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CAPÍTULO 3: ANÁLISE DOS DADOS

3.3 Os mal-entendidos na percepção dos interagentes brasileiros

3.3.1 Nível de proficiência

O nível de proficiência foi indicado, explicitamente, por 3 interagentes, como um fator relacionado ao mal-entendido por eles descrito ou ao modo de interagir, conforme destacado nas narrativas a seguir. Para análise dessas narrativas, partimos de considerações sobre o nível de proficiência, mas consideramos também os aspectos linguísticos e sócio-discursivos que podem ser observados na estruturação da experiência e concepção de mal-entendidos para os interagentes. Iniciamos com a narrativa da interagente Mica, doutoranda em História.

N1 – Mica: Possuo 2 parceiros de interação, um rapaz e uma moça. A moça já esteve no Brasil por 10 meses e fala muito bem o português, mas o rapaz ainda é iniciante no português, creio que por isso nossas interações estão mais sujeitas ao mal-entendido. Dois mal-entendidos já ocorreram com meu parceiro: o primeiro ele me perguntou se eu alugava filmes ou ia ao cinema, tentei explicar que na minha cidade atual o cinema é muito ruim, por isso aluga, mas que já não é uma prática comum, muitos preferem assistir online, mas creio que ele não entendeu pois tornou a fazer a pergunta, se eu ia ao cinema ou alugava filmes!; a segunda é resultado da "orientação" do professor de meu colega, pois entre as perguntas determinadas previamente determinou que os alunos deveriam nos perguntar se "ainda fazemos batucadas", mas meu parceiro disse/escreveu batacadas ... logo não fazia o menor sentido pra mim, pedi que ele perguntasse ao seu professor a palavra novamente e que na interação seguinte nós tentaríamos falar sobre isso! Espero ter ajudado.

Mica estabelece uma relação direta entre o nível de proficiência dos pares interagentes e a possibilidade de mal-entendidos (“mas o rapaz ainda é iniciante no português, creio que por isso nossas interações estão mais sujeitas ao mal-entendido”). A associação de Mica entre nível de proficiência e os mal-entendidos descritos por ela se dá, inicialmente, no nível linguístico de compreensão dos significados pretendidos por dificuldades do parceiro, aparentemente, de compreensão oral. O primeiro mal-entendido descrito é decorrente da possível incompreensão, por parte do parceiro, de sua resposta para a pergunta sobre ir ao cinema ou alugar filme. O segundo é decorrente do uso equivocado do parceiro para a palavra “batucadas”.

No primeiro caso, é possível observar que pode ter havido certo esforço dos interagentes em negociar os sentidos. Essa afirmação é possível, pois Mica indica que “tentou explicar” e, após ter explicado, o parceiro “voltou a fazer a pergunta”. No segundo caso, o empreendimento de uma negociação de sentidos parece não ter sido eficaz para o processo de identificação do parceiro sobre a correta pronúncia ou morfologia da palavra “batucadas”. A narrativa não nos fornece elementos mais consistentes para que possamos identificar outras questões relacionadas ao processo de negociação de sentidos entre Mica e seus pares. No entanto, podemos evidenciar a partir dela que a interagente consegue associar mal-entendidos aos aspectos que se sobressaem na materialidade do diálogo, em relação à decodificação de significados de enunciados e vocábulos. Nesse sentido, embora os mal-entendidos expressos por ela possam ter sido desencadeados por questões contextuais e por questões discursivas e sociais, esses não são identificados e problematizados.

No segundo excerto, Leda ressalta o nível de proficiência do parceiro (iniciante no português) e o apresenta como um dos fatores que contribuíram para a configuração da dinâmica interpessoal e das estratégias de comunicação.

N2 – Leda: Meu parceiro é iniciante no português e talvez por isso já chegue com várias perguntas prontas. Algumas vezes não entende o que eu falo em português e quando tento explicar, muda

de assunto. Quando começa o tempo em inglês, sempre fala mais do que eu, não deixando muito

espaço nem fazendo algumas perguntas. Em uma sessão, meu parceiro quis ler uma história que

tinha escrito em português no momento de falar inglês, o que me deixou desconfortável. Pouco

antes disso havia tirado uma dúvida de pronúncia de uma palavra em português com o professor sendo que eu estava ali. Esses acontecimentos acabam por afastar os parceiros e deixar a interação com muito pouca produtividade.

A interagente atribui a dificuldade que o parceiro tem em compreender sua produção oral a uma consequente mudança de assunto quando ela tenta fazer alguma explicação. Além disso, Leda ressalta que há uma dominância do parceiro no controle das partes da sessão na qual o foco é a língua inglesa. Nesse momento da interação, Leda esperava ter mais controle nos turnos de fala para a produção oral na língua-alvo. No entanto, o parceiro parece não respeitar as dinâmicas de separação da língua (ao querer ler uma história em português no momento de prática do inglês) e, aparentemente, parece não possibilitar que sua parceira participe no diálogo de modo harmônico na divisão dos turnos. Esses aspectos são destacados por Leda para caracterizar um desconforto que dá base para a relação dessa dinâmica interativa ao fenômeno dos mal-entendidos. Além da dinâmica de uso da língua, a interagente ressalta aspectos interpessoais relacionados a um desajuste entre a expectativa de colaboração esperada por ela para o contexto teletandem. Nesse sentido, além das questões linguísticas, podemos identificar, de modo superficial, o diálogo entre Leda e seu par permeado por dinâmicas de poder que se materializam no controle do uso da língua.

A mudança de assunto, também já evidenciada na análise das transcrições e explorada mais adiante, é percebida por Leda como uma fuga do parceiro ou um desinteresse para suas explicações. Essa ocorrência relaciona o mal-entendido ao nível sócio-discursivo, na medida em que ela evidencia os esforços e atenção de ambos os interagentes e uma relação de resistência entre eles para manter a atenção na fala um do outro e para aceitar o comportamento do(a) parceiro(a) no processo de negociação. Assim, embora essa narrativa não nos forneça elementos suficientes para uma análise mais profunda, podemos perceber que a relação em teletandem é imbricada por processos de controle relacionados ao poder exercido nas estratégias de negociação de sentidos, expectativas e acordos explícitos ou implícitos entre os pares.

No excerto a seguir, a interagente Dri também relaciona sua percepção do mal- entendido descrito por ela à dinâmica de negociação de sentidos para a compreensão da

produção oral em sua parceria. Diferentemente do caso de Leda, na narrativa de Dri há indícios de um esforço mútuo para compensar dificuldades de compreensão.

N3 – Dri: Algumas vezes eu não compreendi o que a pessoa falou e pedi que ela repetisse, mas mesmo repetindo duas ou três vezes eu não consegui compreender e isso prejudicou o andamento da conversa. E o mesmo aconteceu ao contrário, a pessoa não compreendeu o que eu disse e

embora eu tenha repetido algumas vezes a pessoa continuou sem entender. Quando uma das

partes conhece bem a outra língua é mais fácil de resolver esses problemas. Como uma vez, conversei com uma moça chamada (nome), de Washington e ela falava bem o português, ela conseguiu me explicar com mais clareza as frases ou termos em inglês que eu não conhecia.

A narrativa compartilhada por Dri indica dificuldades em conduzir a interação desencadeadas pelas constantes interrupções para repetição, em decorrência da não compreensão da produção oral em ambos os turnos. A interagente ainda ressalta o fato de que quando um dos interagentes apresenta uma maior proficiência na língua-alvo, o processo de negociação pode ser facilitado, já que pode haver uma recorrência a ambas as línguas utilizadas na interação para negociação de sentidos. Nesse sentido, a percepção de mal- entendidos pela interagente se dá pela constante dificuldade de compreensão entre os interagentes (aparentemente no nível de decodificação dos significados de vocábulos, enunciados e compreensão dos sentidos evocados). Além disso, os constantes movimentos de reparação (repetição) parecem ter ocasionado certo desconforto e comprometido o desenvolvimento dos tópicos do diálogo.

Os três excertos analisados corroboram a compreensão de mal-entendidos como intrínsecos ao diálogo. Nos três casos, as interagentes destacam os movimentos de negociação de momentos de incompreensão, má-representação, equívocos e falhas linguísticas, fonéticas, sócio-discursivas ou semânticas. A recorrência de movimentos de reparação nos excertos alinha-se à compreensão da impossibilidade de construção de um entendimento absoluto (LINELL, 1995) no diálogo. Assim, observamos que as interagentes relatam o empreendimento de movimentos reparadores na medida em que estes possam gerar uma compreensão mínima possível para o prosseguimento do diálogo. No entanto, nos três casos, conforme destacamos na análise, o esforço para a construção de uma compreensão satisfatória para ambos parece não ter ocorrido de modo harmônico. Além disso, a impossibilidade de atingir um nível mínimo de intercompreensão parece ter causado certa frustração na relação interpessoal ou nos momentos em que um sentido satisfatório não pode ser atingido.

Na seção seguinte, os excertos são analisados a partir do destaque para os aspectos linguísticos relacionados aos mal-entendidos descritos.