas gerais, um bate-papo informal entre amigos pode ser diferente de uma reunião jurídica de mediação de conflitos, por exemplo, em relação à necessidade de manter um maior controle sobre os sentidos possíveis.

A partir das condições expostas acima para a construção do entendimento (intersubjetividade, rotinas de checagem de compreensão, situação, gênero, contexto etc.), no caso do contexto teletandem, essa construção e negociação de mal-entendidos se dão em uma situação comunicativa: intercultural, online, institucional e colaborativa entre aprendizes de línguas estrangeiras. Essas características podem determinar os modos como os interagentes conduzem o diálogo para a negociação e construção de sentidos. Por isso, na construção da perspectiva sobre os mal-entendidos, também é fundamental nesta tese descrever e analisar os processos de negociação dos conhecimentos compartilhados pelos interagentes. É nesse sentido que as categorias propostas por Linell (1995) e ampliadas por Hinnenkamp (2002, 2003) contribuem para a abordagem do fenômeno dos mal-entendidos, tendo em vista sua abrangência do caráter fluido e inerente dos mal-entendidos nas negociações de sentido.

Linell (1995) divide mal-entendidos em três categorias: a) declarados (overt), b) latentes (latent) e c) velados (covert). A primeira categoria, segundo o autor, inclui mal- entendidos que são diagnosticados e corrigidos declarada e conscientemente pelos interagentes. Mal-entendidos latentes são percebidos e reparados gradualmente pelos interagentes em interações nas quais o fluxo da conversação é marcado por discrepâncias, repetições, sinais incoerentes e confusos. Mal-entendidos velados, por sua vez, podem ser associados a momentos de desconforto, mas os interagentes não percebem suas causas durante a interação, ou seja, não conseguem identificar, diagnosticar e abordar o mal- entendido. Esses podem ser identificados posteriormente por meio da interpretação de um observador externo.

Hinnenkamp (2002, 2003), baseado nas três categorias de Linell (1995), diferencia sete tipos de mal-entendidos. Para tanto, o autor baseia-se na identificação ou não dos mal- entendidos e nos encaminhamentos que os interagentes dão a eles. A seguir, sintetizamos os

26 Para um maior detalhamento do conceito de gênero, ver Fairclough (2001, p. 161), que o define como “[...] um

conjunto de convenções relativamente estável que é associado com, e parcialmente representa, um tipo de atividade socialmente aprovado, como a conversa informal, comprar produtos em uma loja, uma entrevista de emprego, um documentário de televisão, um poema ou um artigo cientifico. Um gênero implica não somente um tipo particular de texto, mas também processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos.”

sete tipos de mal-entendidos reconhecidos pelo autor, baseado na distinção de Linell (1995) entre mal-entendidos declarados, latentes e velados.

Quadro 3: Sete tipos de mal-entendidos

Mal-entendidos declarados: um ou ambos os interagentes identificam, evidenciam e refletem sobre o mal-entendido.

M1

O mal-entendido é percebido e corrigido pelos interagentes logo que há uma oportunidade. Após a correção, a interação segue o fluxo normal, baseada no momento anterior ao mal- entendido.

M2

O mal-entendido é percebido e corrigido, mas a interação continua com base no mal- entendido, sem retorno ao ponto anterior ao seu acontecimento.

Mal-entendidos latentes: um ou ambos os interagentes percebem o mal-entendido, mas não o tematizam ou refletem sobre ele durante a interação.

M3

Os interagentes percebem um mal-entendido, este é reparado e a interação segue o fluxo normal. Não há negociação ou reflexão sobre o mal-entendido durante a interação.

M4 Esse tipo de mal-entendido é solucionado sem que haja um reparo direto ou uma identificação de sua origem.

M5 Esse é o tipo de mal-entendido que não pode ser resolvido e interrompe a comunicação ou faz com que a mesma se reinicie com uma mudança de tópico.

Mal-entendidos velados: os interagentes não percebem a ocorrência de um mal-entendido durante a interação.

M6

Apenas um observador externo consegue perceber a ocorrência de um mal-entendido ou um dos interagentes, após ser informado por ele.

M7

Nenhum observador externo consegue identificar um mal-entendido, mas um dos participantes pode ter a sensação de que houve um mal-entendido originado por ele ou por seu interlocutor. O mal-entendido permanece sem resolução.

Fonte: Baseado em Hinnenkamp, 2002, 2003; Linell, 1995.

Os tipos de mal-entendidos descritos por Hinnenkamp (2002, 2003) nos permitem identificar as diferentes formas como eles podem se manifestar e caracterizar a participação de cada interagente no processo de identificação e negociação ou não de suas ocorrências. No entanto, os modos como podem ser identificados diferenciam-se em uma linha muito tênue entre a possibilidade de identificação e reflexão explícita ou não identificação de um mal- entendido pelos interagentes ou por um observador externo. Dada a natureza intrínseca dos mal-entendidos à comunicação e da complexidade dos processos de negociação, destacamos na análise os níveis dos mal-entendidos declarados e latentes, pois estes consideram o

protagonismo dos próprios interagentes na identificação e os mal-entendidos velados, pois estes consideram a perpectiva de um observador externo na identificação e reflexão sobre os processos de negociação de eventuais fenômenos linguístico-discursivos percebidos como ou aproximados do conceito de mal-entendidos.

A partir da identificação de mal-entendidos, com o foco para os processos de negociação de sentidos permeados por questões linguísticas, discursivas e sociais, de acordo com a perspectiva tridimensional de análise da ACD, será possível caracterizar, consequentemente, a natureza de suas ocorrências em diálogo com diferentes níveis de análise: fonético (má compreensão de estruturas sintáticas, abreviações, pronúncia de palavras etc.), semântico (decorrentes do uso de gírias, dialetos, homônimos, expressões subjetivas e∕ou abstratas etc.), pragmático (uso de expressões indiretas, construções idiomáticas, ironias etc.) (SANNOMIYA, 1987) ou discursivo (neste trabalho, referente, também, às representações e negociações sobre cultura no âmbito do conhecimento de mundo dos interagentes).

Nesta seção, exploramos as categorias de Linell (1995) e Hinnenkamp (2002; 2003) que dão suporte para a observação de mal-entendidos nas sessões orais em teletandem. A utilização dessas categorias, portanto, se dá de modo complementar à análise empreendida por meio da ACD e é considerada apenas para a abordagem das transcrições das interações das duplas focais. A abrangência dessas categorias permite considerar a participação dos interagentes na identificação e negociação desse fenômeno durante a interação, dando, assim, ênfase ao caráter intersubjetivo dos mal-entendidos na comunicação.